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Fealdade & rotina: mau lugar para um dia


Conversa#76 - ano 2 - Oeste por toda parte [5] Bad Day at Black Rock (John Sturges, Estados Unidos, 1955) - cin. William C. Mellor

Um forasteiro faz o trem parar numa estação em que o comboio não pára faz quatro anos. Os habitantes reagem estupefatos. Mas não só. Há uma velada e permanente hostilidade que vai subindo de tom à medida em que o recém-chegado interage com os locais. Sabe-se que o forasteiro veio investigar a morte de um imigrante japonês durante os anos de Guerra -- a ação se passa em 1946. Esse imigrante possuía um rancho ao largo do povoado. Do xerife (Dean Jagger) ao proprietário do hotel (John Ericsson), passando pelo veterinário (Walter Brennan), os rufiões (Ernest Borgnine e Lee Marvin), o telegrafista (Russell Collins) e a dona do posto de gasolina (Anne Francis), todos temem o manda-chuva local, Reno Smith (Robert Ryan). E este parece implicado até o talo no assassinato do fazendeiro. Mas há entre os habitantes do lugarejo um código de silêncio que só é vencido aos poucos e hesitantemente pela obstinação do forasteiro (Spencer Tracy).

Posto em exuberante CinemaScope, Bad Day at Black Rock é dos mais refinados exemplos de estilo noir em cores. A seu modo, também constitui um western na melhor linhagem de Canyon Passage(1946), Ramrod (1947), Pursued (1947), e The Treasure of the Sierra Madre (1948). Com o primeiro divide o fato de estar posto em cores por uma cinematografia deslumbrante - embora lançando mão de diferentes processos, estratégias e dispositivos. Com o segundo, retém a mesmo fino recorte das personagens - não obstante haver menos personagens e a trama ser mais apreensível. Com o terceiro, reparte uma construção climática e editiva exemplar: a tensão vai subindo até o sangue molhar o cérebro de alguns, ainda vacilantes, moradores do lugarejo. A edição é tão primorosa quanto em Pursued. Com o quarto, reparte uma perspectiva temporal mais recente. Isto é, não se passa no quadrante clássico da conquista e da consolidação do Oeste. Na verdade, é algo quase parelho com o tempo em que foi feito. Explora eventos no Oeste, mas imediatamente posteriores à II Guerra. Uma década antes da filmagem.

A violência está no fulcro desse filme. E o paradoxal é que ela não precisa explodir de imediato para a gente percebê-la. Ela simplesmente está lá, em potência. Nas gotas de água e suor, no ar meio irrespirável do deserto, no recorte majestático das montanhas, ao fundo. E é mais feia que monstros de filmes de terror, tubarões, dragões, hecatombes, aliens, zumbis, energúmenos, pesadelos e traumas de guerra. Ela é também algo de homens. Algo que passa quase ao largo das mulheres.

Um dos charmes desse filme é o quanto ele traduz, para bem e mal, um modo de ver o mundo à americana. Ou seja, o quanto o herói do filme encarna o ideal americano do self-made man. (Assim como não menos, é necessário lembrar, o vilão). E o que não deixa de ser irônico é que esse herói, profundamente individualista, encarnando a ideia mesma de alguém que veio, com as próprias mãos - ou, no caso, com uma delas - fazer a justiça que não foi feita pela comunidade, pelo Estado; encarne justamente a perspectiva desse Estado, que esteve ausente até então. Tente preencher, por um voluntarismo personal, a falta coletiva de um bom desígnio. Tente remendar a anomia.

Mas há, por igual, o fato desse forasteiro, John J. Mccreedy (Spencer Tracy), já ser um senhor de pelo menos seus 60 anos e ter o braço esquerdo paralisado. Spencer Tracy encarna de forma magnífica esse herói improvável e tardio. No fim, não se sabe sequer qual é de fato sua profissão. Nos é dado saber apenas que ele conhecia a família de Komoko, o japonês assassinado pela sanha do chefete local. E inclusive estava a par de um detalhe-ironia esclarecedor: o de que o filho de Komoko morreu em ação no Pacífico, e foi condecorado postumamente.

Deve-se ressaltar que apenas uma personagem feminina surge no filme. E que ela é secundária na trama. Mas se assim é, Bad Day at Black Rock cumpre um papel relevante ao sublinhar essa ausência do mundo das mulheres: documentar um estado geral de coisas. Indicar o fato de que o controle do poder, concentrado e corrupto, nesse povoado no meio do nada, ao sopé de montanhas, está na mão de um escroque local e seus comparsas. Ou seja, é coisa predominantemente de homens, não de mulheres. Como de fato era esse o estado das coisas àquela altura nos Estados Unidos. Especialmente em regiões mais remotas, como a retratada no filme.

Mas é também possível dizer que os méritos de Bad Day at Black Rock se devem a três fatores: o minimalismo da trama, a excelência do casting e da mise-en-scène, e a formidável cinematografia.

Sobre a trama, de fato, não há tantos sobressaltos, embora cada um deles aconteça com uma contundência que remete para o posterior realismo histérico de autores como Don DeLillo, Thomas Pynchon e David Foster Wallace. As raras cenas de ação envolvem uma visita do forasteiro ao rancho do japonês, incendiado à época da guerra. É quando se dá uma bizarra perseguição de carro. Há uma cena de luta que contrapõe o forasteiro a um dos capangas (Ernest Borgnine) de Smith. E uma rusga dos locais com o recém-xerife (Lee Marvin). Além, claro, da tentativa de assassinato do forasteiro ao fim de tudo. Muito mais impactante - e violento - que essas cenas explícitas de luta é a permanente tensão e hostilidade que parecem empestear o ar que se respira. E que seguem divididas, por turnos, entre os locais, como se estes estivessem a cumprir uma função social. Um rito americano.

O elenco não poderia ser melhor. O veterinário e prático local, Doc Velie, é encarnado por Walter Brennan, simplesmente o único ator coadjuvante que ganhou três Oscars -- e um dos únicos a fazê-lo, os outros dois são ninguém menos que Jack Nicholson e Daniel Day-Lewis, que o receberam como lead actors. Os esbirros do chefe local são vividos por Ernest Borgnine e Lee Marvin, tipos durões, que dispensam apresentação. (Borgnine, inclusive, a manter sua especialidade: o bullying -- a exemplo do implicante Sargento Fatso de From Here to Eternity (1953)). Anne Francis, que na trama é proprietária de uma oficina conjugada a um posto de gasolina, assoma como uma jovem mulher altiva e empreendedora embora fosse também amante de Reno Smith (Ryan), o "coronel" local. O dono do hotel (John Ericsson) é o irmão dela. Praticamente todos, desse elenco de apoio, foram protagonistas em outros filmes. Aqui, a exceção é justamente Brennan, que é o rei dos coadjuvantes. E, claro, bem ao centro está Spencer Tracy, que havia sido um dos grandes heróis do cinema até então, dividindo cena com Katherine Hepburn.

Mas tratemos em detalhe do que mais nos interessa: a cinematografia. Ela ficou a cargo de William C. Mellor, e faz uso do CinemaScope. Mas também do Eastmancolor ao invés do Technicolor. Quer dizer, lança mão de um processo de lentes anamórficas para elastecer a largura da tela, e de um sistema de colorização que surgira há pouco, em 1950, para desbancar o Technicolor, porque, entre outras coisas, fazia uso de uma só fita (single-strip colour). Esse novo processo, o Eastmancolor, recebeu várias denominações comerciais, a depender do estúdio que o utilizava, sendo Deluxe a mais famosa e genérica dessas denominações. (Em Bad Day at Black Rock o processo é creditado por seu nome original).

Mellor, por sua vez, começou ainda no cinema mudo. Foi assistente do prolífico Victor Milner na Paramount. Aperfeiçoou-se na escola do noir ao longo dos anos 1940. E já havia feito a fotografia de filmes como A Place in the Sun (George Stevens, 1951), graças ao qual foi indicado ao Oscar. Também colaborou com Anthony Mann, notadamente no ciclo de westerns. Mas seus melhores trabalhos estavam por vir, viriam em cores, e iriam dar seguimento à colaboração regular com George Stevens -- inclusive em Giant (1956). No ano seguinte, o destaque foi para Peyton Place (Mark Robson) e Love in the Afternoon (Billy Wilder), e, dois anos depois, The Diary of Anne Frank (1959), novamente com Stevens.

É difícil aferir até onde o aspecto visual de uma produção dessa época dependia de seu diretor de fotografia. É claro que uma pulsão coletiva respingava sobre tudo. Filmes eram, mais que nunca, uma indústria. E se em domínios mais, digamos, espirituais, caso dos roteiros, havia uma verdadeira linha de produção, o que não dizer dessas áreas técnicas, onde o trabalho prático era executado por equipes. E no caso da fotografia havia também os fotógrafos assistentes, os iluminadores (grips), os eletricistas (gaffers) e o pessoal que trabalhava nos laboratórios, ocupando-se da revelação dos filmes, aperfeiçoamento dos processos químicos na revelação, e do fornecimento de amostras (dailies).

Era muito comum que mais de um DF trabalhasse numa produção -- embora só um fosse creditado, por normas sindicais. Além disso, a quantidade de filmes feitas por esses cinematrografistas era de tirar o fôlego. Não faltava serviço. Hoje nos centramos em filmografias seletas. Nos pontos altos de cada um. Mas para cada ponto alto havia pelo menos dez a vinte platitudes, uma vez que eles trabalharam justamente na época das maiores bilheterias da história do cinema. O epicentro desse fenômeno é o ano de 1947. Mas o intervalo que vai de 1941 a 1958 -- o mesmo que coincide vagamente com o da produção noir clássica -- responde por essa periodização. Evidente que dentro dela houve muitas transformações. Houve a ascensão da televisão. Houve, por igual, a transição do preto e branco para o colorido, que se completaria de vez na segunda metade dos anos 1960. E, em toda essa fase, chegou-se na Academia a ter duas premiações distintas para as respectivas cinematografias: em preto e branco, e em cores, que posteriormente foram reunificadas. Aliás, essa foi também uma época de ouro no sentido do surgimento de novos processos de filmes em cor. Cerca de 20 novos processos diferentes foram lançados. Alguns tiveram vida brevíssima.

A ascensão da televisão explica em parte algumas dessas inovações. O CinemaScope e o investimento nos filmes em cores - e/ou em três dimensões - faz parte da estratégia de oferecer ao espectador uma qualidade de imagem diferenciada. Faz parte de uma renovada tentativa de cinema como atração (a exemplo das atrações de circo, feira, exposição, etc.), essa qualidade de imagem única, ofertada à época. Não só em termos de escala (a tela larguíssima do CinemaScope), mas também em termos de cor (os diversos processos de filmes em cores, aditivos e subtrativos: Technicolor, Eastmancolor, Trucolor, Fujicolor, etc.) e volume dos objetos (três-D). Uma qualidade, uma definição, e, por vezes um colorido e as três dimensões que a televisão estava ainda longe de oferecer. E que, portanto, fazia valer a pena tirar o espectador do conforto do lar, diante do televisor, para atraí-lo até a sala de cinema.

Voltando à questão da cinematografia em Bad Day at Black Rock é notório o tanto que ela se aproxima da concepção visual de um dos grandes pintores estadunidenses: Edward Hopper. Será essa proximidade algo premeditado ou pode-se tê-la na conta de um espírito de época, um Zeitgeist? Questão problemática. Parece improvável que Mellor tenha feito esse movimento de transposição de Hopper para o filme. Ou que isso se tenha dado por uma determinação de Sturges. Nossa intuição aponta mais para o espírito de época. O que nos conduz também para a via de mão dupla. Ou seja, Hopper não só influenciou o cinema, como dele recebeu influxos.

O que não é problemático: o tanto que essa estética à Hopper presta-se ao minimalismo da trama, ao estilo de atuação, à compelente qualidade elusiva, visual que tanto caracteriza este filme. Que tanto lhe empresta esse ar de pesadelo de olhos abertos - a despeito da beleza ambiente. Que nos faz ver muitas coisas sem precisar explicá-las. Que muita coisa siga lá, apesar de apenas insinuada. E, aqui, a grande fissura é a seguinte: como um ambiente tão belo quanto o de Black Rock pode comportar tamanha sordidez? Como 1. uma região de tanta beleza natural, que encontra uma espécie de refração no 2. charmoso povoado à beira da ferrovia -- sua arquitetura, seus objetos, utensílios -- é habitado por gente com tal grau de fealdade?

Isso nos sequestra para reflexões acerca de questões vinculadas ao local. Por exemplo, a certa definição de 'local', tal como Creeley a concebe: "o local não é um lugar. Mas a parte desse lugar que nos repele e nos convoca, para dele dar testemunho". E em geral os testemunhos desestabilizam o local ao refundá-lo sob novas bases.

O que faz de Bad Day at Black Rock um filme tão orgânico, quanto à fotografia, é sem dúvida o fato de cada mínimo impasse na trama encontrar sucedâneo concreto na imagem. Isto é, há uma densa exploração de objetos, moradias, utensílios, daquilo que em largos traços Deleuze denomina de "natureza morta". Talvez por se tratar de um lugarejo perdido, no meio do deserto, cujos únicos contatos com a civilização se dão pelo telégrafo, os telefones e uma ferrovia nunca utilizada. Isso devolve à trama boa parte do denso minimalismo que a alimenta. E empresta a Bad Day at Black Rock seu caráter de sonho - ou, mais acertadamente de pesadelo - exemplar.

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