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Um lugar na solidão

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Conversa#95 -Ano 3- Reclassificando Clássicos [31]

In a Lonely Place (Nicholas Ray, Estados Unidos, 1950) cin. Burnett Guffey

Uma fonte ao centro de um pátio com pequenos apartamentos ao redor. É um convite para indiscrição entre vizinhos. Se há mútuo interesse espiando às janelas, tanto melhor. Bizarro é o namoro cuja largada se dá com um assassinato. Mas se estamos a falar de um tempo em que Camus, Sartre, Freud, o modernismo literário e os ismos da arte de vanguarda chegam ao proscênio dos filmes, nada há de tão grotesco assim. Nem mesmo esse flerte entre voyeurs.

Algumas resenhas sobre In a Lonely Place passam o atestado de nosso tempo. Elas não possuem nenhum interesse pela verdade, ao que parece. Nenhuma atenção em aferir o que se passa ou não na trama. Maior interesse demonstram em firmar a perspicácia do autor da resenha, e em dirigi-la no rumo de forjar algo supostamente "novo". Mesmo que esse novo soe tão absurdo quanto comparar Jean Genet a São Francisco de Assis. Por exemplo, a circunstância de Laurel Gray haver fornecido um álibi escrupuloso e preciso à polícia, um álibi que inocenta amplamente Dix Steele, é às vezes solenemente ignorada. Ou, em desatenção, aludida como se eles já tivessem um caso. Como se o affair tivesse algo de metafísico, premonitório. Começasse antes de começar.

O fato de Steele ser culpado ou inocente não é com essas resenhas. Elas, de outro modo, não ressaltam que o namorado de Mildred (Martha Stewart), a jovem aspirante a roteirista assassinada, confessou o crime à polícia antes de meter uma bala no peito, já no desfecho do filme.(E esse modo de agir do namorado suicida parece tanto com outro tempo. Com um tempo distante do nosso). Isto é, as resenhas do nosso tempo estão mais ocupadas com o que pode ser inconclusivo, dentro do espírito pós-moderno. Nem que se ocupem com inconclusões fictícias. Nem que para isso precisem omitir ou mentir, a fim de alimentar essa inconclusão. Precisem forjar suas próprias "provas". Ou esquecer a confissão do namorado de Mildred. Elas estão, por igual, ocupadas com frases de efeito. E nove entre dez resenhas sobre In a Lonely Place irá repetir que se trata de um das histórias mais tristes jamais contadas pelo cinema. Faz parte.

Há uma mitologia ultra-romântica em torno de In a Lonely Place. Não só nos comentários, mas no próprio filme, na trama. A despeito da utra-realidade dessa película. A ponto de antecipar o realismo histérico que irá caracterizar a nova geração de ficcionistas americanos em torno de Thomas Pynchon, Don de Lillo e Cormac McCarthy. Essa mitologia cristaliza-se numa frase. A frase é dita por Dix Steele (Humphrey Bogart) a Laurel Gray (Gloria Grahame), justo no momento em que, após um surto irracional e violento, no qual quase mata um homem à beira da estrada, um tanto gratuitamente, ou no mínimo numa reação desmedida; ele sente que começa a perdê-la. Reza a frase, em seu extremado existencialismo romântico:

“I was born when she kissed me. I died when she left me. I lived a few weeks while she loved me.”

A frase é um potente, inolvidável retrato de época. Uma declaração de princípios existencialista. Notem como as poucas semanas de vida de quem a diz resumem o lapso de tempo de uma existência. Essa vida é tão breve que cabe em poucas semanas. E o mais aterrador, constatar que o amor, reduzido inteiramente a seu aspecto físico, parece por igual "durar" apenas umas duas ou três semanas, ao modo de uma colônia de férias, uma promoção da Amazon, um curso de Pilates, uma estadia num spa, um Cruzeiro pelo Mediterrâneo, simpósio sobre a ética em torno do tratamento dado aos pets, torneio de kitesurf ou terapiazinha de quinta. E então extingue-se para sempre. Questões como as sequelas psíquicas ou a memória não parecem estar no horizonte. Ou se estiverem, devem ser extirpadas; porque se decidiu que isso não é tolerável ou glamuroso. Ou talvez só se deva considerar amor o que passa pelos lencóis e travesseiros. Ou o que é regulado e prescrito pelos terapeutas. Ou o que se efetiva em casal. Em par romântico.

Poucos atentam, de outro modo, para o que há de problemático em: "I was born when she kissed me". Pois, aqui, parto e beijo se fundem. E o incesto fundamental é meio que convocado para justificar os quinze minutos de vida e felicidade em meio à existência. É como só se fosse dado desfrutar da utopia por quinze minutos. Mas também que essa utopia seja demasiado decalcada de um anúncio de margarina. Ou talvez de um condomínio exclusivo, junto ao lago, no subúrbio. Ou alguns dias no spa. Ou numa dessas viagens de valor terapêutico, em que uma cidade estrangeira é "degustada" por um casal ao modo de um a elaborada sobremesa.

Pode-se, assim, conceber esse sentimento de duas maneiras. Ou como um capricho momentâneo, produto novo e extremamente tentador e fetichizado; ou como um enlevo e aventura ultra-românticos, daqueles que alguém vive sem medir muito consequências. E não é improvável que seja ambos. Por quê?

Porque, assim concebido, trata-se de um amor terrivelmente próximo das leis de mercado e de consumo. Pode-se dizer da 'oikonomia' mesma, tal qual descrita por Agamben, em genealogia. Um conceito que conforma ao mesmo tempo dois índices: administração do lar e escatologia. Em ambos, mas principalmente no primeiro dá-se uma grande conveniência, mediante a qual, digamos que ambas as partes no casal entram numa relação para compensar-se do interminável tédio que infectou suas respectivas vidas por tanto tempo, uma vez que Laurel (esplendidamente interpretada por Gloria Grahame) é também um ser humano furtivo e solitário. Ao que tudo indica, portando chagas de relações anteriores. Fora abusada por namorados e amantes, e, por isso mesmo, abria a soleira a mais abusos.

Tal posição é naturalmente muito próxima dos "direitos do consumidor": "alguém tem de me compensar pelo fato de minha vida, enquanto jogo, haver sido uma lástima, um só tédio. Uma miséria, produto descartável. Alguém tem que reparar isso, nem que por algumas semanas".

Ora, essas pré-teses que ditam resenhas contemporâneas entram na conta de certo exagero de intenções, e num excesso programático, que conformam a característica número um de um mau roteiro. Aquele exagero, aquela pulsão apaixonada, que qualquer nova carta de intenções estéticas desperta nos neófitos pelo que há nela de programático - aqui no sentido mau, de má política. De esoterismo. Daqueles neófitos que abraçam o programa de última hora, e o seguem febris, intuitivos e infelizmente às vezes cegos e sectários. Ou ao menos tão cegos e sectários quanto seus adversários macartistas, que tentaram expulsá-los e silenciá-los a todo custo. E, notem, não é bem assim que se desenrola a trama de In a Lonely Place. Ela é perspicaz o suficiente para não suprimir ambiguidades.

De outro modo, sem rastro de dúvida, Ray teria sido um dos heróis de Walter Benjamin, tivesse este sobrevivido à guerra, e ambos coincidido no tempo. Na história. Menos pelo seu romantismo improvável, encapsulado por um realismo mais literal. E mais pela pulsão rebelde e incoformista. Por seu impulso destrutivo, tal como celebrado por alguns autores anarquistas: aqui, talvez menos Bakunin e mais o sóbrio Kropotkin. Algo que aproxima Ray mais de Camus que de Sartre. Mais da 'revolta' que da 'revolução'. Talvez o trunfo de Ray seja, sem descartar-se das fórmulas mais usuais do melodrama, muito ao contrário, conseguir dele extrair leite de pedra.

O modo como lida com o melodrama é, aliás, bem diverso de outros que também partem da fórmula melodramática para deslocá-las, distorcê-las, tirá-las da habitual zona de conforto em que se encontrava nos roteiros hollywoodianos ao final dos anos 1940. E que, em predominância visavam a bilheteria. Pode-se, aqui pensar em Max Ophüls e Douglas Sirk. Ou, em menor grau, em John Huston, Billy Wilder e Howard Hawks. E, então, a partir dessa zona de conforto, que tem a ver com um casal, propor assuntos polêmicos, passados em tramas mais ousadas ou inventivas. Mais próximas tanto do alegre idílio quanto dos pesadelos da existência. Às vezes rondando a própria confecção dos filmes. Ou o impacto deles. Às vezes, mostrando, por igual, que idílio e pesadelo são faces da mesma moeda, indissociáveis. Suplementares.

Em paralelo, podemos propor a maneira como o melodrama, de forma paródica e engenhosa, é utilizado contra si mesmo por Ophüls. Por exemplo em The Reckless Moment (1949). Esse filme foi lançado, de resto, apenas um ano antes de In a Lonely Place. Porém podemos afirmar, que, para nele achar seu tom, Ophüls tem de romper com o melodrama, com sua fórmula leve, a fim de suscitar sob ela, na forma de comédia sofisticada, de paródia de costumes, um agudo comentário social. E até feminista, avant la lettre.

Essa é uma maneira mais oblíqua, mais europeia de fazer a coisa. E o resultado: uma tremenda visão crítica sob o véu do comentário social leve e diáfano. Um comentário que dissolve o peso do dramalhão na engenhosidade da comédia de costumes. E numa comédia de costumes que, no caso, pontua-se por pungentes comentários sobre a condição da mulher. E, logo, propõe uma mulher capaz de lidar não só com sua própria condição, mas até de render a ausência da figura masculina com alguma vantagem. E não menos com veleidades extra-conjugais na meia-idade. Algo um tanto inusitado para a Hollywood da época. De repente, a administração da casa - suas contas, hipotecas, taxas, as despesas com a despensa e com a escola das crianças - recai toda sobre os ombros de uma mulher. E ela não só se sai melhor que o marido ausente, como também ainda vê-se obrigada a solucionar um trágico incidente que ameaça estilhaçar toda a harmonia do arranjo familiar.

Ora, a condição da mulher não é assunto menos importante para Ray. No entanto, ele aborda esse tema --- entre outros, claro --- de dentro do próprio melodrama, propondo a seu melodrama densas camadas de complexidade narrativa. Uma densidade psicológica não pressentida no melodrama tradicional, sob sua previsibilidade, sob suas condições formais de temperatura, pressão, narratologia e desfecho.

Aqui, não é necessário, contudo, transmutar esse melodrama em sofisticada comédia de costumes à europeia, como fazem Ophüls, Sirk ou Lewton, recheando o filme de referências a temas estéticos ou filosóficos. Em Ophüls, um caso extraconjugal é sempre mais que isso. É uma ideia, uma alegoria. Mesmo quando só uma insinuação ou possibilidade. Ou sobretudo assim, nesse plano da potência, da sugestão. E, então, essa permanência na zona mais, digamos, literal do melodrama, responde, contudo, pelo que há de mais americano em um cineasta como Ray. Ao mesmo tempo que parece algo intangível a um realizador europeu, feito Ophüls. Pois é algo simultaneamente ingênuo e extremamente elaborado. Algo que fascina a perspectiva europeia, por não saber lidar com o tema ou desenvolvê-lo de tal maneira, sem atacar - nem que subrepticiamente - as regras formais do melodrama. Esse modo direto americano, essa desabusada coragem de ir direto ao ponto é já desconhecida pelos europeus. Daí o fascínio que Ray desperta nos cineastas da nouvelle-vague: ele não precisa sair do país do melodrama para cativar.

Também Hawks e Huston entram nesse jogo referencial com o melodrama. O primeiro resolve a questão adicionando às tramas algo da intrepidez esportiva, do risco, de certo heroísmo estóico que se vê, p. ex., em Only Angels Have Wings, onde permanentemente se passa de um carteado e um gole de conhaque a um duelo com a morte a bordo de toscas aeronaves passando por rotas arriscadíssimas e precários campos de pouso. Esse senso de bravura pessoal também parece derivar-se em linha reta dos romances e contos de Hemingway e Fitzgerald. (Mas, aqui, mesmo os derrotados ainda portam algo modelar, próximo do super-heroi). Já em Huston esse estoicismo é reforçado pela presença e a dignidade envergada por perdedores exemplares diante de um destino inflexível e imperscrutável. Essa visão de Huston parece absorver algo do existencialismo desencantado de Fritz Lang, em filmes como Clash by Night ou The Big Heat. Ela será vista depois nos filmes dos Coen. Mesmo que estes sejam judeus, e Huston, católico.

Tal renovação do melodrama, da trama do folhetim, para funcionar na imagem em movimento, trata-se de uma invenção americana. Para ela convergem elementos europeus prévios amalgamados a referências locais: o otimismo solar de Capra, a mordacidade cômica e elegante de Lubitsch, a polifonia de Wyler, o pessimismo lírico do realismo poético francês; a mestria narrativa e capacidade de criar atmosfera, dos expressionistas alemães, sem dúvida. Mas sobretudo os experimentos de som e cinematografia aliados a um novo senso de realismo, bastante direto, propostos por Welles, Huston, Ray, e posteriormente Kubrick, entre outros. Ou entre Tolland, Musuraca, Guffey, Seitz, Harlan, MaCdonald, entre outros fotógrafos e técnicos. Ou Adrian Scott, Hal B. Wallis, Joan Harrison, Mark Hellinger, entre produtores que propiciaram as necessárias e suficientes condições para que alguns desses roteiros saíssem do papel. Ou entre os escritores hard boiled que depois colaboraram como roteiristas em empreitas eminentemente coletivas, tão importantes por dar voz a um extrato mais modesto e, à primeira vista, menos elitista, menos "alta cultura", da população. Caso de James M. Cain, Raymond Chandler, Daniel Wainwright, Mickey Spillane, Abraham Polonsky e tantos outros.

A fotografia, de Burnett Guffey, o mais prolífico - e quiçá menos irregular - dos grandes fotógrafos do estilo noir, não é elemento a negligenciar. Em In a Lonely Place, Guffey ainda se encontrava no início da carreira. Porém realiza um de seus melhores trabalhos. Algo no nível de Nightfall (Jacques Tourneur, 1957) e Bonnie and Clyde (Arthur Penn, 1967), outras boas chispas de invenção em um fotógrafo injustamente acusado de ser mais regular que brilhante.

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