Malpaís
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Conversa#74 - ano 2 - Oeste por toda parte [3]
Badlands (Terence Mallick, Estados Unidos, 1973) - cin. Tak Fujimoto e outros
É 1959 na imagem. Quatro anos após a morte de James Dean. Bangalôs, cabanas de madeira ou adobe, com sofás de estofado esfolando, suplementados por trêileres ou contêineres. Perdidos em planícies sem fim, na semi-ruralidade isolada de um país pré-internet. Pórticos com uma cadeira de balanço, e uma porta anti-mosquito antes de se entrar em casa. Os movimentos circulares de Holly Sargis (Sissy Spacek) durante o treino de baliza, nos planos iniciais de Badlands, funcionam como amparo visual de uma recoleta. Fazem as vezes de um efeito gráfico num flashback: fade ou fusão. Algo que tem a ver com recontar passado. Com um recorte de passado. Com memória. Algo que poderia ter sido acessado por um torvelinho no ar, um redemoinho na água, um sorvedouro, uma sucessão concêntrica de espirais de fumo. E então um plano desses fundindo-se com outro mais pretérito na cronologia da história. Mas não devemos esquecer que, na outra ponta do fio da memória -- e ainda antes de Holly -- vem Kit Carruthers (Martin Sheen) coletando o lixo pelo subúrbio difuso e pacífico de Fort Dupree. E que aqui também se dá uma recoleta de passado. Bastante concreta, aliás. De certa forma. E o momento em que o título do filme é anunciado, é o momento mesmo em que esses dois coletores de passado se encontram. Pela alfombra amarela sobre o asfalto e o passeio, é outono.
Ao escrever o roteiro, Malick baseou-se num caso amplamente repercutido pela imprensa ao final da década de 1950: o de Charles Starkweather e Caril Fugate. Tinham respectivamente 18 e 14 anos, e foram responsáveis por um sorvedouro de assaltos e assassinatos. Mas a semelhança é vaga, e a questão da empatia sexual, tão determinante em Bonnie and Clyde, aqui assoma quase reduzida a um casal adolescente brincando de casa na árvore.
Badlands em inglês é simultaneamente uma tipologia de terreno e uma região específica nos Estados Unidos. Na primeira acepção, refere-se a uma região semi-árida, infértil e granítica, com cânions, ravinas e desfiladeiros. Terra erodida, pouco fértil. O termo, aliás, possui um equivalente direto em espanhol: malpaís. Na segunda acepção, refere-se a uma vasta área do estado de South Dakota. Uma região rochosa, onde há um parque nacional muito apreciado por caçadores de fósseis.
Já este Badlands de Malick, que encampa as duas acepções, faz parte de uma estirpe de filme que passa bem ao largo de desprezar a complexidade das personagens e a relação entre as personagens e a paisagem. E, no caso, de pessoas comuns, sem nenhuma distinção particular. Sem maiores dotes artísticos ou glamour. Exercendo profissões braçais e "indignas" -- como Kit (Sheen), que é um lixeiro. Ou Holly (Spacek), uma colegial numa cidadezinha da província, filha de um pintor de letreiros e anúncios, com alguma vaga pretensão artística. Seria, nesse sentido, o oposto diametral do que se vê nos filmes de Sophia Coppola, por exemplo, onde a exceção é quem não pertence a certo patriciado artístico.
Mas Badlands faz também parte de um subgênero de road movie. Aquele que versa sobre um casal na estrada, sendo perseguido pela lei. Os tais "lovers on the run". Há aqui antecedências eloquentes: You Only Live Once (1937), They Live by Night (1948), Gun Crazy (1950), Where Danger Lives (1950), Bonnie and Clyde (1968), entre outros. Com Bonnie and Clyde sua relação procede ainda mais estreita, já que Malick é uma espécie de discípulo e protegido de Arthur Penn, a quem segue um agradecimento nos créditos. Mas hoje isso soa quase como um desafio, porque é evidente que Badlands, como cinema, conforma algo superior ao filme de Penn. Aliás, no ano seguinte, 1974, Altman irá popor sua própria versão de They Live by Night: Thieves Like Us.
"Não ia gostar de ser vista acompanhada de alguém que cata lixo" -- é a resposta incisiva de Holly à primeira investida de Kit. A menina é direta, sem esquivas. Mas segue interessada no rapaz, "apesar" de ele ser o lixeiro da cidade. Pois, elogio supremo, acha-o, então, parecido com James Dean.
O pai de Holly é ninguém menos que Warren Oates, e ele é pintor de letreiros. E, sendo Warren Oates, podemos dizer que ele pinta letreiros e também o sete. Não propriamente o mais recomendável dos sogros, a despeito de seus fumos artísticos, e de uma personagem inusualmente mais introspectiva que seus papéis sociopatas nos westerns de Peckinpah. Aqui, vai por um pai que se empenha em assegurar a Holly alguma formação artística. E especialmente musical.
Kit está pouco ligando pra isso. Se o pré-requisito para sair com Holly é não ser lixeiro, esse deaner fará de tudo para ser demitido nos próximos planos. E logo o vemos com um assistente social polido e engravatado, numa agência de empregos. A agência é um tanto precária, com piso de ladrilhos geométricos e frequentada por rostos de gente beirando a indigência. Ou com todos os traços do João Ninguém
Da conversa de Kit com o funcionário podemos constatar as diversas implicações que podem denotar olhares de diferentes alturas.
Também nessa conversa duas coisas se explicitam. Na verdade, duas diferentes formas de saturação. Na fisionomia do assistente social vemos alguém saturado de misérias alheias que devem ter se tornado bastante uniformes, classificáveis, previsíveis, rotineiras. Na de Kit se vê algo como: "não espere de mim que eu traga uma desgraça muito diferente das que está acostumado a ouvir. Mas eu não preciso de você pra muita coisa. Porque sou jovem, e vou ser mais que você quando crescer. Vou ser famoso. Vou ser como James Dean".
Kit, como constatado por Holly, molda-se pelo herói de Rebel Without a Cause (1955). Às vezes, Martin Sheen pega pesado nesse decalque. Os dois, Holly e Kit, são muito jovens. A segunda vez em que Kit convida Holly para dar uma voltinha, ela responde que ainda tem tarefas da escola por fazer. Holly, ruiva, os cílios claros como os de uma bezerra, sobre os olhos claros e aguados, muitas sardas, os lábios levemente entreabertos mesmo quando não está falando, resguarda uma estranha qualidade, que é ao mesmo tempo feérica, angelical, anaconda e absurdamente sensual. Parece que ali está escrito: brincar com ela, é brincar com fogo. E não deixa de ser interessante que a Sissy Spacek adulta tenha nos revelado uma grande atriz, mas não confirmado certo symbol sex que nela se adivinhava na adolescente deste filme.
Na verdade, sua aparência remete em linha reta para a das bonecas. Ou seja, concentra ao mesmo tempo uma beleza ideal e uma natureza fantasmática, que sugere algo da ordem do horror. Seus olhos, em particular, são olhos de serpente. Ou talvez Machado de Assis descrevesse tais olhos como os de Capitu: "olhos de ressaca". E em poucos filmes o cabelo da protagonista tem tão grande impacto na fotografia quanto neste. Ela é o próprio centro do filme. E é ígnea.
E, no entanto, esse James Dean dos pobres não desiste. E os dois saem para passear. Kit e seu carro formam um suplemento, como convém à época.
As cenas de idílio do jovem casal são contadas do ponto de vista de Holly, em voice over aplicada sobre uma série de imagens que alternam momentos de namoro, convivência de ambos ou as rotinas de trabalho de Kit.
O balão dos desejos. O casal escreve uma série de propósitos e desejos. Dentre esses desejos, o de que nenhum obstáculo venha a se interpor entre ambos. A folha de papel é presa na gôndola de um pequeno balão, e solta ao sabor do vento.
Como represália pelo romance da filha com o arruaceiro local, o pai da garota (Oates) mata o cachorro dela, e atira o corpo no rio. Kit ainda busca conversa com o sogro intratável. Debalde:
"I don't want you to hang around anymore".
Caminhar erraticamente, um pouco para trás, às vezes mãos nos bolsos, hesitante, como a consultar se se está sendo seguido, eis o que um candidato a James Dean replica. E é o que Kit faz quando se aproxima da casa do pai de Holly para matá-lo, e fugir com a filha:
"Suppose I shot you".
Uma das sequências mais, digamos, inexpressivas, desarticuladas deste filme densamente fotográfico é a da solidão de Holly com o cadáver do pai na sala de estar. Após atirar no presumível sogro e em seguida constatar que ele está morto, Kit se retira. E, então, Holly fica em casa sozinha com o corpo do pai por algumas horas. Ao que parece, o terror dessa situação não está dimensionado a contento na imagem. Ou pelo menos à altura da narração do que aconteceu no filme até então. No restante do filme, em seu noves fora, tudo é narrado com o peso que merece. E o que aconteceu até esse ponto é algo da ordem de rotinas. Dos tempos de longa duração: o conhecimento e o envolvimento amoroso de dois adolescentes numa cidadezinha qualquer. Um deles trocando de emprego, e a garota com algumas dificuldades em casa e na escola, cumprindo uma rotina solitária e um tanto insossa sob um pai tão provedor quanto ausente no plano afetivo. Ainda que se interesse por sua educação. Isso são tempos longos, processos. Isso se dá ao longo de semanas e meses. Não da noite para o dia. Da noite para o dia ou menos que isso é o assassinato do pai e o tocar fogo na casa do pai, para forjar um suposto álibi. Aqui este filme excepcional esbarra em um de seus furos.
Kit larga mais panos para mangas de um álibi: faz uma gravação paga, em acetato, numa cabine, expondo a versão dele e de Holly para a morte do pai e para um suposto suicídio do próprio casal. Tudo forjado. Mas, nesse ínterim, se a ação de Kit ao borrifar querosene na casa inteira parece suficiente e bastante como continuação do assassinato do pai, Holly, à sua vez, não se encontra suficientemente representada na situação. Aliás, o borrifamento da casa é uma óbvia amplificação da vontade de potência -- também sexual -- de Kit. É como se o querosene que irá ajudar, ser decisivo na combustão da casa, não fosse mais que o prolongamento do sêmen, da porra de Kit. A mesma porra sobre Holly que fora vedada por Oates, o pai, em nome do pai. De um pai, agora removido, inexistente. Ao menos em presença física, como real empecilho - uma vez que figuras de tal peso (pais, mães ou seus sucedâneos), nunca que se extinguem; para bem e para mal.
A cena da casa incendiada não é mais que a projeção de um desejo mais ou menos arquetípico e universal: qual criança ou adolescente não sonhou tocar fogo no próprio lar, destruí-lo por completo (nem que só simbolicamente); e fugir, se evadir dele, ganhar o mundo, e nesse movimento eliminar de vez a existência desse lar que ficou para trás, junto com injustiças e arbítrios? Isso faz parte da fantasia do crescer. Do rito de passagem. Porque, claro, o adolescente sempre se põe na cândida figura do injustiçado. Mais ou menos como o militante de esquerda. Ou seja, ambos também se auto-imaginam guardiães da verdade. Pois nos dois casos há a revolta que a criança tem diante do despotismo adulto. Que uma casa de bonecas seja queimada dentro da casa que está queimando é a imagem, é a alegoria mais violenta dessa cena de rompimento: a casa de bonecas, o piano, o fonógrafo, o corpo do pai. Todo um passado consolidado em relações de poder. Tudo consumido pelas chamas dentro dessa perspectiva de mise en abyme.
Mas é também necessário perceber que esse casal transgressor, herdeiro da rebeldia sem causa de James Dean é, de fato, monstruoso. Na verdade, assume essa rebeldia em nome de valores ainda mais retrógrados, monolíticos, intransitivos e nefastos do que os exercidos pelo despótico pai destituído de seu poder, e sumariamente eliminado pela potência de uma arma, e depois queimado numa fogueira. Pela libido de um sociopata. Nesse rumo, a leitura que Malick faz da personagem do filme de Ray, encarnada por James Dean, é já tão complexa e pouco óbvia que antecipa o conceito de desconstrução em Derrida. Note-se que, a bem do Zeitgeist, não antecipa a criação do conceito em si, mas de como ele é hoje regurgitado nos simpósios de pós-graduação, fornecendo dezenas de citações para teses inócuas.
Depois, o casal de pombinhos, uma versão caipira de Romeu e Julieta, está livre, finalmente, para viver seu idílio. Ou, como posto pela simplicidade das palavras de Holly:
"It was better to spend the week with the one who loved me for what I was, than years of loneliness".
Note-se a ingenuidade desse "for what I was", que remete à psicologia barata. Algo que se surpreende na análise de filmes em revistas populares. Esse vocabulário, a exemplo da propalada "vida real", é encontrado, por aqui, nos resumos de telenovela ou reality shows. No passado, essas sinopses estavam presentes em Contigo. No presente, podem ser encontradas em Caras ou Quem. Ou, numa versão que se quer mais sofisticada, em Maurício Stycer ou Joyce Pascowitch. Ou, ainda por tabela, na seção Universa, do portal Uol. Elas são o molde do qual se tiram também os telejornais e as reportagens escritas nos portais de notícias. Porque no Brasil, a moral, junto com o ritmo e a narratividade das notícias, é ditada sobretudo pela telenovela.
Ter diversão a dois, namorar, ter fun - "the only thing money can't buy", de acordo com a letra de "She's Leaving Home", canção gravada seis anos antes do lançamento de Badlands - e versando acerca de um namoro construído sob o apagamento do lar da garota, sob seus escombros, e, ao mesmo tempo, tomado sob o ponto de vista da garota - é o tema de várias canções e filmes de então. Um subgênero que saiu fortalecido da revolução sexual dos anos 1960. O curto-circuito de certa família nuclear a meio caminho do laicismo, embora ainda governada por uma ética religiosa.
Assim, mesmo o idílio de viver numa casa de árvore não está isento da insanidade que o nome do pai porta, por via do falo. O falo que explode modernamente em armas. O que as armas vomitam não é somente fogo, senão também sêmen, esperma, porra. Daí que no primeiro quadro em que Kit e Holly são exibidos nessa vivenda "paradisíaca", há um pesado revólver envolto nas cobertas da cama, vigilante, velando entre os jovens corpos de ambos. Auto-declarando seu próprio prosaísmo entre utensílios. Querendo naturalizar-se, passar despercebido. Meio como fosse uma caixinha de lenços, um fone de ouvido, os travesseiros, um despertador, uma embalagem de absorventes ou envelope de aspirinas.
E mesmo essa aparente rotina, dionisíaca e pastoral, não pode eximir-se de ter um lado apolíneo, mais racional. No caso, esse lado está vinculado ao treinamento para a guerra e a uma obsessão por armas, armadilhas e dispositivos de defesa, que Kit porta de modo quase inato. Mas que constituem um prolongamento do nome do pai. Ainda que esse pai haja sido morto e queimado junto com a casa.
Quer dizer, a despeito da rebeldia, da expressa inspiração em Jim Stark, com sua pulsão libertária, Kit não seria mais que um potencial eleitor de Trump ou Bolsonaro.
Isso parece decretar que a música, a revolta juvenil, a casa na árvore e um ideal beat (ou hippie, alguns anos depois) não se constituem em suficientes garantias de rompimento com velhas ordens do passado. Do contrário, podem constituir-se apenas em novos modos de sociabilidade que irão manter intactas velhas formas de dominação. Pois não é que essas formas de dominação acabem se re-estabelecendo, como quer Deleuze e o conceito de reterritorialização; é que elas, ao modo de maldições, sempre estiveram lá, vivas, no nascedouro mesmo dessas sociabilidades alternativas (ou supostamente desterritorializadas). E o concerto dos Stones em Altamont, tal como registrado pelos irmãos Maysles em Gimme Shelter (1970) ou a ação do bando de Charles Manson estão aí para comprovar a tese.
Por mais que desejemos exorcizar tais formas de dominação e hierarquia, nos libertar delas, os novos procedimentos, as formas de rompimento e "libertação" parecem delas estar impregnados. Toda revolução, portanto, segue inevitavelmente amaldiçoada desde a gênese. De nada adianta queimar a casa paterna e voltar à natureza. Viver numa casa de árvore, pescar, dançar em volta da fogueira, ouvir música inspiradora. Nessa habitação, pesca, dança, fogo, fruição, audiência estão investidas modalidades de potência e sujeição que se exercem e se expandem a despeito de nosso desejo ou boa vontade inicial.
O tema musical mais recorrente em Badlands tem a ver com a ideia de circularidade, espiral, círculo vicioso, de voltar ao ponto, mas também com a de acalanto. E parece, portanto, sugerir algo úmido e que simultaneamente ressoa como o prolongamento de um motivo de caixinha de música. De uma canção de ninar. É ao mesmo tempo lenitivo e provocador da vertigem. É ouvido, por exemplo, nas cenas do idílio-casa-na-árvore. Essa é a sequência que trata do enlevamento dos jovens amantes no bosque, longe da civilização. (Embora muito mais próximos dela do que imaginam).
Nessa sequência, à medida em que utiliza o mesmo binóculo do pai para visualizar alguns cromos, segue-se uma reflexão sobre a natureza rememorativa da fotografia, que curiosamente põe, entre as imagens exibidas - na verdade, a primeira delas - um instantâneo do Rio de Janeiro Belle-époque, em preto e branco, onde se vê um comprido canal ladeado por palmeiras, sugerindo uma perspectiva que tende ao infinito.
Depois, as imagens vão conjurando uma série de hipóteses na mente imaginosa de Holly. Essas imagens constituem também o prolongamento do pai, de seu nome, e, naturalmente, do crime perpetrado contra ele.
Essa idílica vida no bosque contribui para despertar certa paranóia de perseguição em Kit. Ele detesta a possibilidade de ser pasto para o voyeurismo alheio, a despeito de seu método de pescaria chamar um bocado de atenção. E logo o bucólico acampamento está cercado por uma expedição de homens e rifles: são caçadores de recompensa. Enquanto isso, Kit mete-se num alçapão muito assemelhado aos utilizados pelos vietcongs num conflito que, então, seguia ainda em pleno curso.
Munido de um fuzil de mira telescópica, Kit faz um estrago completo na expedição dos caçadores de recompensa, matando seus três integrantes. E o casal prossegue na balada, deixando um rastro de destruição e mortes que não é mais que o resultado direto de sua tentativa de isolar-se, levar a vida "à margem" da civilização, e conquistar, enfim, "a felicidade". O preço de sua presuntiva liberdade. De seu idílio. Ou seja, é o atestado da completa impossibilidade de se estar à margem, optar por ser "marginal".
À beleza do bosque se contrapõe a sordidez da violência e das mortes. Mas há aqui um ideal americano de fazer justiça por si, com as próprias mãos. Ao largo das instâncias, tribunais ou apelações. Há aqui a cabana de Walden. Porém até o não alinhamento, o pacifismo de Walden parecem portar sementes de violência e destruição, porque a sociedade americana -- como qualquer sociedade -- não sabe viver sem violência. Mas a sociedade americana não é uma simples sociedade: é a mais poderosa sociedade erguida no Ocidente nos últimos séculos. E a violência é sua ração diária. E não deixa de impressionar o quanto as armas de fogo são postas como objetos centrais nas tramas de filmes, desde a própria gênese do cinema: de comédias simplórias, do slapstick da época do mudo, passando pelos musicais; de elaboradas coreografias, a reflexões viscerais, do porte destas Badlands.
A cena que decreta de vez a amoralidade do casal protagonista é a que eles conversam, fumam e se entendiam na cabana de um moribundo, que jaz agonizante no catre, após haver sido alvejado pela descarga da calibre 12, cano serrado, de Kit. Ao pé de uma janela, com um orifício no abdômen, o pobre diabo faz sala para o casal enquanto morre. E logo sobrevém a visita de um casal jovem, quase o espelho de Holly e Kit. Esse casal acaba morto, um tanto gratuitamente, depois de forçado a entrar numa espécie de silo subterrâneo em ruínas. A maneira como se decide que serão mortos lembra um pouco os jogos de acaso que caracterizariam Anton Chigurh, quarenta anos adiante.
O muito bom uso de locações e cores. Nessa sequência da visita ao caseiro, e do assassinato do casal, as dobradiças e arremates de metal amarelo-acobreado, na porta de um celeiro, rimam com os tons flavos no cabelo de Holly. Depois, de cores há só o cinza da madeira o preto da escuridão e o índigo das roupas de Kit e o rosa de suas mãos.
Uma espécie de amoralidade santa se faz sentir também na invasão de uma casa burguesa, quando os dois se mostram ocupados com a decoração, e trocam objetos, louças, vasos e utensílios de lugar. Provam diferentes assentos. E até gravam mensagens edificantes no magnetofone. Que poupem o patrão e a governanta parece ser mais um acaso. Algo que os propõem dentro da mesma linhagem de Chigurh.
Por então, nessa sequência da mansão, há uma cameo do diretor, Terrence Malick. Altíssimo, ele aparece como alguém que bate à porta da mansão invadida pelo casal em fuga. (A exemplo de Steve Jobs, Malick descende de cristãos sírio-libaneses).
Na fotografia, o filme é um tremendo respiro das técnicas tradicionais de Hollywood. É a estreia de seu DF, Tak Fujimoto. E a fotografia possui uma estranha equação entre planos fixos e movimentos de câmera, nem sempre projetados do modo mais acadêmico, ou dentro de um critério de todo perceptível ou previsível. Parece, aqui, haver uma falta de jeito que acaba dando certo, por uma sorte de vontade do estilo. O filme marca também a estreia de Malick, um diretor obcecado por fotografia - a ponto de o filme conter uma pequena dissertação sobre o tema, como vimos.
Um das leituras recorrentes do casal são revistas de fofoca sobre as celebridades de Hollywood. Revistas onde o papel da fotografia é possivelmente mais relevante que o do texto. Há um momento da fuga em que Holly lê uma dessas revistas para Kit, enquanto o carro atravessa as Great Plains. Na capa há referências a James Dean e Anthony Perkins. Ela as lê num tom empostado e farsesco. Ele se compraz diante da leitura dela, e reage da mesma forma, falseando caras e bocas à direção. São, a seu modo, cinéfilos.
Há externas de muita pouca luz. Essas seriam recusadas em qualquer produção mais elaborada de Hollywood à época. Especialmente porque nelas se perde também nitidez, já que a sensibilidade das câmeras de então para pouca luz era exígua. E se isso se dá com a câmera em movimento, esse borramento da imagem se acentua. Porém, a busca pelo registro em horas de luz mais suave, no crepúsculo, tem seu charme, e parece um deliberado ensaio para o que virá depois. Isto é, para Days of Heaven (1978). A ressalva é que em Days of Heaven os cinematografistas são Néstor Almendros e Haskell Wexler ao invés de um iniciante. E, no entanto, a despeito da plasticidade de Days of Heaven diante da irregularidade fotográfica de Badlands, pode-se afirmar que este último é mais denso enquanto filme e estudo da sociedade americana.
Esse momento de pouca luz ocorre somente depois da metade do filme e coincide com a travessia das Great Plains. Nada contra. (Ou melhor posto: tudo a favor). Mas pode-se perguntar por que não ocorreu antes? Por exemplo, na sequência da casa de árvore.
Há Nat King Cole no meio do deserto, uma terna cena de dança, e um cabelo que é um farol.
"I don't want too". Súbito, Holly estaca. Essa sua reação inesperada é da mesma ordem da de Meursault, o protagonista de L'Etranger. Pois ela é movida a tédio e capricho.
Há um momento insólito, de humor negro: durante uma feroz perseguição de carro, Kit arruma o cabelo para deixá-lo mais parecido com o do ídolo, James Dean.
O Kit recém-prisioneiro é tratado como verdadeira celebridade pelos guardas que irão transferi-lo. E, enfim, como um astro de cinema, como seu adorado James Dean, distribui brindes entre os carcereiros: isqueiro, pente, caneta, chaveiro, moedas, etc.
Alguns meses depois, irá para a cadeira elétrica.
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