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Val Lewton

Conversa#71 - Reclassificando Clássicos[30]

The Seventh Victim (Mark Robson, Estados Unidos,1943) cin. Nicholas Musuraca -- e alguns outros filmes produzidos por Val Lewton

Mary Gibson (Kim Hunter) vive em um internato. Mas a falta de pagamento das mensalidades pela irmã, Jacqueline (Jean Brooks), a motiva a ir atrás desta, mesmo que a diretoria do internato lhe tenha acenado com a perspectiva de prosseguir no colégio sem o pagamento. Neste impulso de saída da contemplação em direção ao mundo, Mary se depara com vários tipos e vive experiências extremas. Aos poucos, descobre que a irmã vendeu a fábrica de cosméticos que possuía e aderiu a uma seita satânica. Que mantém alugado um quarto onde há uma forca armada. Que foi jurada de morte pela seita, e assassinou um detetive.

O produtor Val Lewton ficou famoso por fazer bons filmes com orçamentos módicos. Uma série de filmes B de duração em torno de 1h10. Em sua maioria, filmes de terror. (Ou assim vendidos, pelo departamento de marketing da RKO). Mas é difícil classificar esses filmes, precussores de vários aspectos estilístico da vaga noir clássica, como meramente "de terror".

O aspecto visual dos filmes é admirável. É praticamente o mesmo de filme para filme, ainda que o diretor alterne. E, se esse estilo é atribuído mais ao produtor (e ao cinematografista) que aos diretores que o cercavam, é porque era Lewton que dava a palavra final. Mesmo em termos de direção. Ou seja, além de não creditar-se como co-roteirista --- pois comprovadamente contribuía na redação e revisão dos roteiros --- ele também não o fazia como co-diretor. Apenas como produtor.

Alguns dos diretores que recrutava --- caso de Jacques Tourneur (Canyon Passage, Out of the Past, Nightfall) ou Robert Wise (The Set-Up, West Side Story, The Sand Pebbles) --- tornaram-se figuras de renome. Mas há em torno desses filmes de Lewton um visível esforço de equipe, um espírito de trupe, um vínculo de filme para filme. Em larga medida, o aspecto visual da coisa --- extremamente moderno --- é definido pelo diretor de fotografia: Nicholas Musuraca.

Abaixo seguem algumas características das astúcias de Lewton e de Musuraca para lograr tanta modernidade no aspecto desses pequenos filmes. A acuidade visual de ambos não resulta apenas num trabalho refinado, mas também em um que parece ter tido grande influência na formação de Robert Bresson enquanto cineasta. E porque se assemelha muito ao modo de Bresson conceber o conjunto de dispositivos a que denomina: "o cinematógrafo". Às teses de Bresson sobre "como escrever com imagens", tal como dispostas em seu magro volume de aforismas: Notas sobre o cinematógrafo (1975).

O gosto pelos perfis. Quando se trabalha com perfis evita-se os excessos de campo/contracampo, porque se toma as personagens conversando lateralmente. (É o que ocorre no diálogo de Mary Gibson com a funcionária da firma de cosméticos que pertencera à sua irmã). Há aqui um esforço por evitar a banalidade do plano/contraplano. Além de certa sensualidade que é reforçada pela figura uniformizada da funcionária, toda de branco, a socar o fumo do cigarro na ponta dos dedos contraídos.

Logo, ao empregar o plano/contraplano, Musuraca o faz mais obliquamente, tomado de viés. É como se a câmera se distanciasse, abrisse mais espaço em relação àquela personagem que geralmente aparece semi-velada em primeiro plano, e da qual supõe-se que assume o olhar. E, assim, é como se esse plano/contraplano distanciado, tomasse as pessoas ainda um tanto de perfil, mas desnudando o artifício. Ou seja, é como se deliberadamente a câmera recusasse o ponto de vista subjetivo (POV). Desconfiasse dele. E comunicasse essa desconfiança ao espectador.

É como se a câmera ao contar a história também contasse que está contando.

Uma direção de arte esparsa, inusual, meticulosa. Por exemplo, navios em miniatura são um dos elementos que recorrem na direção de arte dos filmes de Lewton para a RKO. Em Cat People, eles estão presentes até porque o protagonista masculino é um engenheiro naval. E então uma das cenas mais impressionantes do filme se dá quando o casal trabalha à noite num amplo estúdio de projetos navais. Há algo de onírico na assepsia desse ambiente. Em sua frieza, levemente quebrada pela fumaça dos muitos cigarros. Na sua pretensão cientificista. É um ambiente lógico e claro. E assim traduzido por objetos tão transparentes quanto úteis. Os primeiros receios de Oliver (Kent Smith), quanto à sanidade de seu casamento, são comunicados a Alice (Jane Rudolph) em torno de um emblema desses objetos "úteis" e "transparentes": o bebedouro de água mineral, com seu garrafão de vidro e a alvura dos copos descartáveis.

Eles seguem debruçados sobre as pranchetas de desenho e as mesas de luz, ocupados com cálculos, croquis e gráficos. Os utensílios característicos de arquitetura --- como réguas t, escalas, esquadros, transferidores, compassos --- dizem presente nas paredes ou sobre as mesas. E, de repente, em meio a essa ambiência elegante, austera, da ordem do cálculo exato e da ciência, há uma pantera negra "solta" na sala.

Mas, se a fera está solta, só conseguimos ouvi-la. Não nos é dado vê-la. (A não ser por um breve vislumbre que mais sugere um delírio, uma vontade de ver, por assim dizer). E ela se move em meio a austeridade do ambiente. Pois existe uma austeridade-ambiente, uma correção decorativa, uma vontade de expressar mais com menos, que torna os ambientes quase kitsches na sua assepsia de cenário. Ou algo minimalistas em excesso. Ou excessivamente modernistas. Daquele minimalismo que faz lembrar o construtivismo russo ou a Bauhaus. Mas, por outro lado e não só no ambiente, uma forte tendência ao detalhe, à sensibilidade homossexual, à citação artística elevada (referências a John Donne, a presença da psicanálise, os temas musicais eruditos, a adaptação de grandes obras literárias como ponto de partida).

Quanto a um subtexto homossexual, ele segue vinculado às sociedades secretas ou aos costumes exóticos. Uma tribo de mulheres-gato da Sérvia. Um grupo de praticantes de vodu no caribe. Satanistas que pactuam entre si um ideal secreto baseado em antigas crenças descobertas em alfarrábios. Marinheiros a bordo de um navio capitaneado por um lunático. É certo que, à época, índices de uma sexualidade considerada então "anormativa" haviam de reconhecer-se no que era manifestamente anômalo e marginal. Praticado por irmandades de iniciados. Seitas secretas ou mais ou menos gnósticas.

Há um minimalismo e uma deliberada modernidade no cenário e nos ambientes. Por vezes, destaca-se algo inesperado e desproporcional que chega às raias do kitsch, como uma réplica em escala real do quadro pré-rafaelita, cujo motivo é o encontro entre Dante e Beatriz. O quadro, da autoria de Henry Holiday, encontra-se na cena do restaurante italiano, em The Seventh Victim, e toma quase toda a parede do fundo diante da qual as personagens conversam antes de Mary Gibson (Kim Hunter) convencer os proprietários a abrir-lhe o quarto da irmã. As pessoas conversam sobre arte. A boina de Mary lhe empresta um toque europeu. A 'persona' de Mary, nos gestos e no vestir, revela algo de lésbico, apesar de exteriormente nada conduzir a essa dedução. E os envolvimentos dela se darem com homens. Isso, a despeito da cena com a funcionária da fábrica de cosméticos e do fato de ter trabalhado num internato feminino...

Qualquer mínimo detalhe tem um enorme implicação para a trama num filme de não muito mais de uma hora. Em I Walk With a Zombie a ação transcorre numa imaginária ilha do Caribe, San Sebastian. Não precisa ir muito longe para saber que o nome do lugar e a estética queer se incluem ao invés de brigar entre si.

Há uma verdadeira coreografia de portas abrindo e fechando. Esse balé de expansões e vedamentos, com suas fortes reverberações simbólicas, que recorre nos filmes de Lewton, também será motivo regular nos de Bresson.

Em Bresson há o modo de sublinhar a caligrafia das pessoas. O ato de escrever, em si, é quase sempre cercado por uma solenidade. Há algo sublime em curso. Uma comoção. E proposto como momento de decisão. O momento que guarda algo da ordem da oração. E em Lewton derivando para Bresson há também o destaque dado a áreas do corpo usualmente tidas como menos nobres que o rosto. É o caso de braços, pernas, mãos e dedos. Isso frequentemente se dá às expensas de podar a cabeça. Talvez em Bresson, essa tendência não derive apenas de Lewton. Mas também do Realismo Poético da geração que o precedeu. A de Vigo, Carné, Gremillon Feyder e Renoir. Quando se assiste filmes como L'Atalante (1934) e sobretudo La Chienne (1931), já flagramos o uso desse procedimento de decepção de partes do corpo.

Em Cat People, há a famosa cena em que Irena persegue Alice até a parada do ônibus tarde da noite. Em dado momento, vemos apenas os passos de ambas. Essa cena é o mais rematado exemplo de um efeito que, graças a ela, ficou conhecido como Lewton Bus [o "Ônibus de Lewton"]. Ou seja, o propósito do efeito é o de reforçar um aspecto: o que as pessoas veem de extraordinário está mais em suas mentes que na realidade. Na cena em questão, por exemplo, o rosnar de uma pantera é subsumido em um ruído de motor de ônibus, no remate da tensão. E isso naturalmente conduz a um outro aspecto: o emprego do som e das sombras como elementos expressivos.

O uso do close decepando o corpo, como numa antecipação de Bresson, é quase o suplemento do ponto discutido no parágrafo acima: mostrar só o essencial. Mas também o close utilizado para ressaltar símbolos, como os losangos circunscritos, que formam o ícone da seita satânica, os Paladistas, em The Seventh Victim. Posteriormente, esse símbolo aparece como logo de um dos perfumes produzidos pela indústria de cosméticos que pertencera a Jacqueline Gibson (Jean Brooks).

Nesse filme pode-se surpreender também de onde Hitchcock retirou a célebre cena do banho de Psycho (1960). Foi da cena do banho de Mary Gibson, quando é advertida pela sombra de Miss Redi (Esther Newton). Esta insiste que Mary cesse de buscar Jacqueline e retorne ao internato. (Uma velada ameaça). Mas, de resto, está tudo lá: a cortina de plástico semi-transparente presa por argolas a uma trave metálica, a touca na cabeça da personagem, o parcial velamento do(a) intruso(a).

Em A Sétima Vítima há uma ligação lésbica entre Jacqueline Gibson (Brooks) e Frances Fallon (Isabel Jewell). Isso fica explícito quando um dos membros da seita diz: "We all know you love her". E Frances cai em prantos quando os demais chegam à deliberação da morte de Jacqueline. Ela é também advertida a controlar-se, e não dar com a língua nos dentes.

De outro modo, em Cat People, uma estranha mulher de aspecto felino dirige-se à recém-casada Irena Dubrovna (Simone Simon) em sua recepção. Ela o faz em sérvio, e a chama de "irmã". É, sem dúvida, uma senha, uma saudação lésbica, e que assim foi percebida de imediato, mesmo nas primeiras resenhas sobre esse filme, lançado em 1942, quando o tipo de censura que se tinha sobre esses temas era brutal.

A presença do "iluminado solitário da mansarda". Ou seja, da personagem de um(a) outsider capaz de ver o que as outras pessoas não veem, pelo excesso de senso comum, é algo que Lewton --- entre outros, claro --- também lega a Bresson (Diário de um Pároco de Aldeia, Um condenado à morte escapou, Pickpocket, Mouchette, Une femme douce, Le diable probablement, Lancelot du lac, etc.) . Em The Seventh Victim, essa personagem é suprida por Jason Hoag (Orford Gage), um poeta que se torna o melhor amigo de Mary, e lhe ajuda na busca a Jacqueline. Jason de fato mora numa mansarda, num pequeno estúdio, onde é visitado por Mary e por Gregory Ward (Hugh Beaumont). Os três tentam forjar um plano para resgatar Jacqueline, pressentindo que algo está fora dos gonzos. (O detalhe é que este mesmo interior de apartamento aparece, tal e qual, em The Fallen Sparrow (1943), um noir estrelado por John Garfield. Também no prismático thriller noir The Locket (1946). Ambos produzido pela RKO).

Involuntariamente, Jacqueline, com seu cabelo inusual, parece ser fonte de todas as femmes fatales do universo noir. Mas ela mesma é uma estranha personagem. Um corpo estranho. Uma espécie de sombra, que a irmã alcança apenas no quarto final desse pequeno filme (1h10). É também uma femme fatale atípica, que passou por um affair lésbico, e acaba por se suicidar. Ela rompe com todo o código de moralidade hollywoodiano de então.

Até o momento em que todos os "não Paladistas" reúnem-se no estúdio de Jason, Jacqueline é mais uma ausência, uma forte alusão, um espectro que assombra o filme. A trama gira em torno dela, embora ela própria pouco apareça, pois o que vemos são os esforços da irmã, Mary, para localizá-la. Mas Jacqueline é também mais a estranheza de sua figura, de sua presença física, do que suas palavras. Ou seja, ela existe mais pelo aspecto, que pela fala. Ou pela ação. (E também nisso reside sua modernidade, sua "moralidade", pois nunca o mundo foi mais das aparências que na posmodernidade). É na casa do poeta que ela abre o jogo quanto à sociedade secreta, e os riscos que está a correr.

A complexidade e a beleza desses pequenos filmes deveriam ser mais contempladas. Especialmente quando sua sensibilidade aponta para zonas não-ortodoxas da sexualidade com tamanha sofisticação.

[29.08.2017]

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