Para cinéfilo, doutor
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Conversa#79 -Ano 3- Relances do Já e Agora [3]
The Other Side of the Wind (supostamente Orson Welles, Estados Unidos, Iran, França, 2018) - cin. Gary Graver
Este vai bem com cinéfilo, doutor e doutorando. Ou todo aquele que irá desencavar, por força de obrigação profissional ou instinto de aficionado, uma série de novos conceitos. Esses conceitos, apesar de proferidos de forma solene, irão durar o espaço de uma defesa de tese ou de uma análise pós-filme em grupo. Depois, claro, serão esquecidos para todo sempre. É um pouco como a tarefa daqueles anjos-cantores, descrita por Benjamin: entoam seu hino diante da Divindade, sentada em seu trono, no auge de sua glória, e resvalam aos abismos do anonimato para o resto da eternidade. Mas antes desse olvido eterno, é por-se a discutir um bocado de coisas e nexos que sequer se encontram na imagem ou constituíam prioridades à época da gravação do longa. Mínimo vestígio deles. Sexo dos/ mais que Augusto dos Anjos. E a Orson Welles, a figura do farsante, do cafajeste, do ilusionista, sempre foi bastante prezada. A trapaça para Welles guarda proximidade extrema com o ato de representar. Logo, com o ato de ficcionar, de contar, de entreter, de fazer arte. Daí sua devoção aos vigaristas, aos falsários, aos disfarces, à maquiagem e aos sotaques.
Grandes cineastas deixaram grandes projetos inacabados. Mas, se com uma lupa fôssemos investigar esses projetos, e é possível que alguns deles tornassem menores seus quase autores. Einsenstein jamais concluiu uma adaptação de O Capital. Bresson, uma do Gênesis, além de um filme sobre Santo Inácio de Loyola que chegou à fase de pré-produção e seria gravado em Roma. Várias vezes adiou uma de suas obsessões: um filme sobre Lancelot. Huston, por sua vez, conseguiu editar uma versão do Gênesis -- ou de um episódio dele inserido num contexto mais amplo -- mas esse esforço passa longe de se encontrar entre suas melhores fitas. Ophüls teve seu filme sobre Modigliani concluído postumamente por Jacques Becker. Glauber vivia delirando em torno de ideias que nunca realizou. Algumas só existiram, por segundos e fração, em intensas entrevistas. Erráticas entrevistas. Pairam dúvidas sobre se, com sua linha de trabalho, teria alguma chance em Hollywood. E Welles, bem, Welles foi pródigo em projetos abandonados ou inconclusos. Por libérrima, espontânea vontade ou compulsoriamente.
Um filme dirigido por Orson Welles e estrelado por John Huston, Peter Bogdanovich, Norman Foster, Lilli Palmer, Edmond O'Brien, Mercedes McCambridge, Cameron Mitchell, Susan Strasberg, teria sido a última bolacha desse pacote. E, vendido assim, é de deixar babando, na ponta dos cascos a todo cinéfilo mais soldadinho de chumbo. (Dá até pra esquecer que o filme foi distribuído pela Netflix, condição muito mais ressaltada, p. ex., nas análises de Roma). Mas a verdade é que The Other Side of the Wind -- espécie de practical joke, rocambole e imbróglio -- passa longe dos esforços mais modestos e de outros itens póstumos e/ou inacabados de Welles. E não chega aos pés da coerência e da cinematicidade de documentários como It's All True. Ou de seus projetos para a televisão britânica. Ou de F for Fake. Ou mesmo de Don Quixote. Vai fazer muito sucesso, no entanto, entre aspirantes à direção, pós-graduandos de cinema, esquerdistas de rede social, outros expectantes nesse rumo. Ou seja, vai fazer muito sucesso entre mais ou menos bacharéis.
Deve ser vexaminoso hoje em dia conciliar cinefilia e Netflix. (Especialmente se você foi turrão com as redes de streaming pagas, ao início). Não só pela brutal nostalgia de algo que está praticamente extinto, mas pelo modo como a Flix vem sucessivamente cooptando algumas referências caras aos "amantes da sétima arte" e da "melhor diversão". Primeiro foi Bong Jong-hoo. Em seguida, não foram senão os corrosivos irmãos Coen. E então já anunciam Martin Scorsese por streaming. O que virá depois? Michael Henecker? Lars von Trier? Aki Kaurismäki? Bélla Tarr? PTA? Andrey Zvyagintsev?
A Flix corta na carne dos cinéfilos. Indiferente, triunfante. A Flix não quer saber de apelidos. Devora onivoramente escrúpulos delicados junto com muita lenga-lenga narcísica e/ou pulsão exibicionista disfarçada de ativismo de gênero e de amor pelo cinema.
Todo esse panorama, aliás, deve dar pano pras mangas quanto ao surgimento de uma carrada de novos conceitos, tinindo de inutilidade, mas que devem ocupar centenas de bolsistas de "iniciação científica" pelos próximos cinco anos. Além, claro, de alimentar os usuais livros de compilação e revistas indexadas. Aqueles que ninguém lê. Ou talvez ainda se passe a retina no nome dos integrantes das comissões editoriais. É, como se sabe, a seção mais lida desses periódicos.
E em que consiste O Outro lado do vento? Num bando de americanos tripudiando dos cineastas "cabeças" europeus, tipo Antonioni, e se divertindo horrores. A todo instante lançando piadas internas cabeludas. Welles teria presumivelmente editado 40 minutos dessa bagunça, embora não se perceba quais. E, logo, tal presunção bem pode ser posta em xeque. Nada na edição, de cortes bruscos, televisivos, possui qualquer cacoete dos filmes prévios do diretor de The Lady from Shanghai (1947). E, ainda assim, ninguém parece se importar com isso. Ou que os outros 82 minutos tenham sido editados por um pé rapado qualquer. Afinal, está gerando divisas pra Dona Netflix. E ela agradece. Sobretudo porque esse faturamento está se dando em cima de algumas de suas nêmeses, de seus mais inamovíveis inimigos: os cinéfilos, a prantear a extinta sala de cinema. E porém quando os atores e a equipe se divertem mais do que trabalham, dificilmente a coisa engrena.
Como documento, claro, é imperecível. E devia ter sido lançado nesse registro, além de conter outras ressalvas. Ao invés de ser imposto goela abaixo do pobre cinéfilo como um filme póstumo do diretor de Touch of Evil (1958). E pode-se imaginar Welles gargalhando no além. De quê? Do zelo castiço com que alguns de seus fãs tomam a sério e citam meia dúzia de platitudes e frases solenes ditas em perfeita ironia. (Quando não, em aberto deboche). Ou as repropõem em suas resenhas, posts e teses. Ou então, de alguém decretar que o filme seria "um exame de o quanto 'machismo de autor' é no fim de tudo apenas bobagem". Credo. Quanta bobagem.
Porém nem todo mundo comprou o logro. E é bom a Netflix ir se acostumando. Um dos que conseguiram driblar o oba-oba e a roupa nova do rei, desta deita, foi David Ehrenstein, do Los Angeles Blade. Sua resenha rema contra uma maré de lua. Ressaca de prefácios de março. Ondas que quebram na Praia de Peniche.
Não foi a única. Longe disso.
Pode-se apreciar o filme por várias outras razões. Como documento de época. Como testemunho da amizade entre realizadores estadunidenses, e a mundividência por trás disso no início dos anos 1970. Por trás de tantos chistes e piadas. Mas enquanto algo da ordem da cinematicidade, enquanto filme em si, com suas regras de jogo, não há muito o que louvar. E é possível que a filmografia de Welles não ganhe nada de excepcional com a incorporação meio compulsória deste The Other Side of the Wind, do qual ele teria editado menos de 1/3.
Se é que editou.
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