Quadros de Brueghel
…
Conversa#94 -Ano 3- Oeste por toda parte[10]
Canyon Passage (Jacques Tourneur, Estados Unidos,1946) - cin. Edward Cronjager
Há um inoxidável senso de comunidade nos westerns de Tourneur. Nesse sentido, ele é o Brueghel do cinema clássico. Os rituais são registrados com grande senso de dignidade, complexidade, formosura e, de quando em vez, algum sinal de esgotamento. As grandes aglomerações precisam de música. E Tourneur traz boa música para elas. E não só para elas, para os espectadores também. (Para este filme, ele recrutou Hoagy Carmichael, que já tinha figurado em filmes importantes como To Have and Have Not e participará de outros, como The Best Year of Our Lives, que é do mesmo ano de Canyon Passage).
Em contraposição, seus heróis, como o Logan Stuart deste Canyon Passage, são solitários, gente à margem, descolada, enriquecendo com mais destaque e distância que firme participação. E, por vezes, com mais ganância que idealismo. Mas não de todo dominada pela auri sacra fames, e a ética protestante. O que se quer dizer é: para que existam esses visionários durões e às vezes um pouco sovinas, é necessário uma sociedade funcional em torno. E o funcionamento desse coletivo não arreda pé dos filmes, da visão de Tourneur sobre a conquista do Oeste.
É uma visão humanista do coletivo, ainda que no centro estejam esses incorrigíveis e talentosos solitários. É, apesar de ressalvas, também uma visão ligeiramente otimista. Há ao menos um sentido em meio a não poucas misérias: "there is hope" -- como anuncia um letreiro de circo mambembe não em Canyon Passage, mas em Stars in My Crown (1950), quando o Oeste vivido é já um pouco menos rústico. E existem gravatas nos colarinhos, paredes de alvenaria e até máquinas de descascar laranja. Nem tudo são flores, porém, e há já também uma incipiente organização chamada Ku Klux Klan. E garotos de 11 anos saem de casa portando uma doze cano duplo. E até sentam-se sobre um tampo de mesa apoiando o queixo candidamente na ponta dos canos, enquanto escutam a doce arenga de um Pai Tomás versando sobre a vida, com inoxidável lucidez.
Mas deixemos os canos duplos e voltemos ao Cânion. Tourneur também desloca o Oeste. Varia sua geografia. Retira-o do sudoeste, do deserto, dos desfiladeiros, da planície, da apachería, de Gerónimo, da fronteira com o México, do Monument Valley, da geografia de Ford, do Arizona, Novo México, Colorado e West Texas; e encrava-o nas montanhas do Noroeste, Norte da Califórnia, Oregon, Washington, Wyoming, Montana. O faz subir as ravinas e montanhas, de uma ou de outra forma. O faz afundar na neve. Agasalhar-se diante de invernos rigorosos, a meio caminho do Canadá, na trilha de nevascas intratáveis. Ou dos grandes chuveiros sobre Portland, Seattle, Vancouver. Do cruzar florestas úmidas temperadas.
Uma nova geografia do western se vai esboçando nessas escolhas de locações. Essa nova geografia irá refratar, no futuro, inicialmente no True Grit (1969) de Hathaway. Depois no Mccabe and Mrs. Miller (1971) de Altman, e no Heaven's Gate (1980) de Cimino -- ambos com cinematografia de Vilmos Zsigmond. Pois o último grande poeta da velha geografia, Sam Peckinpah, não arredará pé. Irá, aliás, não só abster-se dessa marcha para o Norte. Mas tomar rumo inverso: em seu último filme de facto, Bring Me the Head of Alfredo Garcia (1974), o vemos muito ao sul do Rio Grande, às voltas com a cultura mexicana. E isso responde em grande parte pelo que há de visionário em Peckinpah.
Antes de falar da trama, é necessário ressaltar que Canyon Passage é um dos mais belos filmes em cores feitos em meados do séc. XX. Quer dizer, quando um dos vários processos de fazer filmes em cores, o Technicolor, era ainda aventura delicada, cheia de riscos. E que Tourneur e seus diretores de fotografia bancaram risco ainda mais alto ao transpor para esse universo de luzes do Technicolor as sombras e nuances menos vibrantes do noir, mais ambientadas no preto e branco. Pois até então, o Technicolor era mais utilizado pelas comédias, os desenhos de Disney, os looney-tunes da Warner e, claro, os musicais. Tudo profusamente em high-key: meet me in Saint Louis. Era então necessário, dada a relativa rarefação do processo do Technicolor, três vezes mais potência de iluminação. Isso fazia com que facilmente se atingisse 38ºC no set de filmagem. E que se os atores estivessem sob indumentária pesada - parte do filme transcorre num rigoroso inverno nas montanhas, A gravação podia ganhar contornos dramáticos, de um absurdo desconforto físico: rápida desidratação, perda de peso, e, em decorrência, altíssimo consumo de água e carboidratos sob essa iluminação profusa e escaldante.
Canyon Passage - notas durante a 3ª assistência -
O começo do filme é propriamente decretado pelo som. A partir do momento em que desaparece o lettering "Portland, Oregon, 1856" soa um tema em que sobressaem flautas, trompas e um banjo, e que sugere circularidade e umidades.
.
Após o tema ouve-se melhor o aguaceiro que se abate sobre Portland. O mundo está desabando enquanto Logan Stuart cruza a Main Street. Quando ele desaparece sob os telhados no plano de abertura há um corte para o seguinte que, ao tomá-lo da calçada do lado inferior da tela acentua ainda mais o aguaceiro, ressaltado por uma cocheira longa, transbordando, que ele deixa para trás antes de adentrar a estrebaria. Pessoas sob capa de chuva conversam ou transitam na varanda do saloon, do lado de lá da rua. Uma carroça passa conduzindo pedras. Entre a câmera e Logan há uma série de elementos: uma bigorna, uma charrete, arreios. Uma vez na estrebaria, ele retira alforges sob a sela, o cavalariço acerca-se e Logan lhe dá algumas instruções, e lhe deixa seu nome. Essa cena de abertura é inusual ao gênero. Conforma uma antítese diante da rarefação de água, do deserto, que é a paisagem das badlands, do Monument Valley, muito mais associada aos filmes de bangue bangue.
.
Esse cobre, essa cor de latão, está tanto na trave da cama, na base da grande luminária do quarto de Lucy quanto na barba do primeiro imigrante que Logan e Lucy encontram na estrada, numa escarpa à beira de um lago, a dirigir uma carroça adiante de um grande grupo familiar.
.
Ao passar pelas torrentes de água, contraluz.
.
Como ao gosto de Tourneur, o terreno é bastante desnivelado, íngreme, cheio de ladeiras e acidentes. (Esse apreço pela montanha e pelo desnível acontece até mesmo naquele que é de longe seu pior filme: Way of a Gaucho. E pensar que quem fez Out of the Past (1947), Nifghtfall (1957) e este Canyon Passage (1946) fez Way of a Gaucho.
.
Logo estão cavalgando sobre a neve das montanhas.
.
Quando seguem pelo leito de um pequeno córrego, um índio passa cavalgando desabalado pela estrada principal.
.
Então atravessam um prado, com uma lagoa ao fundo para chegar na fazenda de Ben Dance.
.
No reino dos objetos, as luminárias comandam o show. E sempre emitindo essa luz cor de latão, cor de cobre, um tanto liquefeita, que tinge os interiores de madeira aparente, reforçando certa textura e impressão tátil. Ou o que Deleuze define por 'o háptico'. Os vermelhos proliferam bem nesse ambiente. O mesmo não se pode dizer dos verdes, que são sempre utilizados em tons claros e um tanto guaches.
.
Hi Linnet é quem percebe as coisas, e delas faz uma gesta cantando. Pode-se ler no seu rosto que Lucy não ama George, e sim Logan. Pode-se ler no seu rosto muitas outras coisas: que reprova a propensão que George tem pela jogatina e pela mulher de Jack Lestrade, Martha. Hoagy Carmichael é dos mais sofisticados compositores americanos da época. É ninguém menos que o autor de "Georgia on My Mind" (a música) -- em um de seus discos solos, George Harrison gravou dois covers dele: "Baltimore Oriole" e "Hong Kong Blues". Mas Carmichael é também, como atesta este filme, um showman de mão cheia. E, na trama, guarda algo da sabedoria e da pulsão divinatória, de um violeiro cego, desses que tocam em feira.
.
"I'm here and there, I'm a restless man", diz o vilão.
.
"Some are more primitive than others, I guess".
.
O flerte entre e George e Mona é dos mais ousados, porque ela é casada. E é também coisa que se dá debaixo das fuças de Jack Lestrade, o jogador. Tanto que, volta e meia, ele faz cara feia. E a verdade é que Martha é uma bela mulher, e um tanto enigmática. Também é um tanto enigmático esse envolvimento do azarado jogador, porque apesar de Martha desencorajá-lo, George não desiste. Ele tampouco comenta sobre essas investidas com Lucy, claro. Há uma inequívoca perversão, uma amoralidade, parecida com vida, investida nelas.
.
Então sobrevém sequência do mutirão em benefício dos jovens noivos que irão casar em seguida.
.
No mutirão, todos pegam no pesado, exceto George. É que George não tem o espírito da fronteira. O espírito do pioneiro. Ele é um almofadinha do Leste.
.
"You gotta give a man the sign" diz Ben para Carolina, a propósito dela e de Logan. Ben é a própria falta de crítica. É o homem rústico em sua bondade mais disponível e generosa. E também mais perversa e irreversível, como quando trata dos índios.
.
"Ah, Lucy, there is so much of this world we were missing".
.
"This is a gambling country, everybody gambles, even Logan".
O negócio de George não é a faina regular. Mas ganhar do acaso. Arriscar-se nas cartas. E a sorte frequentemente faz dele um joguete.
.
Os planos de Logan, de não fixar-se imediatamente num local, parecem não agradar Carolina, cuja mentalidade já está por demais impregnada pelos valores dos pioneiros: trabalho duro. Afinal, ela foi criada na casa do "bonachão" Ben, que não por acaso faz as vezes do pastor da comunidade. E também de seu improvável conselheiro sentimenta. E a isso se junta o fato de que ela se sente mais interessada em Vane Blazier, um dos empregados de Logan. É que Blazier parece mais inclinado a fixar-se num local.
.
Os índios e:
"It's the same old story. They say Mother Earth is for all. What they don't like is the cabin, that makes the land ours".
Mesmo num diretor que simpatiza visivelmente com minorias étnicas - negros, indígenas - o tratamento dado aos índios é um tanto brusco: poderia ser diferente à época? Em Ford, p. ex., esse tratamento bordeja a misantropia.
.
Em um só quadro, os dois contrariados com a atual ciranda, os atuais arranjos conjugais: Lucy e Vane.
.
A camisa castanha clara de Logan reproduz a cor da fachada de madeira aparente da loja.
.
"Why didn't you kill him?" diz Lucy depois da briga.
Veja-se o fascínio de Lucy pela briga envolvendo Logan e Bragg. A refrega é um valor. Um procedimento lícito, perfeitamente encaixado nos valores do homem da fronteira. Mai que isso, a briga é também distensão, diversão.
.
Hi Linnet está mais ligado, mais atento que a média. Ele caminha na contramão dos demais, e divisa que Honey Bragg pode atingir Logan a cavalo. Mais ou menos do mesmo modo como prevê o debacle de George, e suspeita de sua má índole tanto no trato do dinheiro quanto no trato do amor.
.
"An expensive relaxation"-- Logan referindo-se ao pôquer de George.
.
A circunstância da paisagem que vai bem com a estética noir é a atmosfera de penumbra abaixo das coníferas.
.
Após o beijo na floresta:
"It is too late".
.
"You've got a habit of spying people?"
"No. But I've got a habit of observing people".
...