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Rodeios em família

Conversa#75 - ano 2 - Oeste por toda parte [4]

Junior Bonner (Sam Peckinpah, Estados Unidos, 1972) - cin. Lucien Ballard

Há um momento, logo ao início de Junior Bonner, que dois vaqueiros de rodeio dirigem seus intermináveis conversíveis por uma estrada do Arizona numa radiosa manhã de sol, rádios ligados. Cada um reboca um trailer-baia, e no mais apressado desses carros, há duas belas loiras no banco de trás. Elas se agitam no instante em que, durante a ultrapassagem, os ocupantes dos carros se saúdam. Uma delas sugere:

-Hey, give him a beer.

E então, sua amiga soergue-se um pouco, e atira uma lata de cerveja para o solitário motorista do outro carro. Este, sem deter-se, abre a lata, e a ergue em brinde. O carro das loiras passa adiante com o sujeito no banco do carona a erguer sua lata em obséquio.

Prosaica como possa ser, essa cena demarca a diferença geral de estado de espírito entre 1972 e 2018. Quarenta e seis anos depois, os ocupantes dos dois carros seriam sumariamente presos, se repetissem a cena diante de um policial rodoviário ou de uma câmera de segurança. Quer dizer, em 1972 não era só aceitável que se bebesse dirigindo, como todo o mundo o fazia. Dirigir embriagado ou sob a influência de drogas era um hábito. E louvado até certo ponto. Pois havia até alguma apologia de tal circunstância.

Basta lembrar de Easy Rider (1969). Do que significa para o advogado da província, personagem de Jack Nicholson, subir na garupa de uma moto com um capacete de futebol, um frasco de uísque e um baseado entre os dedos. Isso demarca, entre outras coisas, que o cidadão de 1972 era um individualista empedernido, a quem abominava a interferência de leis que o protegessem (e aos outros em volta) de riscos desnecessários: ele preferia correr esses riscos, e ter um pouco mais de prazer. Fazia parte da ética de época. E isso tinha a ver com existencialismo, e uma vida em que prazeres e riscos não eram criminalizados. Ou objetos tão estritos das leis e do normativismo de Estado. Ao menos até a década de 1980 e o advento da AIDS.

Não resta dúvida que a lei que proíbe álcool à direção de um veículo é justíssima, e veio em boa hora reparar um quadro de pavorosa auto-indulgência. Nesse quadro, infelizmente, o motorista embriagado passava longe de ser uma ameaça apenas para si mesmo. Outros entravam na equação. E, no entanto, quem alguma vez dirigiu em estado alterado sabe do prazer que isso representa. Temos, aqui, a certificação de algo: muito frequentemente o nosso prazer representa um risco desnecessário para os demais e para nós próprios. E o que se entende por felicidade não é mais que essa arma quente, de um motor em funcionamento, carburando, nos conduzindo a toda por uma estrada ao longo de uma bela manhã, enquanto desfrutamos da paisagem de desfiladeiros, mesetas, lagos, montanhas, de uma cerveja tinindo de refrescante, atirada em nosso conversível por duas loiras.

Há também outra cena que documenta época, digamos assim. Algo inadmissível para os padrões de hoje. Nela vemos um velho vaqueiro doente, sobre a cama, a bolinar uma enfermeira. E esta apenas trata de retirar as renitentes mãos do sujeito de seu traseiro, e prosseguir com a faina, com indelével dignidade. Na verdade, esse interesse do paciente é mesmo tido em conta de algo que confirma que ele não se encontra tão mal. Ou pior: que a enfermeira ainda é uma mulher atraente, a despeito de certa idade. E é também algo que a enfermeira informa - não sem alguma cumplicidade e até vaidade - ao filho do paciente, quando este vem em visita:

-I can't keep his hands off me - diz.

O filho ri. A enfermeira ri.

Que tais cenas ocorram em um filme menor de Peckinpah é dado não menos significativo, quando se sabe do apego do diretor por velhos códigos de honra do passado, que parecem ceder diante das inevitáveis transformações, mas que sedimentam o tema central de seus filmes: lealdade. Lealdade, aqui, não só aos amigos, lugares, circunstâncias, mas acima de tudo a si próprio.

Depois vem uma ágil sequência de caráter documental que nos dá conta dos preparativos para um rodeio. Essa sequência de preliminares do rodeio, aliás, irá retornar mais adiante, no corte do filme, com mais vagar e harmônicos. Em linhas gerais, um filme brasileiro gira em torno de um universo semelhante. Do primo pobre desses rodeios: a vaquejada. E o faz brilhantemente: Boi Neon (2015).

Há, claro, antecedentes deste Junior Bonner. The Lusty Men (1952) e The Misfits (1962) são dois filmes em que o rodeio está bem ao centro. São, por igual, dois magníficos estudos do temperamento americano, e da violência endêmica que o conduz, como um guia a seu cego. Constituem, não menos, duas extensões do western. Foram realizados por Nicholas Ray e John Huston, e são bastante densos, em diversos níveis; além de o segundo ser famoso pela atribulada atmosfera de gravação. Não é improvável que Peckinpah tenha tentado emulá-los. À sua vez, em entrevistas do início de carreira, Peckinpah revela grande apreço pelos filmes de Huston. Em particular, por The Treasure of the Sierra Madre (1948), que ele define como "possibly the finest motion picture ever made". Por seu turno, a sequência inicial, em que Bonner sai contundido de um rodeio em busca de casa, replica o início de The Lusty Men.

Vemos então Bonner (Steve McQueen) chegando a uma cabana. Ela situa-se nas franjas de uma pedreira e parece abandonada. A pedreira segue a pleno vapor. A cabana era ocupada por alguém conhecido. E há uma velha foto empoeirada a comprová-lo, com uma cena de rodeio. Mas ao buscar notícias desse conhecido junto a um funcionário, este não só não sabe de paradeiros, como mal consegue escutá-lo, pois o ruído de uma colossal trituradora é entropia quase invencível à conversa de ambos.

Aqui temos um demarcar de tempo. Ou como prosaicamente os novos aparatos e procedimentos interferem nessa comunicação e nesses códigos morais não escritos. A máquina, a forma de operá-la, quase inviabiliza a conversa. Alguém desapareceu, mas é difícil achar pistas sobre esse sumiço, pois em vez de vizinhos que se conhecem e tutuam há décadas, há um conglomerado econômico, com funcionários recém-chegados, sem nenhuma relação orgânica com o local. Uma impessoalidade que tem um alvo exato: lucro. E tudo isso é posto em som e imagem com sutileza exemplar.

Talvez pudéssemos prescindir do que vem a seguir: uma retroescavadeira, à toda, a passar por cima da caixa de correspondência do antigo lar do conhecido de Bonner. E logo começa a demolição da cabana. (Mais tarde, descobriremos que a cabana é na verdade o lar onde Bonner passou a infância, e que a foto de rodeio, nada mais é que um suvenir de início de carreira).

Poucos atores têm o rosto tão nobre e ao mesmo tempo tão parecido com povão como Steve McQueen. Ele poderia ter feito um membro da família real inglesa, um poeta europeu, ou o empregado de uma granja em Guaramiranga sem fazer feio. Poucos também encarnam melhor o espírito da época desses inícios de 1970. Nessa altura, McQueen estava iniciando a etapa final de sua curta carreira, e já havia feito filmes como The Magnificent Seven (1960), The Sand Pebbles (1962) e Le Mans (1971).

A cinematografia está a cargo de Lucien Ballard. Um veterano e renomado DF que já tinha trabalhado com Peckinpah em Ride the High Country (1962) e The Wild Bunch (1969), sem contar projetos menores, como a deliciosa comédia The Ballad of Cable Hogue (1970). Ballard é, dentre os grandes fotógrafos americanos, aquele que tem o nome mais francês. Mas isso é enganoso. Nasceu no Nebraska e fez filmes sob Joseph Von Sternberg, enquanto assistente de câmera. Sua história confunde-se com a própria história do cinema e de suas técnicas fotográficas. Especialmente da transição dos grandes estúdios para formas mais artesanais ou independentes de produção em torno de 1950. Antes disso, Ballard trabalhou como assistente de Gregg Toland. Mais adiante, o vemos fotografando vários westerns para Budd Boetticher e Henry Hathaway. Foi também responsável pela cinematografia do primeiro feature mais comercial de Kubrick: The Killing (1956). Na década de 1960, Peckinpah e ele eram um time, e estavam ganhando. Projetos como este Junior Bonner --- assim como o seguinte, The Getaway --- contavam entre aspirações pessoais, produções menores, música de câmera, diante da grandiosidade sinfônica de The Wild Bunch (1969). A parceria com Peckinpah não o impediu de fotografar outros westerns que também se tornariam clássicos: True Grit (1969) --- refilmado em 2010 pelos irmãos Coen --- e Hour of the Gun (1967).

Neste Junior Bonner pode-se perceber um DF mais à vontade, experimentando, divertindo-se. E até o widescreen, o formato anamórfico, é gravado num processo alternativo, relativamente raro: o Todd AO - 35, ao invés dos usuais CinemaScope e Panavision. Há muito emprego de pequenas gruas. Especialmente entre os arcabouços de tábuas dos currais. E pode-se surpreender efeitos óticos não muito frequentes no cardápio de Ballard. Como o zoom. Ou o emprego de diferentes bitolas em certos trechos.

O modo de organizar o olhar, a direção desse olhar, em Ballard consorciado a Peckinpah, é mais direto que, digamos, em Nicholas Musuraca ou em Edward Cronjager. Especialmente se estes estiverem a serviço de um estilista do quilate de Jacques Tourneur. Tudo sai então arrevesado, atravessado, oblíquo, de um viés só. Não é o caso aqui, onde a frontalidade sobressai, como elemento inicial de ponto de vista, da perspectiva de quadro, da opção mais básica de angular. Essa frontalidade não é inexorável, uma lei, como a diagonal em Tourneur, mas prevalece. Sem embargo, pode-se surpreender na composição de Ballard o mesmo gosto por pré-enquadramentos que se encontra em nove de dez grandes mestres da cinematografia. Isto é, um modo muito próprio de detectar ou sublinhar esses pré-enquadramentos em locações. De organizar o olhar a partir dessa geometria anterior, sugerida pelo próprio motivo. Como numa série discreta, proposta pela disposição mesma do motivo gravado.

Há também uma espécie de liberdade 16mm na imagem. Uma precípua vontade de documentar. Até os closes parecem possuir essa objetividade emocionante, compelente e um pouco imprecisa do documental. E certos trechos parecem de fato terem sido gravados em 16mm. Ou mesmo Super 8. Ou ainda num 16mm emulando Super 8. Há demasiadas imprecisões, zonas escuras e perdas de resolução na imagem nesses trechos em preto e branco. Como se essas imagens tivessem sido gravadas não só por um amador, mas portando uma câmera amadora. Pois há momentos em que o experiente profissional precisa do olhar de um amador para reinventar. Para reiventar-se. Quem sabe, para prevenir que rotinas de trabalho demasiado arraigadas possam resultar numa fotografia que estagna mais que põe em curso. Há momentos em que Ballard precisa dirigir alcoolizado para ser feliz. Quem sabe numa estrada deserta, pondo apenas a própria vida em risco.

Os momentos em "Super 8"/ 16mm estão, no filme, vinculados a medos e receios do peão de rodeios. E recorrem em diferentes trechos. Esses momentos, sempre em preto e branco, são conectados pela presença do mesmo touro. Um miúra negro, extremamente possante. Quase arquetípico. Tal colosso animal parece guardar uma dimensão do inexorável. Uma força demoníaca análoga à que se surpreende na identificação entre demônio e touro nos escritos de Guimarães Rosa.

O filme gira em torno de derrota. De uma busca de dignidade apesar da derrota. Junior Bonner, o ás de rodeio, caminha mancando por conta de fraturas, contusões, traumas passados. Ele está alquebrado --- sequelado é o termo em moda. E não menos do ponto de vista financeiro. Mas seus pais não sabem disso, pois Junior é o membro mais famoso dos Bonner. E quando visita a família para um rodeio, exatamente na sua cidade, em pleno Arizona e no Independence Day, sua mãe fala com orgulho: ele é um ás, um astro, etc. O pai se encontra hospitalizado, mas ainda sonha em um dia migrar para a Austrália, viver de novo algo parecido com a vida na fronteira, em tempos mais passados do Oeste. Deseja voltar a ser garimpeiro, e entende que o filho é um "rodeo star".

A vergonha do pai, aliás, é o filho mais novo, Joe Don, dono de uma bem sucedida imobiliária. Mas também de um parque temático que transforma o Oeste em circo, e onde se pode contemplar coiotes, pumas e falcões em exíguas jaulas e viveiros. O que o pai não perdoa no caçula é essa redução do Oeste a parque temático e atração de circo ou zoo. Evidente que há muito de circo também no rodeio. Porém no rodeio há mais. E esse mais parece guardar uma organicidade em relação ao passado que conta muito para velhos caubóis como o pai de Junior. O tema da lealdade a si próprio e aos outros não desgruda das personagens.

Porém se o adorado Oeste de Peckinpah se faz presente, com sua ambiência, como inequívoca personagem, Junior Bonner é muito mais um filme sobre família. Gerações em família, em conflito e convergência. E o que essas gerações esperam umas das outras. Ou como elas se percebem. A cena crucial do filme se dá quando, após algumas estrepolias, Junior e o pai recém-saído, fugido do hospital sem receber alta, deixam a parada municipal do 4 de Julho. Dirigem-se no cavalo do primeiro até a estação ferroviária. E então conversam sobre vários assuntos chaves para o bom funcionamento da equação pai/filho. Um trem passa e, por um lapso, os deixa em diferentes metades da cidade. Depois o pai retorna com um ar filosófico e o chapéu do filho nas mãos. Não se dizem mais nada. E ao voltar para o local do rodeio, o pai se compraz em galopar junto com as duas jovens que fazem parte da entourage da coisa, e que ele crê - da forma como só os pais creem - que sejam fãs do filho.

A violência é dimensão indissociável do temperamento americano. Eis porque na cena que congrega a família e une Junior a seu novo amor, Charmagne (Barbara Leigh), há uma briga generalizada no bar. Para o espírito americano, a celebração familiar, a comunhão e a ternura do idílio amoroso seriam apequenadas, não houvesse essa briga. Estranha cultura em que brigas generalizadas em bares respondem pela expressão de carinho em família. Ou entre casais.

Uma menção honrosa vai para a participação de dois veteranos: Ida Lupino e Robert Preston. São respectivamente os pais do astro dos rodeios. Em outro momento que demarca a passagem do tempo, por sinal, Lupino tenta fumar à mesa durante um almoço com os netos, mas é duramente repreendida pela nora.

Junior Bonner é daqueles anti-heróis exemplares de um tempo em que os anti-heróis nunca foram mais charmosos. Eles surgem tão distantes das redes sociais com seus rapapés, auto-declarações de bondade, de coerência política, boas intenções, filistinismos, renitentes amores ao próximo -- quer dizer, ao próximo em moda. E sobretudo aos animais, às terapias, à dieta vegana, às bicicletas, a si mesmos. Ou seja ao que se come, sua, bebe, viaja, assiste, lê. Ao que é consumido e agrega glamour. Um deslavado cabotinismo. Tais antecedentes de anti-heroísmo vêm por Bogart, Garfield, Widmark, Douglas, Hayden, Ryan, Mitchum, Dean, Brando, Clift e Newman. E há equivalentes femininos talvez ainda mais notáveis: Repburn, Crawford, Magnani, Grahame, Neal, Page, Marie Saint, Taylor, Monroe, Bardot, Dunaway, Loren. (Monica Vitti, não por acaso, assume a própria 'persona' de seu diretor, Antonioni). Era preciso, através delas e deles, purgar uma situação, um desassossego. Isto é, apontar para uma forma de grandeza moral que há também nos derrotados, e nem de longe apenas em vencedores.

Nada mais distante de gente dessa estirpe do que desprezar ou insultar quem vota na direita. Embora esse desprezo houvesse. Mais sincero. E fosse ressaltado, em privado. Ou, de preferência, fosse traduzido por atitudes, ação. E surgisse quando menos fosse esperado. Quanto mais fosse decisivo, lapidar, prático. Menos clichê, lenga-lenga. Ou tão importante quanto: se desse sem fumos de superioridade. Sem nunca deixar de reconhecer no outro a condição humana. De passageiro, de peregrino. De igual.

Anti-heróis. Derrotados, sim, mas que não estavam envolvidos numa guerra infame e institucional, como a do Vietnam. Esses derrotados exemplares surgem também como herdeiros dos heróis de Hemingway, Fitzgerald e Richard Yates. Junior Bonner, dessa maneira, está para os rodeios como o Bill Tully de John Huston, para o boxe, em Fat City (1972). Ou como o Minnesota Fats, de Robert Rossen, para o bilhar, em The Hustler (1961). São perdedores exemplares, envoltos numa aura de grandeza estoica tão característica daquela época em que se dirigia bêbado e fumava-se à mesa, diante dos netos .

Daquela generosa época.

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