Pequeno, luminoso filme escuro
…
Conversa#72 - ano 2 - Oeste por toda parte [1]
Border Incident (Anthony Mann, Estados Unidos, 1949) - cin. John Alton
Há muitas maneiras de atravessar o silêncio para o Rio Grande da narrativa. E a grande narrativa só existe em inglês. Mas primeiro é preciso começar. Mesmo que esse começo possa parecer demasiado obscuro, pouco comprometido, posto na especiosa zona de uma neutralidade impossível de resistir a um exame. Mesmo superficial. Um dos inícios da questão da fronteira azteca-estadunidense, na imagem, foi proposto, ainda de modo hesitante, em Border Incident. E é claro que, para uma questão candente mais que nunca hoje, este filme traz o mérito de, entre tantas possibilidades de assunto, haver se fixado no jogo perigoso da fronteira e suas intrincadas reverberações culturais. Muito se tem especulado sobre a razão dessa escolha. E há os que apontam para o óbvio: Anthony Mann tentava, mediante um maior conhecimento da região, algum pano para as mangas de uma série de westerns. Esses westerns, que ainda estavam por vir, constituiriam uma das pedras de toque de sua filmografia.
Acusado de ser ingênuo, demasiado B, ou menor, se posto diante de T-Men (1947) ou Raw Deal (1948), filmes do mesmo diretor que tratam de questões da época num modo circunstanciado e semi-documental; Border Incident não é um filme muito prezado pelos estadunidenses. Nem poderia ser, pois quebra com vários clichês de época. Ao mostrar que há organizações do governo mexicano análogas às americanas: racionais, planificadas. (Talvez até mais do que os mexicanos admitam ou possam reconhecer). E, nessa linha, dá nome aos bois: ao FBI, por exemplo, corresponde a Policia Judicial Federal. O filme abre com os funcionários dos dois governos, em seus aviões respectivos, seguindo para uma reunião conjunta em Mexicali. Na reunião, além do sentido geral de cooperação, sobressaem a civilidade e a elegância das autoridades mexicanas.
Outras surpresas nos aguardam. O agente mexicano surge visivelmente mais sagaz, inteligente, polido, eficiente, enquanto o americano é capturado, e morto de forma cruel, após agir de modo bisonho. Além disso, o mexicano é mais carismático, persuasivo, torna-se um líder informal dos trabalhadores da colheita, e possui certo ar de galã existencialista francês. É, para todos os efeitos, o protagonista da trama. Como se não bastasse, seu principal aliado prático não é o agente americano, senão outro mexicano. E, no caso, um trabalhador braçal semi-letrado, que trabalha de peão na colheita de hortaliças, e entrou de forma ilegal nos Estados Unidos, deixando mulher e filhos para trás. Ou seja, o filme surpreende por conceder humanidade e inteligência em excesso para não-americanos. E não só isso: para hispânicos. O que o filme concede é uma mínima possibilidade de história possível fora do panteão americano. Uma narrativa que começa aquém do Rio Grande.
Talvez Mann tenha, aqui, revolvido além da conta velhos brios gringos. O certo é que se os estadunidenses não se mostram muito dispostos a fruir o filme, isso em parte se dá porque o filme ataca frontalmente o modo como mexicanos eram propostos pelo cinema americano até então: broncos, um pouco estúpidos, grosseirões. Aqueles tipos que se veem sob um sombrero, sentados debaixo de um beiral, cuspindo fumo picado e exclamando agudo coisas numa língua exótica. Em uma palavra: primitivos. Porém o filme vai além disso ao propor que mexicanos podem até mesmo ser mais eficientes e engenhosos que americanos em dadas situações e na solução de determinados problemas. Questões não necessariamente relacionadas com trabalhos braçais, ponchos, castanholas, mariachis e a necessidade de um banho.
Um agente federal mexicano e um americano trabalham a fim de desmascarar uma rede de tráfico de trabalhadores braçais na fronteira entre México e Estados Unidos. Os "braceros" são levados, como trabalhadores ilegais, para modernas fazendas ao longo da fronteira sul da Califórnia. Fazendas que são beneficiadas pelos projetos de irrigação do All-American Canal. Vão receber menos de um terço das diárias pagas aos trabalhadores legalizados. Vão ser pasto para toda sorte de chantagem e intimidação. Por vezes, vão ganhar até menos do que ganhariam em certas regiões de sua terra natal. O agente mexicano segue infiltrado num desses grupos de trabalhadores aliciados irregularmente.
Um gângster de El Centro, na Califórnia, agencia os "braceiros" mediante a ação de intermediários de um e de outro lado da fronteira. O agente americano consegue ganhar a confiança desse chefão por algum tempo. Mas não pelo tempo necessário. Há neste filme, a exemplo de outros de Anthony Mann, uma sequência de extrema violência, que não deve ter passado despercebida a Peckinpah. Nesse caso, empregando um arado mecanizado. Há, por igual, um permanente sentido de obscuridade ou cegueira que percorre a ação como um mandato judicial.
Esse último aspecto, o da obscuridade, parece dar a tônica da coisa. E não apenas na fotografia, pois essa obscuridade bem pode ser vista como uma perfeita ilustração do sentido teológico do pecado original. Ou seja, de acordo com a teologia cristã, o pecado original resulta em que, pela ausência de Deus, não exorcizada pelo batismo, mesmo as intenções mais nobres e altruístas em um ser humano, quando postas em prática, resultam frequentemente em equívocos, injustiças, misérias e distorções. É o clássico divórcio entre intenções e resultados. Isso porque essas intenções são postas em prática nas trevas, sem a Parusia. Sem o advento da Graça. A analogia não parece descabida. Embora nada assegure que essas noções básicas de filosofia moral ou de teologia cristã tenham tido alguma incidência sobre o roteiro e os motivos de Border Incident.
A produção barata deste filme B indica, em não poucos momentos, para a locação, o que transforma Border Incident num filme de certo valor documental em torno de uma situação e de uma época. Ao menos de um valor documental tão grande quanto T-Men é para a questão da evasão de impostos, e de gangues especializadas em sumir com agentes da Receita que se mostravam tenazes na apuração de crimes fiscais. O filme, de outro modo, antecipa parte da temática de produções importantes para o ciclo noir, caso de Touch of Evil (1958), assim como muito dos motivos e da geografia posterior presentes em realizadores como John Huston, Sam Peckinpah, Wim Wenders e Jim Jarmusch. E, claro, em 2005, há Los tres entierros de Melquiades Estrada.
Sem dúvida, a fotografia, a cargo de John Alton, é uma das personagens mais ilustres deste filme quase todo passado no breu: à noite, de madrugada e ao amanhecer. Ou em ambientes escuros, como alojamentos, refeitórios rústicos, plantações ou precários caminhões de transporte que fazem lembrar os paus de arara. Em muitas cenas, recursos simples como lanternas, faróis de carro e até fósforos riscados, brasas de cigarro ou o luar constituem de fato a única fonte de iluminação. Dificilmente uma produção comercial mais bem acabada, na linha de montagem de Hollywood, à época, iria tolerar essa imagem sombria quase o tempo todo.
O cast é modesto mas bem escalado. Em particular, o versátil Howard da Silva, como o chefão do tráfico de migrantes. Mas também George Murphy, que faz o agente americano, um tanto assustado, surpreendido pela truculência do ambiente. (Murphy depois, "na vida real", irá se eleger ao Senado pelo Partido Republicano). Porém ao centro da trama está mesmo Ricardo Montalbán, na pele do agente federal mexicano, e que guarda algo da languidez e do charme mestiço de um Caetano Veloso. O sombrero de palha à cabeça contrasta com uma jaqueta jeans que se vai puindo ao longo das ações. Pablo Rodriguez, o agente encarnado por Montalbán, é dos poucos protagonistas não americanos a ser comparado com americanos e sair em vantagem dessa analogia nos filmes de Hollywood em qualquer época. Isso sem contar ingleses, claro.
Há uma dimensão quase surreal nas condições de transporte desses imigrantes. Por exemplo, no caminhão, sob galhos de árvores, feixes, cipós e liames, eles sonham, conversam, brincam, rezam. Ou ainda no instante em que se retira o corpo do velho senhor falecido durante a viagem, porque "não fazemos transporte de cadáveres". (A ironia de em 2005, toda a trama de Los tres entierros de Melquiades Estrada evoluir em torno dessa circunstância de perambular por aí conduzindo um cadáver de imigrante). A violência contra esses peões mexicanos é, como sugere o filme - que neste aspecto surge mais humanista e menos ingênuo do que se supõe à primeira vista - praticada por indivíduos, grupos e instituições de ambos os países. Ou seja, na outra ponta há apenas o despreparo, a indigência e vulnerabilidade desses trabalhadores famintos e semi-analfabetos.
É óbvio que não se pode contemplar as diferentes faces de um assunto tão complexo num filme de hora e meia. Por exemplo, o drama de seguir para outro país deixando para trás a família não surge dimensionado a contento. Ou ainda como esses migrantes, explorados de todas as formas, gastavam seus parcos momentos de lazer. Isto é, há vários aspectos ligados à subjetividade dos migrantes que não são sequer tocados, ou são tocados apenas de raspão.
Outras soluções seguidas no roteiro surgem esquemáticas. Ou então, francamente imponderáveis. É o caso de haver areia movediça no Cânion do Diabo. Que houvesse locais em que imigrantes ilegais fossem sumariamente eliminados por esquadrões da morte, e isso não seria mais que um reflexo da dura realidade de então. Mas o modo como um desses locais de extermínio em massa é apresentado - um cânion no meio do deserto, com um esguio desfiladeiro, e areia movediça em uma de suas extremidades - convoca um clichê do tamanho do Leviatã. Um clichê que, a seu modo, trata de suavizar a violência extrema que era praticada contra a humanidade dessas pessoas em flagrante fragilidade. Aqui, o roteiro parece sair dos quadrinhos. De uma aventura de Tarzan ou de Mickey.
Não obstante, parte - ainda muito suave - da truculência com que eram tratados esses imigrantes nos Estados Unidos de 70 anos atrás está presente em certos passos deste filme escuro. Como quando Pablo (Montalbán) preside uma pequena reunião de insones braceros que é interrompida por um capataz. Este lhes diz: "O que está havendo aqui? Vão dormir, macacos. Amanhã é dia de trabalho". Parte dessa truculência será tema de outros filmes décadas depois: Fat City (1972), Lone Star (1995), Los tres entierros de Melquiades Estrada (2005), Sicario (2015).
Pode-se então dizer que Border Incident, a exemplo de The Lusty Men(1950) ou Bad Day at Black Rock (1955), é um post-western. Ou um neo-western, se quiserem.
Os planos aéreos iniciais conformam uma reportagem que abre fazendo a apologia do All-American Canal, e fecha decretando a necessidade do recrutamento de mão de obra mexicana legal, para as colheitas, nesse vale irrigado. É uma espécie de prólogo.
Chama a atenção, de qualquer modo, que a primeira imagem dos mexicanos seja a de pontos, de abstrações em meio a abstração maior de linhas e fieiras numa plantação. Ou seja, são convocados à imagem a partir de tomadas aéreas, que é quando se pode ficar o mais distante possível, e impessoalizar. Depois, quando se tenta dar um rosto para esses pontos, essas fisionomias surgem ainda um tanto quanto obstruídas pelas grades da fronteira, indistintas sob essas grades: uma bando de anônimos. A câmera passa por esses semblantes indistinguíveis sem se deter em nenhum deles. São uma massa, não têm rosto.
E então há um fade para o assunto seguinte que já disserta sobre o tráfico ilegal de migrantes num tom neutro. E o faz já sob a iluminação quebrada, cheia de sombras, que caracteriza este filme escuro. Os mexicanos agora são corpos distintos, embora não passem de silhuetas na tênue contraluz, tentando livrar-se das farpas nos fios de arame da cerca.
Esse filme escuro e aparentemente desimportante irá reverberar em vários outros filmes instigantes no futuro. Pois é quase impossível não lembrar de Border Incident quando se assiste, por exemplo, a Chinatown (1974). E em especial à sequência em que Gittes (Jack Nicholson) sai sem um pedaço do nariz, depois de investigar uma estação de tratamento de água, nos arredores de Los Angeles. Essa sequência aponta em linha reta para atmosfera geral de Border Incident. Para sua obscuridade que responde por um nome. E, aqui, é evidente que no plano da direção de fotografia há uma expressa homenagem de Juan A. Alonzo a John Alton.
...