Non puedo, estoy muerta
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Conversa#77 - ano 3 - Relances do Já e Agora[1]
Roma (Alfonso Cuarón, México, Estados Unidos, 2019) - cin. Alfonso Cuarón
Em uma das cenas mais inusitadas de Roma, um esforço coletivo tenta apagar um incêndio na mata. É na passagem de ano, de 1970-71. A família havia viajado da Cidade do México para uma fazenda. E a primeira a divisar o fogo, desde a varanda do solar, é Cleo (Yalitza Aparicio), a babá em torno da qual gira a trama. Ela atravessa momento convulso, após sentir os efeitos iniciais de uma inesperada gravidez. Apesar da atmosfera de celebração, todos prontamente se empenham no esforço de combate ao fogo: crianças, empregados, locais, visitantes, convidados, mulheres, homens, peões e patrões. E, então, em meio a essa faina, o ano passa. E passa exatamente no instante em que um sujeito metido numa fantasia de pássaro, algo indígena, atravessa o campo na direção das chamas. Tira a máscara e começa a entoar uma espécie de hino. Há nessa cena uma beleza inexcedível. Um mistério. E pode-se dizer que configura um dos mais estranhos e belos momentos do cinema nos últimos verões.
O filme, que guarda evidentes sobretons autobiográficos, transcorre em um bairro da Cidade do México: Colonia Roma. (O título, portanto, não se trata só de referência a Fellini, de uma alusão genealógica à questão da América Latina ou constitui o palíndromo de amor. Há algo de mais concreto em curso). O garoto caçula parece indicar o lugar de Cuarón na família. Há também aqui elegância em propor-se como personagem secundária.
Para o espectador brasileiro, dois filmes são imediatamente convocados a participar da fruição de Roma: Santiago (João Moreira Salles, 2007) e Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015). Repartem vários traços com o filme de Cuarón: certo caráter autobiográfico; tentativas de girar a trama ao redor de alguém pobre, um(a) serviçal; algum contexto social de época ao fundo. E, no entanto, assomam um bocado mais esquemáticos. Essas duas produções brasileiras, aliás, possuem méritos, mas esbarram no mesmo melindre: hesitam no instante de revelar a unicidade, a intensa particularidade dessas personagens envolvidas em tais relações de classe. Ao menos do modo como vemos essas intensidade e particularidade reverberando em Cleo.
Quer dizer, os filmes brasileiros hesitam em demonstrar sentimentos que eventualmente possam baralhar, empanar ou não sublinhar expressamente a luta de classes, uma vez que o pensamento político mais ortodoxo e prevalente à esquerda, por aqui, ainda apregoa que essas relações devam ser invariavelmente estremecidas e postas em proscênio. E ao paroxismo. E esse zênite aqui floresce, na prática, hoje em dia, sob o auspicioso nome de "lacração". E, patente, na lacração há mais reação que re-flexão. Há mais linchamento em estado larval que vontade de pensamento analítico de longo prazo e/ou aberto à conversa e seus humores, pilar do humanismo. Há mais justiceirismo que justiça. O lacre é uma espécie de Lei de Gérson. Só que aplicada por minorias. Quando há um fundo de verdade, até justifica-se. O problema é quando não há nenhum, e se quer levar no grito. Ainda que a base histórica do argumento seja cheque sem fundo. Há nela um ressentimento, algo mais de histérico que de histórico.
Logo, o que falta a esses filmes é certa sinceridade básica no trato das emoções. Uma viagem mais honesta e em linha reta ao caso concreto, com seus poliedros de experiência, quase sempre não redutíveis a esquemas prévios ou teses políticas bem intencionadas. Especialmente quando tais teses são empregadas também para justificar alguma forma de violência ou arbítrio. Isto é, seguem trespassadas de 'volubilidade' e de 'capricho', no sentido de Roberto Schwarz. Ou melhor, no sentido com que Schwarz nos aponta o modo como Machado de Assis habilmente captura a psicologia do brasileiro -- e, bem entendido, não só a "do homem de elite". (E quem duvidar, estude algo em torno da personagem de Prudêncio, no Memórias Póstumas). E, claro, uma das piores formas de violência: a não admissão da existência e contiguidade de ideias não exatamente coincidentes com as professadas por certa fração da esquerda. Por sua fração mais institucionalizada em partidos.
Ou pode-se dar aqui uma espécie de duplo reconhecimento: 1.algumas crianças brasileiras num passado recente, como as mexicanas retratadas em Roma, nutriam por criadas ou criados, que conheciam condição bastante subalterna e precária, uma afeição determinante; 2. por sua vez, essas babás e criados a elas devotavam uma atenção e um amor ainda mais incondicionado e comovente. Essa devoção não era menos percebida pelas crianças. Porém tanto a afeição das crianças quanto a devoção e o estoicismo das babás, ao que parece, tinham de ser negados -- ou no mínimo depreciados -- por diferentes estratégias racionalistas e leigas, via de regra vinculadas à psicanálise e ao marxismo ortodoxo. E o que se vê em Santiago e Que horas ela volta? é essa mesma estratégia da recusa. No caso, uma recusa de tratar esses sentimentos únicos, como forma de dispor, de adequar o discurso desses longas a certo discurso prévio. E, a partir desse alinhamento, ressaltar apenas os não menos inquietantes estranhamentos de classes contidos nessa relação delicada, compósita, desigual, e mediada por sentimentos tão arrebatadores.
Uma relação que tanto reflete as disparidades sociais da América Latina, seus paradoxos. Mas que também não deve, se tomada caso a caso, recusar essas afecções espontâneas em favor do bloco, do discurso genérico, sob pena de perda de concreção e complexas ressonâncias de micro-história. Quer dizer, não deve recusar, não deve omitir também o amplo circuito de sentimentos que, por igual, a compõe. Afinal, uma criança de seis anos não pode simplesmente chegar para a babá e dizer: "em nome da revolução, Cleo, é um erro aceitar seu amor. Você é minha inimiga de classe, é semi-escrava, é sub-paga, vive numa quase senzala aos fundos da casa. Logo, não devia me amar ou arriscar sua vida para salvar minha irmã. Está tudo errado". Talvez mesmo um adolescente de quinze ainda não consiga formular um discurso assim. Embora alguém adulto possa fazê-lo. Mas se o manifestasse à empregada, apenas revelaria, evidente, uma boa fração de puerilidade e estupidez. Pois quando se cata um aspecto assim pessoal para tratar, é impossível tratá-lo com a objetividade e o distanciamento com que se trata um tema que não é da ordem da intimidade. Que está sendo abordado como epifenômeno social.
Ora, há tanta devoção e bondade envolvidas em muitos desses casos, que não se sabe o que fazer com elas. E essas afecções são tão poderosas que ocupam de imediato o centro da trama em detrimento daquilo que seria supostamente mais interessante ressaltar: o conflito de classes. Isso desconstrói, por si, toda uma boa vontade de esquerda. Um discurso clássico de esquerda. Um tanto ortodoxo, empoeirado, desconstruído por todo lado, mas que para o mainstream da esquerda no Brasil prevalece com força de dogma. Ou seja, como herança de um "centralismo democrático". Aliás, um centralismo democrático extremamente autoritário, embora, no passado, parecesse playground no recreio de ideias -- nas suas pulsões gramscianas e trotskistas -- ao menos quando comparado à ortodoxia stalinista.
No caso de Que horas ela volta? tenta-se, então, malbaratar esses sentimentos a todo custo em nome de certa perspectiva supostamente "menos emocional". Como? Sabe-se da devoção da babá pelo filho da patroa. E, assim, para atenuar a grandeza desse sentimento, o roteiro convoca do Nordeste para São Paulo a filha que a babá havia deixado para trás com uma irmã, anos antes. Essa filha, na trama, será preterida em favor do filho da madame, durante algum tempo. É a fórmula encontrada para fazer com que o espectador não empatize com a beleza suscitada pela devoção da criada por esse filho "adotivo", de classe média.
A solução não parece boa. Por várias razões. A sabedoria popular nos informa: "mãe é quem cria". E é precisamente por isso que o filho da patroa é mais filho da empregada. Mas também que a filha da empregada, que ficou no Nordeste, é mais filha da irmã da empregada. Logo, ressuscitar essa filha, que é mais filha da irmã, para impedir que o espectador valorize o vínculo entre o filho da patroa e a empregada, surge apenas como tentativa de amesquinhar a força do vínculo em favor do conflito de classes.
É também curioso: os que expressam reservas a Roma parecem nunca mencionar: trata-se de um filme mexicano. Em tema e estilo. Em forma e fundo. Ao contrário de Children of Men (2006), The Revenant (2015) , The Shape of Water (2017) ou mesmo Gravity (2013), quando realizadores mexicanos põem-se a versar sobre coisas do universo estadunidense, anglo-saxão ou mais ortodoxamente "Ocidental". E é estratégico que um filme do tipo, que conta um México tão sutilmente a partir de um microcosmo, possa fazer frente, com sua humanidade e criteriosa reconstrução de época, à construção de um muro. Assim, o fato de um diretor mexicano ter ousado extrair desse universo da vida privada na América Latina uma impressão menos clichê que a dos brasileiros, enfeza a não poucos. Pois a solução de Cuarón em Roma é densa. E trabalha bem a micro-história. É um tanto mais paradoxada, oximoresca, ambígua que a de seus sucedâneos brasileiros. E, portanto, parece, mais que desnortear, irritar profundamente quem pensa exclusivamente a partir daqueles dogmas ou moldes políticos um tanto previsíveis, esquemáticos.
Porém esquematismo e previsibilidade pouco têm a ver com vida e arte. E, logo, com a unicidade e a multiplicidade de vivências e de sentimentos contidos nesses encontros entre criadas e crianças lá nos já distantes anos 1970. Pois criadas e crianças, não devemos esquecer, têm algo em comum: constantemente serem convocados a prestar renovados votos de obediência, lealdade e contenção aos patrões/pais. Às vezes, se revoltar contra eles. Contra patrões/pais adultos, afluentes e volta e meia despóticos. Isso congrega criadas e crianças. (E nesse rumo, Cuarón vai mais além, ao sugerir uma tácita, inequívoca aliança entre Cleo e a patroa -- a despeito de violências e humilhações experimentadas pela primeira nas mãos da segunda, num cotidiano recente).
Aqui, o ativista de esquerda brasileiro mais lambe barro parece esquecer do menos esquemático dos autores marxistas: Walter Benjamin. Em "O Narrador", Benjamin apela para um relato de Heródoto, o arquétipo do contador de histórias no Ocidente. Entre outras, para apontar sua concisão psicológica. Para ressaltar a falta de explicações a cerzir nexos causais ao longo de uma narrativa. Benjamin ilustra sua tese, que contrapõe a narração à informação, com um relato de Heródoto. Um relato que, por via tangente, toca na questão do serviçal:
Quando o Rei Egípcio Psamênit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psamênit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo, de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de escrava, indo ao poço com um jarro para buscar água. Enquanto todos os egípcios lamentavam esse espetáculo, Psamênit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida, viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, prosseguiu imóvel. Mas quando viu um de seus criados, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero. //Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informação só tem valor no instante em que é nova[...]
[Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, Obras Escolhidas, Vol.1, Brasiliense]
E então, Benjamin segue, a tecer uma análise da cena conjurada pelo autor das Histórias. Mas, aqui, podemos, por igual, dizer que a leitura "política" da relação entre criados e crianças na América Latina, feita por artistas e intelectuais brasileiros, é, de momento e no atacado, inteiramente rendida aos signos da informação. Não aos mistérios da narração, que indicam os contornos do específico e do concreto. Como em Heródoto. Como na micro-história. Em Os Sertões. Em Casa Grande & Senzala. Ou na nova historiografia francesa (Annales), inaugurada por Marc Bloch e Lucien Febvre -- a mesma que conheceu sua terceira geração em Emmanuel Le Roy Ladurie.
Portanto, como densa compreensão e ênfase dadas ao aspecto afetivo que brota das complexas relações entre criados domésticos de classes pobres ou indigentes; e crianças e patrões de classe média ou de elite, num passado recente -- motivo caro à América Latina -- o filme de Cuarón dá de dez nas mais expressas (e não menos esquemáticas e "mea-culposas") tentativas de lidar com o mesmo fenômeno cá pelo Brasil. Porque há situações e sentimentos que precisam ser expressos a despeito da ideologia do autor.
Isso é ainda mais problemático, aliás, no caso de Santiago. Algo que faz lembrar o dito do soneto e da emenda. Pois a palinódia nesse documentário, a revisão, a "mudança de consciência", estereotipada como possa ser, faz exatamente o movimento inverso ao de Cuarón (e ao do Heródoto lido por Benjamin): parte do específico e acaba sucumbindo, reabsorvendo-o no genérico e no tipo. E para conciliá-lo com uma teoria prévia. Com uma fôrma discursiva anterior. Pois, ao fim de tudo, expõe Santiago, o protagonista, como uma espécie de aberração ou de aporia social. Sai-se de Santiago com a impressão de que parte da humanidade do mordomo foi espoliada pelo desejo de conformar, de re-alinhar a relação entre ele e o autor do filme a um esquema político prévio, que censura tanto a afluência do próprio autor quanto a subserviência e a subjetividade da própria personagem.
Daí o interesse bem maior que Roma, ao contrário de Que horas ela volta? ou Santiago, têm despertado na Europa e nos Estados Unidos, onde essa relação criados x crianças x patrões não é tão densa, dramática, antitética, outra, ambígua. Não é assim única, díspar, "fora de lugar". Aqui, ao contrário de lá, não é algo tão obviamente redutível a esquematismos de classe. Ainda que nesse ponto se processe uma inversão. E não tenhamos em relação aos motivos, aos temas deles, a mesma cobrança, a mesma exigência de um mea-culpa de classes que reservamos para filmes latino-americanos ou brasileiros.
Em Phantom Thread (Paul Thomas Anderson, 2017), por exemplo, o patrão casa com a empregada. Há uma relação assimétrica. Desigual. O patrão é afluente. Trabalha para a nobreza, para a alta burguesia britânica, e até continental. A empregada não tem onde cair morta. É uma imigrante que chegou dia desses, do continente. E, nesse ínterim, o patrão pode revelar-se bem mesquinho, e agir de modo bastante rude: humilhando a empregada/esposa em mais de uma ocasião. E, no entanto, nunca lembramos de situar um caso assim numa perspectiva classista. De luta de classes. Um embate desigual. Pois nos ocupamos prioritariamente com sentir a força, a singularidade de duas personagens. E elas não são, digamos, em sua humanidade, tão fácil e estereotipadamente redutíveis às questões de classe. Talvez porque fomos educados para entrever a realidade europeia e americana como normal. E, logo, elas sejam menos convenientes à caricatura e ao clichê que a nossa própria realidade.
Já por aqui, nem mesmo em A Hora da Estrela (Suzana Amaral, 1985), a protagonista escapa de ser também um poço de clichês, uma vez que, ao contrário da novela de Lispector, o longa some com certa hesitação -- misto de compaixão e repugnância -- do narrador da história. E esse narrador, no livro, é alguém branco, do sexo masculino, de classe média, inserido em certo contexto urbano e Ocidental, numa metrópole do Sudeste. O que vemos relatado no livro não é senão sua tentativa de surpreender, de adivinhar o mundo de Macabéa. Escrever sobre esse mundo. E ele exaspera-se em tal tarefa. Clarice Lispector teve a intuição de propor essa ressalva. Como quem diz: não sei se tenho experiência e autoridade para falar de um universo que conheço tão pouco. Mesmo levando-se em conta, aqui, o fato de Clarice Lispector -- criada em Maceió e no Recife -- ser de fato uma nordestina.
Parece que ao desistir de tentar lidar com esse aspecto do texto no filme, o do narrador enviesando a contação, cismando com ela -- um aspecto que tão obviamente propõe outras camadas de complexidade narrativa -- Suzana Amaral também restringe seu filme. Torna-o mais unilateral. O que vemos nele é tão-só o modo como Macabéa é concebida, no livro, por esse escritor sudestino em crise: uma personagem mas, ao mesmo tempo, muito mais uma espécie de tipo ideal weberiano, de abstração. E a crise do escritor provém justamente de ele ser incapaz de transcender essa situação. De pelo menos desconfiar que é incapaz de mergulhar de fato nas variedades, nas pluralidades de mundo em que vive Macabéa. E inclusive em instâncias de prazer, lirismo, pesar e dramaticidade que lhe são muitíssimas mais várias, ricas, inapreensíveis.
Aqui, há algo mal equacionado. Há uma tentativa -- ainda tímida por parte de Lispector -- de dimensionar a crônica dificuldade dos autores ou realizadores brasileiros, em sua maior parte gente de classe média alta, em lidar com a representação de si próprios e, por consequência, de tudo aquilo que não são. Há um abismo, um fosso tão grande entre classes, que o excesso de escrúpulo, característico de certo tratamento dado aos roteiros, tem de iniciar-se sempre por uma espécie de mea-culpa que não raro se consolida por uma profissão de fé marxista ou psicanalítica. Isso espolia um tanto da liberdade ensaística que qualquer filme -- até mesmo o mais narrativo e lírico -- deve prezar.
Em Barton Fink, os irmãos Coen propõem um roteirista de esquerda cujo projeto é dar voz ao "homem comum". O problema é que, na trama, cada vez que esse "homem comum" tenta contar sua história, é obstruído de partida pelo roteirista, pois este no íntimo parece muito mais interessado em garantir seus privilégios de classe, seus caprichos, mascarando-os sob categorias ideológicas de esquerda e fazendo-os coincidir com conceitos apreendidos em insípidas palestras ou páginas edificantes. Ou seja, ele empenha-se na defesa de um "homem comum" que não resiste passar da abstração à concretude. Do simpósio de pós-graduação ao tédio de vender seguros a donas de casa, à porta da rua, manhã após manhã.
Houve críticos que lamentaram esse modo de retratar a esquerda americana em Barton Fink. Esquerda que, entre outras, fôra bem sucedida então na luta contra o fascismo, à época em que se passa a trama de Barton Fink. Os Coen negaram que seu roteirista fosse uma alegoria de intelectual de esquerda ensimesmado. E, no entanto, Joel Coen também afirma que a narratividade de Barton Fink é intencionalmente ambígua. E pode-se concordar ou discordar de Coen quanto ao emprego do recurso alegórico. O mais importante a registrar aqui, no entanto, é outra coisa: o quanto as esquerdas americanas são menos autoritárias que as brasileiras. São mais abertas ao reexame, à auto-crítica. São capazes de reavaliar até que ponto vêm sendo bem sucedidas de fato na tarefa de auscultar e dar uma voz aos pobres. Aos marginalizados. Aos que não têm vez. Ou voz.
Logo, as tentativas de abordar o assunto surgem um tanto esquemáticas no Brasil, onde ser de esquerda já constitui uma espécie de álibi que parece inocular contra, digamos, a ineficiência e o descaso no trato da coisa pública. Um falho da esquerda ao empregar verbas públicas irá sempre parecer, assim, mais justificável que um da direita. Ainda que o desfalque seja de mesmo valor, para erário público. Pois, para a esquerda, parece haver, nesse ponto, uma espécie de ressalva moral contra eventuais equívocos. Ou contra qualquer ineficiência administrativa. Aquilo que Agamben nomeia como 'oikonomia', e que guarda também, segundo ele, um componente escatológico, da ordem do Apocalipse.
Como exemplo de algo que propõem a receita desse esquematismo, há o livro clássico de Jean Claude Bernardet: Cineastas e Imagens do Povo. Nele, Bernardet exorta os jovens realizadores de ficção, os documentaristas brasileiros, a traçar um movimento análogo ao traçado por alguns diretores cinemanovistas. Como Geraldo Sarno, João Batista de Andrade ou o próprio Eduardo Coutinho. Ainda que renovando essa perspectiva quanto aos dispositivos, à análise da representação e o próprio status da representação; questionando-os quanto ao naturalismo da transparência, a entrevista como protocolo, etc. Ou seja, derivar com alguma revisão, algum ajuste, esse "outro de classe".
É, de resto, o mesmo itinerário traçado, posteriormente, por João Moreira Salles em Santiago. Esquematicamente. Um movimento de retratação de classe. De mea-culpa. Ora, é justamente a ingenuidade contida nessa premissa, nesse fluxo no rumo do engajamento marxista e gramsciano que tranca a porta a certo fluxo imaginativo e meio casual em Santiago. Pois não se imagina, digamos, Bresson pedindo desculpas por ser católico de tendência jansenista. Por fazer parte de uma pequena elite que lê Pascal, Diderot, Dostoiévski, Tolstói, Bernanos, e deleita-se com Dinu Lipatti interpretando Bach. Por apreciar bossa nova. Por discorrer sobre pintores como Wols. Por integrar um patriciado intelectual francês que às vezes parava para ouvir Bazin falar sobre filmes. Por fotografar para a Maison Chanel, e conviver com o mundo da alta costura parisiense. Por herdar algo da sensibilidade surrealista em primeira mão, e discutir mitologia com Jean Cocteau. Nunca vemos Bresson pedindo desculpas por isso. Deveria pedi-las? Poderia fazer seus filmes, sem isso?
Por igual, nunca vemos Tarkóvski a se desculpar por ser filho de um poeta e ter tido, à época, a rara chance de haver cursado uma escola de cinema, onde então lecionavam alguns dissidentes do regime soviético. Intelectuais independentes e sofisticados o bastante para fazerem frente à política da Cortina de Ferro, com suas imposições culturais, aparelhamento dos organismos e volúpia de censura e controle. E pô-la entre parêntese. Ou nunca vemos Tarkóvski a pedir desculpas por, quando pouco mais que um adolescente, haver adaptado um conto de Hemingway como uma espécie de TCC, nessa mesma escola: The Killers (1956). Por isso, por ter tido a prerrogativa de adaptar um escritor que é um dos luminares do país execrado pelo regime de seu próprio país, nunca vemos Tarkóvski pedindo desculpas. Nunca vemos Tarkóvski pedindo desculpas por pertencer a uma elite intelectual dissidente. Deveria pedi-las?
Muito menos se imagina Orson Welles a pedir perdão à humanidade por vir de uma endinheirada família do Midwest, que lhe propiciou uma educação exemplar, fundamental para a construção das tramas e artifícios de seus filmes. Para o humanismo que se pode perceber num documentário como It's All True (1942).
Também não se tem notícia de que Visconti se esforçava para negar sua origem nobre, uma vez que nasceu no centro de uma família tradicionalíssima de Milão. Quer dizer, Visconti questiona valores e mores de classe. Inclusive da sua própria. Mas nunca aparece pedindo perdão por uma circunstância sobre a qual, convenhamos, não teve qualquer controle: haver nascido numa família rica, nobre e poderosa da Lombardia. Afinal, esse pedido de perdão -- como os pedidos por aqui -- iria soar apenas pueril. Pois uma coisa é certa: pedir perdão por nascer numa família da velha nobreza lombarda não iria "reverter" ou "reparar" o nascimento de Visconti. E sem as contradições e os contextos do meio no qual Visconti foi educado não teríamos filmes como Rocco e Seus Irmãos (1961), O Leopardo (1963) ou Morte em Veneza (1971).
Como sabemos, Santiago é um filme de "tomada de consciência de classe". Nele opera-se uma espécie de rito de passagem que, em determinado ponto, nos revela mais o autor que a personagem por ele fabulada na imagem e no som. Ou absorve-se, inquieta-se, fascina-se mais justamente pela relação entre autor e personagem do que dedica-se a dimensionar a complexidade da personagem. No fim, fica-se com uma impressão um tanto unilateral de Santiago, o mordomo. O problema é que as premissas teóricas e políticas que guiam o documentário são demasiado esquemáticas. Elas acabam espoliando em larga medida o que o filme possui de mais valioso: a unicidade de Santiago enquanto ser humano, a despeito dos motivos políticos do autor, que é também o filho do patrão.
É precisamente ao satisfazer essa cobrança por "mea-culpa de classe" -- esquemática e previsível como seja na ordem do discurso -- que se perde a riqueza do específico e a complexidade de Santiago. E não só enquanto personagem em si, também da afecção -- rica, contraditória, misteriosa, exótica -- que o relaciona com João Moreira Salles. Pois não deixa de ser revelador, um tanto da ordem do chiste, que logo após o filme sequer lembremos de um detalhe: o sobrenome de Santiago. Quer dizer, nesse ponto e muito curiosamente, o documentário assume a perspectiva cordial, de que nos fala Sérgio Buarque.
O documentário, em largos traços, parece mais ocupar-se com reencenar a experiência de Cabra Marcado (1984) sob outras condições de temperatura e pressão. Condições um tanto mais micro ou íntimas, digamos assim. O movimento é o mesmo: retomar um projeto em crise, depois de longo tempo, a partir de uma premissa política reformulada. Isto é, alegadamente mais esclarecida e "madura". Menos "alienada", para usar a terminologia de contexto. Pois há esse inequívoco movimento de retratação, de palinódia, de mudança de consciência em ambos os filmes. E presumivelmente muda-se "para melhor", também em ambos os casos. (O que nunca se pensa é numa possibilidade factível: a de equivocar-se, e mudar para pior).
No de Coutinho, essa revolução é tanto mais dramática: o realizador de um filme de ficção transforma esse filme em documentário, após um golpe de estado que se foi tornando mais e mais truculento, e chegou a ameaçar e efetivamente perseguir os atores do filme, gente ligada ao movimento de reforma agrária. Às famigeradas Ligas Camponesas, de Francisco Julião. Um documentário que tenta elucidar as razões da gravação do filme de ficção haver sido interrompido e a equipe e os atores postos em clandestinidade por algum tempo. Naturalmente, nesse movimento de retomada, cindido por uma longa pausa, a própria noção de representação é posta em xeque. Porque, involuntariamente e pela força das circunstâncias históricas, o filme virou um metafilme. E as fronteiras entre ficção e realidade ficaram de pernas para o ar. Note-se, no entanto, que essas transformações se deram historicamente, na concretude dos fatos, um tanto alheias à vontade, ao controle ou à subjetividade de Coutinho. E o mesmo não se pode dizer do filme de João Moreira Salles.
Em Santiago, ao invés dos sertanejos do Nordeste sob o tacão do latifúndio, temos um mordomo argentino de gostos refinados a servir uma família de diplomatas, banqueiros e cineastas. O fluxo, no entanto -- a pausa crítica e a retomada, agora "consciente", "re-iluminada" em "parte pelo próprio assunto" e pela força das circunstâncias sociais ao redor transcorrendo no tempo -- é o mesmo. E, aqui, como tudo que deriva de um modelo precedente, de modo mais papel manteiga, há ainda uma maior tendência ao esquematismo. Esse esquematismo acaba sublinhado em uma simultaneidade de perspectivas: um aparente alívio de consciência do autor ao mesmo tempo em que esse alívio espolia de vez a humanidade da personagem. Sua unicidade. Aniquila de vez o que há de anedótico e específico - mas também de verdadeiramente trágico - no ser humano Santiago, mordomo dos Moreira Salles. Por outro atalho: em Santiago o esquematismo solapa qualquer possibilidade de ensaísmo. De um procedimento menos teleguiado ou menos previsível.
Seria, então, necessário, aqui, não só ocupar-se dos espaços desprezados pela telerrealidade -- como de uso operam os telejornais, os programas policiais sensacionalistas, os reality shows, com sua ênfase no exibicionismo/voyeurismo -- como nos exorta Comolli; mas por igual da tarefa de fintar de vez esse vício teleológico de esquerda, que se exerce também na forma de uma patrulha. Pois, em seu autoritarismo, ele visa controlar a própria tradução das afecções, no que elas têm de mais específico.
De outro modo, no início do século, tudo levava a crer que uma nova geração de cineastas brasileiros, em parte herdeira justamente de Glauber, Joaquim Pedro, Eduardo Coutinho e de outros cinemanovistas e/ou cineastas da onda marginal e da Boca do Lixo, iria tomar Hollywood de assalto. Havia o êxito moderado de Central do Brasil (1998) e o êxito mais consolidado de Cidade de Deus (2002). E, nessa esteira, José Padilha também ensaiou por lá alguns projetos. Mas não foi bem assim que a história seguiu seu curso. É inegável que Walter Salles (The Motorcycle Diaries, 2004) e, ainda mais, Fernando Meirelles (The Constant Gardner, 2005) fizeram bons filmes por lá. Nada, no entanto, comparável à importância, à pujança, à vitalidade à ressonância que os mexicanos vieram construindo logo em seguida, e detém hoje em dia. Não só na realização, em diversas áreas. Na cinematografia, por exemplo. Basta lembrar de Emmanuel Lubezki ou Rodrigo Prieto. Entre atores, nenhum brasileiro goza de tanto prestígio quanto Gael García Bernal ou Diego Luna. Isso desperta ciúmes.
Como se não bastasse, há a obtusidade de certos setores de esquerda diante das reservas tecidas por Fernando Meirelles ao projeto petista. E aqui grosseiramente se funde a visão política pessoal de Meirelles com a estética ou concepção social presente nos seus filmes. Como se Meirelles -- ou Padilha, ou qualquer outro artista brasileiro, enquanto cidadão -- não detivesse a prerrogativa de tecer reservas ao projeto petista em nome de um estúpido "centralismo democrático". De uma estratégia unificada de combate, que supostamente assoma como a única "forma certa" de se posicionar diante da conjuntura. Ou de uma concepção autoritária, gramsciana de poder. Certo monolitismo que não dorme sem vigiar a mínima possibilidade de voz dissonante. Algo que não só parou no tempo, como empenhou-se, de forma inábil, em aparelhar instituições públicas durante os anos do petismo. Em especial, universidades, instituindo um clima de mini-caça às bruxas com um sentido análogo ao do macartismo: eliminar brutalmente qualquer forma de dissidência dentro de certos departamentos e fóruns de debate.
Em especial, dentro das Humanidades, que são os cursos que trabalham diretamente com discurso. Com a formação desse discurso, sua análise. Seu local e sujeito de proposição. Pode-se, aliás, até discordar do teor das críticas de Meirelles e de Padilha, que são de resto bastante discordáveis. (Sobretudo as de Padilha). Mas não negar a eles o direito de tecê-las. Pois o esforço, por parte desses setores de esquerda, em colocar os filmes de Meirelles e de Padilha numa espécie de Index, é sectário e proto-fascista. Algo rente às práticas de ultra-direita.
Essa vontade de calar a dissidência, junto com certo ativismo intransitivo vêm contribuindo, aliás, para uma espécie de reação brusca da sociedade civil. E mesmo de alguns pensadores e artistas de esquerda, mais independentes. Além disso, claro, constituiu elemento relevante para a chegada de Bolsonaro à presidência. E, no entanto, sequer tem gerado reflexão, autocrítica mais elaborada, incisiva, entre as esquerdas, como demanda o momento. É mais cômodo indicar bodes expiatórios. Ou pôr culpas em dissidentes. Ou tachar de fascistas quem não votou no PT, ainda que só no primeiro turno. Ou acusar Ciro Gomes de traição. Ou Marina Silva de imobilismo. Ou ideologizar a leitura de fatos que não comportam partidarismos, como no caso Battisti. Ou no caso das tragédias de Mariana e Brumadinho. Ou no nebuloso episódio do assassinato de Celso Daniel.
Ou ainda patinar na falta de ênfase quanto a tratar de uma questão chave: segurança e o desmonte do crime organizado. Ou ainda o quanto a organização desses sindicatos do crime espelhou-se em estratégias de guerrilha vindas da esquerda, e absorvidas por presidiários contíguos a presos ditos "políticos". Ou não se investigar a preeminência teórica que os sequestradores de Abílio Diniz detém sobre a formação do PCC. E, entre muitos outros "ous" mais pelo caminho, depreciar as qualidade de filmes como Cidade de Deus e Roma. Afinal, historicamente nossa esquerda é tão autoritária que gerou a expressão "patrulha ideológica" -- criada, não por acaso, por um cineasta: Cacá Diegues. Ele, com a expressão, não se referia à direita, que historicamente é castradora, imobilista, conservadora, menos votada às novidades. Diegues, do contrário, referia-se à porção da esquerda mais institucionalizada, e empenhada no controle das ideias que diferem das suas. Ou seja, em última instância, no controle da diversidade de ideias, e por quem justamente deveria prezar pela robustez dessa diversidade.
Se no passado essa diversidade parecia assegurada no espaço mesmo de argumento do intelectual de esquerda, é porque havia mais humanismo em seu discurso. E, de fato, hoje, marxistas como Antonio Candido, Roberto Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Willi Bolle, Jeanne-Marie Gagnebin, Márcio Seligmann-Silva irão parecer humanistas, quase beatíficos, se contrapostos à truculência de um Vladimir Safatle. Ou certas tendências dominantes no discurso identitário, com todo seu senso de binarismo, maniqueísmo e exclusão.
Outro fator a predispor tantos cinéfilos contra Roma passa, evidente, por um segundo filtro: ataques que visam menos o filme em si que seu modo de distribuição, a força lobista da Netflix, a consolidação das redes por streaming, certa tendência ao truste, etc. E, nessa esteira, há os que ainda seguem de luto pela morte da sala de cinema, que hoje só existe, não por acaso, nos shoppings. (Eis um fator que reúne, por outra, tanto gente de esquerda quanto de direita, e se assemelha a algo como a passeata contra a guitarra elétrica ou alguma cruzada moralista do tipo). E temos de ter paciência ante essa viuvez. Pois ela tende a misturar alhos com bugalhos.
Por fim, Roma também passa ao largo da artificiosa busca de autoralidade que se adivinha na primeira farejada sobre filmografias como as de Iñárritu, Sorrentino, Guadagnino ou Linklater. E, como se não bastasse, há a exuberante cinematografia em preto e branco feita pelo próprio diretor. Numa visão naïf, muitos cinéfilos entendem que esse filme -- tão diverso de The Revenant (2015), de La grande bellezza (2012), de Boyhood (2014), de Chiamami col tuo nome (2017) -- parece enquadrar-se naquela perspectiva de filme desenhado, desde o início, para arrebanhar Oscar. O fato de ganhá-lo ou não, à sua vez, não deveria interferir nos méritos de Roma. Pois não é todo dia que vemos o inexcedível aparato de Hollywood a serviço de um delicado drama de época passado na América Latina.
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