top of page

Monstro na fronteira


Conversa#94 -Ano 3- Oeste por toda parte[13] Sicario (Denis Villeneuve, Estados Unidos, 2015) - cin. Roger Deakins

Um agente internacional recruta dois agentes do FBI para facilitar de alguma forma o transcurso de uma operação anti-tráfico de drogas que, a rigor, é 'black op'. Ou seja, é a serviço dum governo, porém clandestina. O objetivo é o de tentar centralizar o poder de distribuição na mão de um só cartel da fronteira México-Estados Unidos. O plano mascara-se sob uma série de subplanos falsos, que existem apenas para confundir a percepção dos dois agentes recrutados praticamente como prepostos. Aos poucos, ao tomarem consciência de seu papel de cobaias, como pretextos, mais do que sujeitos da ação, os agentes demandam esclarecimentos. Mas então já têm passado por situações de um risco e uma violência extremas. E ficam inclusive a par do fato de um matador ligado ao cartel de Medellín ser usado como aliado para lograr o resultado final: varrer do mapa o cartel de Sonora mediante a eliminação de seu capo. . Há uma beleza casual em Emily Blunt. Um desleixo básico. Um andar de T-shirts por aí que a faz andrógina, e heroína de nosso tempo. Ela é herdeira dileta da Sigourney Weaver de Alien (1979) e da Sean Young de Blade Runner (1982).

.

Não à toa, dos quatro agentes da lei que nos são apresentados ao início de Sicario, somente Josh Brolin é exceção ao estereótipo. Ou à necessidade de exaltação de minorias. O restante corresponde à risca a esses estereótipos: Blunt (mulher), Daniel Kaluuya (negro), Benicio del Toro (latino). Mas del Toro surge como o mais descolado dos três. Quer dizer, del Toro é o mais híbrido. E simultaneamente mais poroso. É latino mas também é branco de olhos claros. Investiga cartéis de droga no México, e é ele próprio integrante de um truculento cartel colombiano sedento por vingança. É colombiano mas possui um sobrenome alemão. Apresenta-se como um policial de elite e, no entanto, parece portar traumas dolorosos: suas mãos tremem enquanto dorme durante o vôo a Juarez. Ele acorda assustado, e tem de assegurar Blunt que está bem. À medida que a trama desenrola também vamos percebendo que ele não é exatamente humano (embora nada haja nele de cyborg). E é ele quem irá conduzir a sequência de Sicario. Sua franquia. Ele tem algo do herói da Ilíada.

.

E aqui está de novo um favorito dos DF's. Desta feita com o rótulo virado para a parede, como convém.

. Juarez. Podia ser uma cidade médio porte no Brasil. Pelo menos é tão feia quanto. É o mesmo misto de modernidade e escravidão. O mesmo sinistro aspecto de desigualdade. E a sordidez das favelas. A violência está no ar. Como fumaça ou partículas de pó. Um pó, que também aspirado, e vendido a toneladas a peso de ouro, conduz a violência e atrasa o Estado como agência reguladora de contrastes sociais. As portas das casas têm interfones, barreiras, portões de ferro, vigias, cercas elétricas, arames em farpa. Todos vivem atrás de grades, alçapões, cadeados, robustos trincos, fechaduras, cacos pontiagudos, lanças, cercas, telas, muros. Ruas que são terras de ninguém espreitadas de vigias e escotilhas. A violência cega, regida a vendetas campeando por elas. A guerra atravessa as avenidas e becos com uma naturalidade irrespirável. Trogloditas tatuados seguem vigilantes nos automóveis, armados até os dentes. Mesmo os cães são brutais, e latem como se na esperança de morder carne humana. E arrancar nacos de carne fresca. Barbárie. Há corpos nus, mutilados, pendendo de cabeça para baixo sob um viaduto, com uma ameaça grafada numa faixa que tremula ao vento, feito um estandarte medieval. Há uma continuidade entre o presente no mundo e eras há já muito passadas. Será assim no Inferno de Dante? Tudo parece meio medieval e fronteiriço comparado a outras partes do mundo, não necessariamente situadas em países pós-industriais:

-There she is, the beast, Juarez - diz Alejandro Gillick (Benicio del Toro)

. Não se pode dizer que os criminosos são glamourizados.

.

Às vezes, pode-se questionar se o exterior de um depósito numa cidade fronteiriça está mesmo assim tão harmonicamente iluminado.

. Há um momento em que os homens brancos, que ainda estão no comando - sejam anglo-saxões ou latinos - são chamados pelas minorias para esclarecer com pormenores a natureza da operação. . As formas de mostrar fotos hoje em dia alcançam os filmes.

.

Imagens de câmeras de segurança de tipo circuito fechado são convocadas a contar histórias.

.

Um close numa dessas imagens resultaria numa abstração.

. Reflexos nas janelas de vidro da casa do chefão do tráfico, onde se vê inicialmente uma piscina. Crianças se divertem na água. Depois uma tracking shot nos conduz da piscina a um terraço nos altos, onde um homem fala ao telefone. Ou seja, interliga o lazer das crianças, seu bem estar na água, ao trabalho sujo do pai, no pavimento superior.

.

Enquanto conversa ao telefone, o traficante manipula, meio mecanicamente, uma liga do tipo usada para prender os maços de dinheiro recém-retirados do banco, numa lavagem, e devidamente apreendidos pelo FBI.

. Essas ligas têm papel não pequeno. São elas que revelam a Kate: Ted (Jon Bernthal) é gente do cartel.

. O visual tela impressionista sob a cortina. Esse dispositivo de Deakins parece guardar algum débito para com o Chris Menges de Los tres entierros de Melquiades Estrada (2005), que o emprega à perfeição. E ao mesmo tempo é como se o desdobrasse organicamente, a partir da atmosfera esparsa do interior das casas do lado Mexicano da fronteira.

. Planos exploram bastante a textura. Neste quadro o relevo é posto na face de Brolin iluminada desde a esquerda.

. A cena em que Gilick e Graver tentam extrair informações de Ted mediante tortura é tão obviamente em estúdio, é tão obviamente publicitária. Ela destoa do restante do filme.

.

Como o formato fálico da torneira tomada em plongé sublinha: estamos no México, uma cultura de 'machos'.

. A edição poderia demorar mais em quadros como este na transição entre os planos. Mas daí já seria pedir demais. E conduzir o filme para um regime de abstração que o aproximaria de uma art-house production.

. A naturalização da violência: rifle de guerra no quarto do soldado de polícia corrupto. Detalhe para direção de arte e trama.

. A cavalaria tem um novo uniforme. E cada um porta no capacete a capacidade de gravar imagens individuais com câmera equipadas com lentes de larguíssima abertura de campo e nightvision: aptidão para detectar o movimento no escuro.

. O único problema aqui é que as imagens são demasiado belas. A rigor, nada há de errado com a beleza das imagens em si, mas sim com a relação assimétrica entre essas imagens e as demais externas do filme. Assim como no caso do interrogatório sob tortura, abaixo de um viaduto, em relação às demais imagens feitas em estúdio.

. Soldados são nuvens em formato de soldados. Soldados disputam uma guerra como se fosse um jogo virtual em que possível pedir reforços à nuvem. . Mas quando todos descem a colina, ao fim do crepúsculo, como um enxame de insetos pouco divisável, há apenas nuvens, um horizonte, a escuridão. .

Propõem-se então um regime de imagens anômalas: infravermelho, nightvision, câmeras de monitoramento por satélite, etc. O negativo digital da vida diz alô:

. As diversas faces de Kate enfrentam o risco.

.

Quando as metralhadoras disparam.

. "Don't ever point a weapon to me again"

.

O conhecimento e a destreza de Alejandro e sobretudo sua perícia em destruir fazem os outros parecerem crianças. Ele se assemelha a Aquiles: uma máquina total de destruição. Nesse sentido, sua dimensão aproxima-o do super herói, do semideus, daquele que se encontra acima do humano. Quando ele atira em Kate no galpão, para capturar o policial mexicano que agia como interceptador, esta percebe que ele encontra-se uma liga acima. Mas também quando chega à mansão com Díaz, este já se encontra defunto ao volante, com uma incisão no pescoço. Três seguranças se aproximam e um deles tenta confirmar a identidade de quem dirige. Logo em seguida, os três estão no chão. Alejandro não é só Aquiles, é também o gatilho mais rápido do Oeste. Quer do neo-western, do pós-western, do Oeste revisionista, ou como queiram.

. Nesse ponto há um furo no roteiro. A trama sai arranhada. Até agora, toda ela havia sido contada a partir do ponto de vista de Kate. Sem mais nem menos, a contação assume o ponto de vista de Alejandro. Isto é, durante uma hora e quarenta minutos o filme é contado por Kate, mas nos quinze minutos finais quem conta é Alejandro. . Silvio nutria alguma esperança de sobreviver até o momento em que Alejandro lhe ordena que saia da viatura. O rosto de Silvio desmonta nessa hora. Ele sabe que será reconhecido por Manuel Díaz, o chefão. . Menino brincando com fogo: Deakins a descobrir que pode trabalhar com quase nenhuma luz. É claro que aqui ele tenta emular o estilo de Emmanuel Lubeski. . A luz da lanterna do segurança é tão forte que estoura o quadro. .

Na cena da chegada à mansão de Fausto Alarcón as soluções são demasiado publicitárias. Porém nem assim de todo satisfatórias. Serão vistas como algo kitsch no futuro. Há uma tracking shot tomando a mansão iluminada. A casa de Alarcón semelha a Árvore piscando na Praça Portugal durante as festas de final de ano. Ainda assim, o carro surge no quadro da esquerda para a direita. Isto é, mantém a mesma direção da tracking apenas com mais velocidade. Uma solução inversa com um carro menos abrupto adiante de uma mansão menos bolo de noiva teria sido mais coerente com a maioria das outras boas soluções encontradas na fotografia até aqui.

. Há motivos sacros na decoração da casa de Fausto Alarcón. Nada de muito novo. Esses motivos católicos na decoração de casas de criminosos são familiares ao espectador desque o cinema começou a retratar a máfia com mais fidelidade. E eles são particularmente abomináveis à sensibilidade anglo-saxã. Seja calvinista, seja secular.

. Pelo menos desde da versão de 1964 de The Killers, com Lee Marvin comandando a carnificina, o silenciador não andava tão em moda. Capangas caem de maduro na mansão de Alarcón.

. Aliás, Fausto Alarcón parece um nome dado à personagem por uma equipe de roteiristas da Globo após uma brainstorm no Projac em que não se fez outra coisa ao longo de toda a madrugada. E esgotaram-se, assim, outras carreiras a mais de talento. . Será que os traficantes jantam em família sob tantas luzes?

. -Tua hija. No fue personal.

-Para mi, sí. . A multiplicação do medo no olhar dos filhos de Alarcón. No primeiro há pavor mas também desafio, desejo de vingança. O segundo é puro pavor.

. Contraluz. [Kate à varanda da pousada]

. You'll be committing suicide, Kate.

.

  • Black Facebook Icon
  • Black Twitter Icon
  • Black Pinterest Icon
  • Black Instagram Icon
FOLLOW ME
SEARCH BY TAGS
FEATURED POSTS
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
INSTAGRAM
ARCHIVE
bottom of page