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Filme em retalhos

Conversa#78 -Ano 3- Relances do Já e Agora [2]

Phantom Thread (Paul Thomas Anderson, Estados Unidos, 2017) - cin. P.T.A, Michael Bauman e outros

Uma fotografia bastante granulada. Mas sóbria a seu modo. Minimalista na sua tendência ao rubro, ao anil e ao preto, à sombra, ao abstrato. Há muito detalhe, como convém a uma imagem referindo um modista. Essa imagem granulada, suja mas minimalista, em que personagens ameaçam afundar sobre personagens -- desaparecer entre si, fundir-se -- vai bem com os caudalosos temas de piano aplicados por Jonny Greenwood. Há muito uso do desfoque e pouca abertura de campo. Phantom Thread é um dos filmes mais elegante postos em circuito nos últimos anos. E a natureza dessa elegância, borrada e imprecisa, vai de encontro até mesmo ao classicismo fotográfico que tem caracterizado os filmes de Paul Thomas Anderson até aqui. Geralmente uma fotografia a cargo de Robert Elswitt (a exceção era The Master (2012), em que luzes, lentes e filtros ficaram na conta de Mihai Mălaimare Jr.). Tão clássica que gravada em película. Isso tudo, de certa forma, fica para trás diante de Phantom Thread. E, aqui, o paradoxo que convida à reflexão: como o filme parece quase uma extensão dos anteriores mesmo proposto nesse aspecto fotográfico tão diverso?

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Até o plano/contraplano tende ao abstrato no café da manhã.

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Em diversas tomadas uma área considerável do quadro está preenchido por algo que, ao menos num primeiro instante, não se sabe muito bem o que é, do que se trata. Ou então, a circunstância de alguma forma vela as personagens. Elas parecem quase nunca estar inteiramente dadas a ver.

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Não deve ser fácil contracenar com Daniel Day-Lewis. Ele vem da estirpe dos atores britânicos de sólida formação humanista. Seu pai era um poeta importante, e sua mãe era judia. Seu modelo é Charles Laughton. Não tem a polivalência de Laughton. Não chegou a dirigir um filme quase perfeito, um clássico como The Night of the Hunter (1955). E, no entanto, tomando-se estritamente o ofício do ator de cinema, talvez tenha sido até mais coerente que Laughton. Do jovem médico mulherengo de The Unberable Lightness of Being (1988) a este costureiro meio assexuado e misógino, dado a crises de autoridade num universo de mulheres, passando por tipos irlandeses diversos. Houve derrapadas, como um Lincoln para Spielberg (2012), sua participação em Gangs of New York (2002) e a concessão de ser The Last of the Mohicans (1992). Junto com Walter Brennan e Jack Nicholson, forma a trinca de atores a arrebanhar três Oscars. Ninguém faturou mais. Alguns -- entre os quais ele próprio -- afirmam que está aposentado. Será? .

Alma Elson (Vicky Krieps) aprende rápido. Logo está tomando o breakfast em silêncio, passando a geleia na torrada com a quietude com que costuma bordar tarde da noite. A irmã (Lesley Manville) de Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) aprova moderadamente seus esforços. Aliás, dificilmente alguém que não é de língua inglesa ou morou em país anglófono pode dimensionar o quão soa de um brega estranho, pomposo, passado e involuntariamente meio obsceno o nome do protagonista.

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Muitos mergulhos e contra-mergulhos em escadas = Ophüls--->Kubrick.

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Que maravilhosa atriz é Harriet Sansom Harris na pele da histérica Barbara Rose. Rose é uma socialite que vai contrair casamento, contestado pelos tabloides ingleses, com um playboy latino-americano, mais jovem e não tão afluente. Sabe-se bem atrás do que alguém assim anda. É impresso em cédulas, começa com d e termina com inheiro. Logo, ela tem de ser agressiva diante da nada angelical imprensa britânica. A personagem é decalcada de Barbara Hutton, uma rica herdeira que, já na maturidade, casou-se com o diplomata e playboy dominicano Porfirio Rubirosa. No filme, Rubirosa se chama Ruben Guerrero. Em uma das cenas mais grotescas, Barbara desaba sobre o tampo da mesa na festa de anúncio de seu casamento. A atmosfera tensa provoca o comentário de Alma:

--This dress doesn't belong here.

Nesse momento, entre outras coisas, percebe-se nitidamente que o tema musical composto por Greenwood é sobreposto à música ambiente, tocada na recepção de Barbara Rose. Ou seja há uma colisão proposital entre o que se convencionou chamar pretensiosamente de "música diegética" e o tema musical da banda sonora. Todo o vexame da cena com Barbara e seu playboy desencadeia a fúria de Woodcock. Ele exige da governanta que o vestido seja retirado de Rose, que adormecera com ele no corpo. Alma adentra os aposentos para cumprir essa missão.

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Uma das clientes de Reynolds desperta ciúmes em Alma. Ela é bela e nobre. Uma princesa belga. Alma trata de preparar um jantar romântico em aberto desafio. Mas Reynolds, agindo exatamente como a irmã antecipara, não aprecia em nada surpresas.

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--What precisely is the nature of my game? -- diz Reynolds. Claro que há complicações aqui. Reynolds ama Alma. Não deseja, porém, desfazer-se de uma rotina de trabalho estabelecida ao longo de anos e muita disciplina. Ele foi moldado sob valores vitorianos. E para Alma, jovem, sanguínea, vinda da Europa Continental, talvez a prioridade dada ao trabalho por Reynolds não seja o suficiente para a consumação do amor. Para confirmar que de fato ela e o estilista são um casal.

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Uma história que põe no fio da navalha a perspectiva feminina de amor. Parece herdar essa perspectiva mais de Ophüls que de Ray ou Sirk. Até pelo fato de que seja aqui ainda algo idealizado, maneirista, um tanto a gosto do séc. XIX. Algo dos códigos de uma elite. E também por isso aproxima-se dos contos sofisticados, delicados e dos temas cínicos de Schnitzler e Zweig. Da perspectiva de Ophüls, que decalca seus motivos da mundanidade vienense belle-époque. Pelo tema, de Letter From an Unknown Woman (1948). Pelo contexto social, de The Earrings of Madame de (1953). Não menos pelo papel de um dispositivo doméstico de conexão, que se faz tão presente nos três filmes: a escada. Parte importante de Phantom Thread sobe e desce por ela. De qualquer modo o mérito está posto, pois uma disposição maior para sondar a psicologia feminina em casos como este passa mais por perspicácia que por atrevimento, e seja raro. No frigir, Reynolds e Alma formam um casal charmoso, e nada convencional.

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Mas há também em Alma, por trás de uma mulher longilínea e belíssima, um quê de camponesa, da que cuida. Da criada. Cuida mas também é volúvel, dada a vinganças: envenenar o amante/patrão com cogumelos malignos por ciúmes e certa falta de estamina quanto a assumi-la como esposa, parece um tanto um ato de fé camponês. O mais grave disso tudo, para a saúde de Reynolds, foi o atraso no preparo do vestido de casamento da alteza belga. E uma verdadeira brigada feminina, em quatro diferentes mesas, faz o reparo do vestido revezando-se pelas horas da madrugada.

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A câmera gira em torno de uma das mesas em que o vestido da alteza belga está a ser restaurado e concluído ao longo da noite. Terá de ser entregue às nove da manhã. As mulheres costuram à mão. Alma as auxilia. Uma situação tão prosaica reveste-se de uma urgência análoga ao de uma ameaça de ataque alienígena.

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Nesse ínterim Reynolds tem um sonho divinatório com sua mãe. É mais que um sonho, um delírio. Como se fosse por igual uma despedida. Uma última assombração, antes da troca de turnos da mãe para a esposa. Já que Alma está prestes a ocupar um lugar central na vida do birrento solteirão. É ela quem dissipa o fantasma, ao entrar no quarto vindo de horas extraordinárias, gastas no reparo e conclusão do vestido.

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Alma e Reynolds acabam casando-se a meio filme. Ainda que Reynolds na viagem de lua de mel ainda obstine-se com o modo como Alma faz excessivos ruídos ao café da manhã. E no hotel da estação de esqui há uma ampla escada para Alma e Reynolds subirem e descerem, muito elegantes e levemente entediados. É época de Natal. A lareira está acesa. O filme torna-se mais lento e europeu. E agora as coisas se invertem: é a atenção do médico por Alma que desperta os ciúmes de Reynolds.

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--I'm not very dancing -- diz Reynolds após o insistente convite de Alma para dançar. Há algo de muito britânico nesse modo de expressar-se. Seu plano na noite de Ano Bom é ficar em casa e...trabalhar. Alma contudo é suficientemente sã para sair sozinha e compensar-se. Satisfazer sua juventude, com uma festa. E então é Reynolds quem vai atrás dela.

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Nenhum dos temas propostos por Greenwood é particularmente memorável, com a possível exceção do que ocorre quando Alma e Reynolds se estremecem após o casamento. Esse tema (Phantom Thread III) -- dramático, disruptivo -- ocorre orquestrado e, logo a seguir, em piano solo, no instante em que Alma pela segunda vez prepara seus malignos cogumelos. Os temas do dia a dia, das rotinas dos recém-casados estão mais na esfera do impressionismo francês: cascatas de som um tanto frívolas e tendendo à música diversionista, tipo papel de parede. (Podia ser uma bossa nova, aliás). Mas isso é ainda mais virtude que pecado, e acrescenta méritos a Greenwood. Pois não é fácil escrever temas que entram e saem compondo com os de Schubert, Fauré, Brahms, Berlioz, Alberti e Debussy. Isso para não falar das canções que alternam standards de jazz assinados por Oscar Peterson a outros do porte de "My Foolish Heart" e "Daydream".

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É compensador deparar-se com filmes que se prestam tão pouco à polarização e a ideologização baratas, que ora testemunhamos nas redes sociais e por toda parte. Parece que filmes assim desnorteiam um tanto quem vive em função desses delírios simplistas. Pois quem vive em função disso não tem olhos para se aprofundar sobre outras questões. A tal ponto de não perceber que a relação entre Reynolds e Alma está quase tão carregada de contradições de classe quanto a de Cleo e os patrões no filme de Cuarón. E isso se dá porque se propõe política partidária, ou as novas ortodoxias de gênero como circunstâncias tão centrais e absolutas, na América Latina, que essas pessoas tomam as premissas ideológicas com força de fé. Dogmaticamente. Mas não deixa de ser revelador que se cobre insistentemente de Cuarón o desnudamento das contradições de classe. E que não exista tal cobrança no caso de Paul Thomas Anderson. Especialmente quando essas premissas são usadas como lentes para a leitura de realidades locais. Ou seja, são assumidas com o fervor neófito e a cegueira característicos do neo-pentecostal recém-converso. O evangélico recém-converso e o recém-ativista político -- de esquerda ou direita, tanto faz -- são o mesmo homem. Ambos seguem imbuídos não de sede de verdade ou de justiça, mas da mesma síndrome justiceira ou miliciana. O oco não é pouco, é o mesmo, e não é mais embaixo. Pois não há mais essa possibilidade. E parece que em todos os outros seres na face da terra pode-se presumir a existência de alguma compaixão. Mas no caso dessas pessoas é diferente. E elas estão muito próximas de terroristas. O que as move não passa de certo impulso vindicativo. E até praticam terrorismo no cotidiano, linchando e perseguindo quem se encontra à volta e expressa a mínima discordância. Esses são eliminados, sumariamente. (Como no caso de Marielle Franco de um lado, ou de Celso Daniel do outro.). Parece algo que nem uma leitura do Eclesiastes é capaz de aplacar. E elas necessitam de um Salvador da Pátria para viver. Não encontrarão seu salvador, no entanto, em filmes como este.

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Trama Fantasma é uma história estranha. Uma história estranha de amor. Faz lembrar, ao largo de Pigmaleão e analogias mais feijão com arroz, de o quanto escritores aproximam o amor de aspectos fantasmáticos. Walter Benjamin nos diz: "aquilo que se sabe estar prestes a não se ter mais diante de si torna-se imagem". Bioy-Casares: "estar apaixonado por uma dessas imagens era pior do que estar apaixonado por um fantasma (talvez tenhamos desejado sempre que a pessoa amada tenha a feição de um fantasma)“.

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Este é o tipo do filme que, a exemplo do Eyes Wide Shut (1999) de Kubrick, só tende a magnificar-se ao longo dos anos.

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[Fortaleza, 27.08.2018]

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