Coincidência
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Conversa #93 -Ano 3- Oeste por toda parte [9]
True Grit (Henry Hathaway, Estados Unidos, 1969) - cin. Lucien Ballard
Às vezes não parece uma caçada a um assassino sanguinário. Há algo de pastoral e límpido nas paisagens que sucedem ao longo de True Grit. Uma calma que briga com a violência da trama ao fim de tudo. A trilha sonora um tanto brejeira, o outono, os troncos brancos dos abetos ou castanhos dos pinhos, um riacho serpeando no centro do vale, o amanhecer na montanha, em meio a imensas rochas. O fato de uma mocinha despertar no meio dessas grotas e checar em volta, com um olhar penetrante, o cenho franzido e uma permanente interrogação no rosto também contribui para esse sentido de piquenique no inferno.
Pode-se pensar que tudo se passa num parque nacional em que um avô foi acampar com os dois netos. Ou que a qualquer momento vai aparecer Elsa, a leoa. Ou Silver, o cavalo. Ou Rin-Tin-Tin. Não é algo do western que um xerife caolho, velho e meio pinguço, conhecido caçador de prêmios, siga em expedição a um território indígena, à caça de um assassino sanguinário, acompanhado de uma adolescente. A história seduz por roçar o impossível. E, ainda assim, fazer isso sem farsa, com a naturalidade de um mamute coçando as costas com a tromba. Muita coisa embute-se aí: de a bela e a fera, a um rito de passagem descomunal.
Poucos filmes dependem tanto de uma atriz quanto True Grit de Kim Darby. A circunstância toda em torno do filme é refém dessa adolescente, porque sua graça, seu carisma parecem incomensuráveis. Na verdade, à época Darby tinha já 20 anos e era casada, mas aparenta uns 15. (E, para todos os efeitos, ela tem 14 na história). O cabelo curto, os lábios densos sob um nariz arrebitado, as botas sob o vestido ou calças largas de corduroy, algo de andrógino, e sobretudo o jeito decidido conspiram para que ela conquiste o espectador desque assoma na imagem, despedindo-se do pai, atrás de uma pequena escrivaninha, junto à janela, às voltas com a contabilidade. É ela, aliás, quem entrega ao pai a importância a ser gasta na viagem.
A prova dos nove do protagonismo milagroso dessa adolescente é o de que ela não só consegue contracenar com um monstro das dimensões de John Wayne, como levar vantagem nessa empresa. E se a versão dos Coen, feita 41 anos depois, tem um sucedâneo mais ou menos à altura de Wayne, Jeff Bridges, não conta com quem a possa subsistir no papel de Mattie Ross. E simplesmente pela total impossibilidade de alguém fazê-lo melhor, uma vez que aqui dá-se o raro fenômeno da coincidência. Ou seja, a perfeita fusão entre atriz e personagem.
É preciso entender que, aqui, não é que Darby tenha feito Mattie Ross à perfeição. Mas simplesmente que as figuras de Darby e Ross conheceram um ponto de fusão, a partir do qual a atriz vira a personagem. Porém há também o sentido inverso, de tal forma que qualquer outra versão - posterior, anterior ou simultânea - vai ser eclipsada, vai ser tomada apenas como medida de comparação. Além disso, todos os papéis posteriores de Darby irão sofrer o influxo de jovialidade que emana de Mattie.
A trama é uma marshall story (estória de xerife). Um fazendeiro despede-se da família para ir a negócios na cidade. Uma vez lá, acaba sendo morto pelo pistoleiro que havia contratado para escoltá-lo. Sua filha vai à cidade, toma preparativos para o funeral, e decide contratar um xerife durão para capturar o assassino do pai em território indígena. A garota revela, de saída, uma obstinação, uma bravura, uma inaudita capacidade de lidar com o imprevisto, a vida, o mundo prático: dos negócios à defesa pessoal, passando pelos afetos ou a escolha dos melhores cavalos a adquirir. Isso cativa o velho xerife, embora seja o dinheiro ofertado pela mocinha o motor inicial desse caçador de recompensas, passado na casca do alho. Um jovem ranger do Texas, La Boeuf (Glen Campbell) também junta-se ao grupo sob os protestos da garota. Os três conformam estranha patrulha.
Por trás de "Rooster" J. Cogburn, o xerife, há a Guerra Civil, certa propensão para uns tragos, e uma mulher que o passou para trás, assim que Mattie tem de escutar uma série de disparates e misoginias. Tais como a falta de generosidade das mulheres. Ou que não se deve ter uma mulher como patroa. Frase, aliás, que se traduzida ao português pode soar um bocado ambígua. Porém é esse desprezo do xerife pelas mulheres que acaba fazendo com que Mattie seja aprisionada. Verdade que os bandidos a tratam com bem mais deferência do que seria de esperar. Robert Duvall é o chefe deles.
A cena em que Mattie alveja Chaney, o assassino do pai, é de uma comicidade inata, embora a bala não faça um buraco menos perfurante no abdômen do facínora. Sem embargo, sangra-se menos que nos filme de Tarantino. E a cena em que ela cai na grota e depara-se com uma cascavel é digna do melhor Indiana Jones, anos depois. Mattie é uma heroína de várias virtudes e circuitos. É uma espécie de contraponto feminino ao Huckleberry Finn. E é memorável o momento em que atravessa um largo rio em lombo de cavalo, enquanto os marmanjos o fazem na balsa. Logo depois sua condição de mulher e de adolescente é ressaltada: ela leva uma sova de La Boeuf num dos raros instantes em que conta com a definitiva simpatia de Cogburn. Nesse ponto, todos os espectadores já estão do seu lado. É quase impossível não estar. Pois há mais essa virtude: a resistência diante das indignidades. Mas essas virtudes explicam também porque Kim Darby jamais atingiu um brilhantismo análogo ao longo da carreira: seria simplesmente impossível. Há atores que na estreia ou ainda muito jovens fazem já o papel de suas vidas. E isso é uma injustiça que o cinema, felizmente, é incapaz de sanar.
O elenco de apoio não chega a ser tão miscelânico ou alusivo quanto num épico de Peckinpah. Há, contudo, uma plêiade de nomes conhecidos, entre veteranos e atores mais jovens: Glen Campbell, Robert Duvall, Jeff Corey, Dennis Hopper, Strother Martin e John Fiedler.
O Western é o tango americano. Simultaneamente um lamento pelo espírito de algo já consumado, irresgatável, bem como o sentimento de que esse passado continha promessas capitais para a validade do presente. Num e noutro caso é simultaneamente elegia e utopia. Mas no primeiro caso é mais elegia. Mais utopia, no segundo. Em ambos os casos, a violência é a moeda corrente. Matéria prima que molda o presente, que se estende até ele, multiplicada. É o instrumento através do qual se transforma, ou se faz um mínimo de justiça - não raro, às custas de um oceano de injustiças, uma suavização da truculência e uma mitificação dos rufiões.
O herói estadunidense não seria herói sem uma arma na mão. A própria encarnação do espírito americano radica-se em tal contradição, em tal violência: à força molda-se a natureza e intimida-se ou submete os homens. Há aí a luta pela terra, a ganância de tomá-la de seus antigos donos, de submetê-la e processá-la. De acumular bens baseado na doutrina protestante, que exalta os lucros. Quando não há nada pelo que lutar, uma briga no saloon entretêm, diverte, exercita, mantém a esperança, acende a chama. Restaura a fortaleza do homem da fronteira. Ele não precisa divisar o lado certo, é apenas indispensável ser violento.
Daí que as poucas mulheres que conseguem subverter a lógica desse mundo, desmedidamente misógino e comandado pela força, assumem um caráter andrógino. É caso da Vienna (Joan Crawford) de Johnny Guitar (1954). Ou da Mrs. Baker (Katy Jurado) de Pat Garrett and Billy the Kid (1973). Ou da matriarca de todas essas, a Pearl Chavez (Jenniffer Jones) de Duel in the Sun (1946). Em True Grit, Mattie Ross não deixa de ter esse componente andrógino, embora essa androginia seja atenuada por uma série de fatores: 1. a adolescência é, por si, uma etapa de indistinção, que aponta para o compósito, para certo hermafroditismo, 2. a violência não é prerrogativa do mundo masculino, embora como essa esfera foi a dominante desde antes do capitalismo, não deixa de também ser a mais tirana e violenta. Como Mattie tem apenas 14 anos, é extemporâneo especular sobre a natureza de sua sexualidade no futuro.
A versão dos Coen para True Grit nos propõe, ao final, uma Mattie adulta. Ela é uma solteirona seca e amarga, que perdeu um dos braços. O extremo oposto da jovialidade de Darby nesta produção de 1969. Aliás, para ficar ainda na versão dos Coen, Hailee Steinfeld faz um belo trabalho como a Mattie Ross da vez. Certo excesso de confiança, no entanto, retira algo da complexa natureza que Kim Darby lega à personagem, na primeira versão. Esta consegue ao mesmo tempo ser mais teimosa, compulsiva e também mais vulnerável nessa teimosia. A Mattie Ross proposta por Steinfeld guarda a imperturbabilidade da super heroína, como convém à nossa época. Pois as personagens de nossa época, cheias de certeza, apresentam-se tirânicas e pouco ambíguas a mais das vezes.
A direção de fotografia está a cargo de Lucien Ballard, já então um veterano de guerras passadas. Ele deve ter tirado folga de algum projeto com Peckinpah. Hathaway é mais normativo, e isso também se vislumbra cedo na imagem. O filme, mais clássico, voltado para uma edição menos opaca que as do diretor de The Wild Bunch, não contém os experimentos com câmera lenta, nem as intrincadas coreografias, que convertem as cenas de tiroteio ou de embriaguez e desordem num verdadeiro balé. No entanto, já estamos num tempo em que as externas têm relevância irreversível. E há, por igual, algo de muito atraente nas cenas de combate. Como no tiroteio final, que mais parece uma gesta. Ele é assistido por Mattie no outeiro, feito estivesse numa tribuna. E é emblemática essa cena em que Cogburn, prendendo as rédeas com os dentes, precipita-se na direção dos três bandidos, ao modo de um cavaleiro medieval. Porta em uma das mãos a pistola; na outro, o rifle. E os faz deitar fogo por todos os poros.
É a última performance memorável de John Wayne. E não é pouco. Para todos os efeitos, dava-se por certo, à época, que essa última valsa já fora bailada em The Man Who Shot Liberty Valance (1964), a despedida de Ford. Nela, Wayne contracena novamente com Vera Miles e Jimmy Stewart. Não foi assim. E, sem embargo, por mais que se aprecie o desempenho de Wayne, quem dá o tom do filme é Kim Darby.
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