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Cordel à americana - ou Depois, depois das guerras


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Conversa#73 - ano 2 - Oeste por toda parte [2]

The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford - (Andrew Dominik, Estados Unidos, 2007) cin. Roger Deakins

No dia de seu assassinato, Jesse James chega em casa muito bem humorado. Cata a filha no jardim, brinca com ela nos braços. Contorce a guria de tal sorte que esta perde um dos sapatinhos. Entram, e o pistoleiro joga o jornal sobre o divã. Então os vemos, ele e a filha num reflexo de espelho. Mas, de repente, ele fura o reflexo. Atravessa o espelho. Caminha em direção ao primeiro plano. Não é um espelho. Não é uma moldura de espelho, senão uma soleira de porta. De qualquer forma, só um fantasma pode transpor um espelho. E ele, por algumas horas, ainda não é um fantasma.

Há outro momento, ligeiramente anterior, em que Jesse James fala de si para seu futuro assassino, Robert Ford. Eles estão nesse mesmo bangalô da cena do espelho. Nele, James mora com a mulher e o casal de filhos. Ford é, antes de mais nada, um fã do ex-chefe de bando. James discorre sobre lealdade, e sobre a vulnerabilidade de tornar-se um problema para si mesmo, uma espécie de auto-ameaça:

-I wonder about that man that's gone so wrong. I've been becoming a problem to myself.

Neste exato instante, a câmera de Roger Deakins flagra Brad Pitt através de uma vidraça. E as imperfeições no vidro translúcido mas irregular deformam seu rosto. Deixam seu rosto mais longo e anguloso do que na realidade é. Tecnicamente, não configura a imagem mais perfeita desse filme de imagens quase perfeitas. Há sombra em excesso. Falta vivacidade às cores. Porém, a seu modo, o estratagema é brilhante. Empresta uma estranha aparência à fisionomia de Pitt. Uma aparência assemelhada às fisionomias tal qual surgem em fotos antigas. E que parecem conservar uma unicidade que Walter Benjamin, em sua "Pequena História da Fotografia", situa no limiar entre a pintura de portraits e a fotografia retocada à mão. Um aspecto que pela lentidão e fixidez de exposição dessas primeiras fotos guarda algo de fantasmático. Algo que empresta mais "durabilidade" e permanência a esses primeiros registros. Logo, algo mais aurático.

O tema de Jesse James, pela sua importância, constitui quase um subgênero do western. Simpatias à causa do Sul, derrotado e humilhado na Guerra de Secessão; a astúcia para escapar de ciladas armadas pela polícia; um absurdo carisma; a fama - aliás, injustificada - de que se tratava de um ladrão do tipo Robin Hood; fizeram desse criminoso do Missouri um verdadeiro herói num país em franca demanda de heróis. Rapidamente ergueram-se boatos e hagiografias paralelas que estavam mais assentadas no desejo das pessoas de ter um herói do que em qualquer heroísmo real .

Jesse James, uma superprodução dirigida por Henry King em 1939, posta em vibrantes cores de exceção numa época em que o cinema era em preto e branco, conta em seu elenco com Tyrone Power no papel principal, além de Henry Fonda, Randolph Scott e Nancy Kelly. John Carradine faz Robert Ford. O filme, apesar de gravado na região de Little Dixie, é apenas tenuemente baseado na história do criminoso. Esse sentido do vago, o bandido-herói tomado como pretexto para se falar de outras coisas, é o que se assiste também na estreia de Samuel Fuller, I Shot Jesse James (1949), produção mais modesta. Esta versão, em que Fuller também foi roteirista, marca sua estreia como realizador. A ação centra-se mais em Bob Ford após a morte de Jesse. E há a cena que recorre no filme de Dominik: um violeiro adentra o saloon a cantar a gesta de Jesse James e acaba involuntariamente insultando Ford. Nessa versão de Fuller, Ford é morto não por um fã de James, mas na esteira de um crime passional.

Já o Jesse James de 1939, a reboque de uma consciência coletiva exaltada pelos anos da Depressão, trata de apresentar os irmãos James como os bandidos sociais que dificilmente foram. Com seu graduado quinhão de Ronbin-Hoodismo. A fazenda da família, por exemplo, é visada por inescrupulosos grileiros ligados a uma ferrovia. E, no auge da truculência, a mãe é morta por uma granada que sai da mão de um incorporador. Essa versão, tão conscienciosa socialmente, ficou célebre por alegados maus tratos a animais. De acordo com o rumor, um dos dois cavalos empurrados do penhasco para o rio, em cena que foi a corte final, acabou morrendo. Isso serviu para que houvesse um controle inicial das associações de cuidados a animais em torno dos sets de Hollywood. E à época, é fato que havia um gritante descompasso entre os bastidores e o resultado das filmagens. Os bastidores eram cínicos, quentes, venais. Às vezes, violentos e negligentes. O corte final dos filmes: edulcorados, edificantes, exemplares.

Aliás, progressivamente os westerns vêm ficando glaciais e se empapando de sangue. Um paradoxo. A quase ausência de sangue até os anos 1960 é fácil de explicar: o sangue ou excesso dele era rigorosamente proibido pelo código de posturas de Hollywood. Mas desde pelo menos Day of the Outlaw (1959), há certa tendência das histórias transcorrerem em ambientes gélidos. Daí que em alguns dos mais expressivos westerns recentes, os cavalos afundem na neve. É o que se dá em True Grit (2010) ou The Hateful Eight (2015), assim como em Wind River (2017). Neste último, claro, menos cavalos que jet-skis.

Pode-se ler de várias maneiras essa glacialização do western. Uma delas: a tentativa de exclusivizar, de demarcar uma zona temperada que difira do Sul do planeta. Predominantemente global, não ortodoxamente Ocidental, tampouco branco ou anglo-saxão. O calor é bárbaro. É apache. É mexicano. É negro. Nele fervilham um bando de mestiços. E um sem número de insetos e cobras. Em seu romance-piada Catatau (1975), Paulo Leminski brinca com uma possibilidade: a de Descartes compor o Discurso do Método no calor dos trópicos.

Mas isso de westerns e nevascas é ainda uma consideração avulsa. E apenas um trecho relativamente pequeno - embora importante, pois comporta uma reflexão sobre o suicídio, assim como a possibilidade de admitir Robert Ford no bando - deste filme se dá sob o signo de um inverno rigoroso, propriedade climática quase exclusiva do homem branco anglo-saxão. Ao menos durante algum tempo. Daí a preocupação de Tarantino em The Hateful Eight: povoar esses invernos brancos também com negros, mulheres, sulistas, mexicanos. Com outras possibilidades identitárias menos "óbvias". Mas, quiçá, também mais desimportantes à altura do Velho Oeste. Quer dizer, passando mais ao largo do poder. Porque mesmo vivendo à sombra e a obedecer ordens, nenhuma vida humana é desprezível

The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford deve esse título enorme a algo que, de algum modo, está próximo de uma história de cordel: a pulp fiction. Ou seja, as brochuras baratas vendidas em stands, quiosques ou drugstores mais que nas livrarias. A rigor, a pulp fiction só começa a existir na década de 1890, mas, claro, já havia antecedentes na década anterior, que é justamente a da morte de Jesse James.

O filme, além de uma das mais deslumbrantes fotografias da era digital, é pródigo também em alguma correção histórica. Reparem que os revólveres e pistolas falham e esvaziam-se mais que na maioria dos westerns. Não são instrumentos de grande precisão. E, então, geralmente se atira de uma distância muito menor. Quase sempre à queima roupa. Isso demanda ainda mais sangue frio por parte de quem puxa o gatilho, porque é lógico que o atirador está bem mais a par dos gestos e do semblante do alvejado, de seu corpo, de sua presença. De sua humanidade e reações. No momento em que Jesse James (Brad Pitt) vai matar Ed Miller (Garret Dillahunt), os preparativos são tão manifestos que pode-se sentir o pavor de Miller ao ouvir o engatilhar da arma às suas costas. É uma noite escura, e os dois seguem em seus cavalos. Mas também o tiroteio envolvendo Dick Liddil (Paul Schneider), os irmãos Charley e Bob Ford (Sam Rockwell e Casey Affleck), e que resulta na morte de Wood Hite (Jeremy Renner), é travado dentro de um quarto, entre as camas. Pelo contexto, pode-se pensar mais numa brincadeira entre garotos do que numa refrega envolvendo pistoleiros passados na casca do alho.

Mais do que tiroteios gráficos, duelos, ameaças, o que chama atenção neste filme é a permanente atmosfera de intriga. O jogo da sobrevivência num bando de foras da lei, no Velho Oeste, está, de repente, mais empesteado por intrigas polítiqueiras e jogos de vendeta que certas facções da Camorra. Pode-se sentir a permanente tensão que rondava a vida desses homens. Como quando os irmãos Ford choram de medo, ao supor que jamais sairão vivos da casa de Jesse James, onde se encontram hospedados. Robert Ford é alguém consciente demais da própria mediocridade. No fundo, ele sabe: jamais será líder do grupo. De um grupo que já vivera melhores dias. E, se por um acaso improvável a liderança lhe caísse no colo, ainda assim ele não atingiria um décimo da fama de Jesse James, seu ídolo. Então, sua perspectiva de posteridade mínima passa por uma única solução: matar Jesse James.

No filme, fica também evidente a astúcia de James. Ele é retratado como alguém que não precisa de muitas pistas para chegar à mancha. Rapidamente percebe quando algo está de través, ou mal contado. Quando se trama algo contra ele ou à revelia dele. E pode ser bastante frio com quem vacilou quanto à lealdade. Ao final, ele é também proposto como um cúmplice de seu próprio assassinato. Pois o crime lhe parecia a cereja que faltava ao bolo da posteridade.

Se via de regra a elipse é o melhor caminho para se seguir com uma trama, nem por isso deixa de haver filmes cujas tramas precisam de um contexto mais amplo, de algum didatismo, para funcionar. Seja porque há coisas demasiado subentendidas - ou simplesmente um excesso de coisas para se dar conta em duas horas e meia -; seja porque há um grande número de personagens. E, então, essa falta de contexto, de maior "subsidiação", recortes, ou de um mínimo procedimento didático, empregando cartelas ou o over - talvez seja o pecado desta versão, algo confusa, de Jesse James. A narração, aliás, volta e meia recorre a um over com sotaque sulista. Mas quem sabe esse over pudesse ser mais elucidativo no início, por que ao final torna-se tão recorrente e claro que quase chega a replicar a imagem. Especialmente ao descrever o estado de espírito e a atitude de Ford na iminência do crime.

De outro modo, sabemos que uma das versões anteriores mais notáveis acerca do tema está a cargo de Nicholas Ray, com cinematografia de Joseph MaCdonald: The True Story of Jesse James (1957). Até certo ponto uma refilmagem do clássico de 1939, o filme de Ray é um malogro tanto na estrutura narrativa quanto na fotografia. Um de seus pontos de partida, o livro Jesse James, de Henry King, é uma biografia romanceada, em que os fatos históricos passados são pouco mais que alusivos. Mas The True Story consiste num bom malogro em ambos os casos: roteiro e fotografia. E conta com momentos isolados de extrema acuidade, também em ambos os casos. Um malogro, portanto, que vale a pena ver e rever, estudar, aprender com, e dispor em paralelo.

Um traço comum entre a versão de Ray e esta de Dominik centra-se, assim, na estrutura. E particularmente, em ambos os casos, no emprego pouco criterioso e excessivo do flashback. Para arrematar, há dois extraordinários trabalhos de direção de fotografia. E, tanto um como o outro, forcejando para consolidar novas técnicas. No caso de Joseph MacDonald, o formato anamórfico: o CinemaScope. No de Roger Deakins, o digital. Embora haja mais irregularidade no trabalho do primeiro. Ou seja, a cinematografia de Deakins está para o digital de forma mais decisiva do que a de MacDonald esteve para o CinemaScope.

A irrespirável atmosfera de traições, ciladas, vendetas, caças a recompensa e o zelo pela notoriedade dilapidam o que restou do bando dos irmãos James e dos irmãos Young. Ao centro desses complôs está Jesse (Brad Pitt), a cabeça a prêmio mais cobiçada. A essas alturas, Jesse James é já uma celebridade. E também um velho. Tem 34 anos, idade provecta para um bandoleiro. É proverbial sua astúcia para ludibriar perseguidores, farejar conspirações e vinganças entre sequazes. Ele está nas reportagens e nas brochuras, que vendem como bolo quente.

Seu futuro assassino, Robert Ford (Casey Affleck), de apenas 20 anos, é leitor assíduo desses folhetos de cordel à americana. Ford é também fã do pistoleiro. Observa-o. Copia-lhe os gestos. Mantém diante dele uma admiração que chega às raias do pueril. Naturalmente, essa admiração é, por vezes, espezinhada pelo próprio admirado, como usa ser em tais casos. Frank James (Sam Sheppard), menos ambíguo, já havia posto o vacilante Robert Ford de escanteio, ao informar-lhe: ele carece de fibra. Ou seja, é um covarde. E isso não é algo que se possa reparar. O trato inicial de Ford com os irmãos James é o do adulador. E há notáveis estudos da figura do adulador em filmes passados, caso de All About Eve (1950), só para sair da esfera do oeste e citar um protótipo.

Há também o fascínio dessa relação ambígua entre Jesse James e o homem que lhe vai matar. É como se o assassinato fosse mais um suicídio induzido do que qualquer outra coisa. Há aí uma carga de eutanásia. Muito embora nem sempre trabalhada com a sutileza que a situação demanda.

O que resenhas tipo "bolacha não" vão fazer disso é previsível. Irão destacar que há uma atração homossexual da parte de Robert Ford que não é correspondida por Jesse James: ver o site de Roger Ebert, p. ex. E há a tese que vige desde o True Story de Ray, segundo a qual Jesse James é o principal cúmplice de Robert Ford na maquinação de seu próprio assassinato. Seria a porta mais exequível para abrir de vez a almejada posteridade. Tese que tem seu charme e pode ser posta em analogia com certo conto de Borges: "El tema del traidor y del héroe".

Também aqui há decisivas insinuações dessa cumplicidade. A relação entre assassinado e assassino é ambígua. O primeiro presenteia o segundo com um revólver novinho em folha, reluzindo em seus niquelados, ainda sem projéteis no tambor. Uma arma "virgem", pode-se dizer. Jesse fala de confiança. E observa o futuro assassino de perto. Estuda-o. Parece buscar adivinhar nele alguma mínima dignidade, algum traço posterior de grandeza que pudesse dilatar ainda mais e sua própria legenda. Depois, no instante mesmo de ser morto, vacila, desarma-se. Dá as costas aos assustados irmãos Ford, e sobe num estrado para limpar um quadro. Então entrevê, pelo reflexo no vidro, a guarnecer a pintura, que Bob lhe aponta uma arma. Talvez tenha sido a última coisa que viu em vida. E tomando a cena como metáfora, há nela tanto de Platão quanto de cinema.

Há já uma indústria em torno da morte desse Lampião à americana. Depois de abater Jesse James, Bob Ford e seu irmão, Charley, saem em desabalada corrida para um posto de telégrafo. As manchetes dos jornais sucedem-se. Uma pequena multidão reveza-se para posar junto com o cadáver em fotos cujas cópias impressas valem dois dólares. Uma bagatela para a época. Centenas sobem a colina do bangalô, nos arrabaldes de Saint Joseph, Missouri, atrás de conhecer o local do crime. Um ano depois, num teatro nova-iorquino, o próprio Robert Ford encena o assassinato junto com o irmão. Isso enche a sala num primeiro instante, até o fato esfriar, como o cadáver de Jesse James. E a plateia progressivamente se dar conta de que o assassinato, com um tiro pelas costas, foi na verdade um ato de covardia. Charley Ford, progressivamente enojado dessas funções, suicida-se. E o próprio Robert Ford, num jogo cíclico, é então assassinado por um outro fã de Jesse James. Isso já se dá quando quase ninguém mais falava do assunto, e a própria importância de Robert Ford havia minguado.

Ao final, há certa melancolia não só pela decrepitude dos últimos anos de vida de Ford, mas antes disso, com Jesse ainda vivo, pela fracassada tentativa de reavivar o bando sob nova formação. É a história repetindo-se sob farsa. Há muitos planos de assaltos a bancos e trens em pelo menos três estados. Porém esses planos não saem do papel. E, óbvio, o Oeste não é o mesmo. Os bancos estão mais seguros e contam com dispositivos de alarme cada vez mais eficazes. As casas, maiores, burguesas e confortáveis, deitam mais rastros, porque estão mais repletas de utensílios e objetos. Situam-se em cidades de certo porte. Há logos de confecção em série gravados nas selas e arreios. Há chapéus-cocos, gravatas, coletes, bicicletas, vinho, charutos, bombas d'água, revistas e jornais. Há fraques, polainas, lapelas, e flores nas lapelas. Há fábricas de cigarro, de sabão, de confeitos, e há mercearias de novo tipo. Há sorveterias, teatros e salas de concerto. Os vestidos são rendados. Há louças à mesa. Telegramas. Bebe-se cerveja. A fotografia estabelece-se. As mulheres ostentam penteados elaborados. As toaletes das debutantes imitam a última moda em Paris. Os criminosos se veem afundados nas memórias, no tédio. Nas dívidas de jogo. Deprimem-se. Matam-se entre si.

E planejam mais do que agem.

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