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Nada mais distante

Conversa#80 -Ano 3- Relances do Já e Agora [4]

First Reformed (Paul Schrader, Estados Unidos, 2017) - cin. Alexander Dynan

Entre os críticos, teóricos e scholars que versam sobre os filmes de Bresson, Paul Schrader detém uma posição peculiar. Seu livro, Transcendental Style in Film (1972), acerca de Bresson -- mas também de Ozu e Dreyer -- conseguiu ser refutado com resoluta ênfase não só pelo próprio Bresson, mas por um Deleuze mais ou menos lívido. Deleuze, em seu Imagem-Tempo, o acusa de confundir "transcendental" com "trasncendente". E parece que nada aborrecia mais o mestre francês do que seus filmes serem vistos sob a ótica unilateral de certo pietismo religioso, tarefa empreendida por Schrader. Meio como se o próprio Bresson, a exemplo de algumas de suas personagens, guardasse algo de beatífico.

Ora, as premissas de Schrader, ao ler Bresson sob a ótica de um certo transcendentalismo cosmético, incomodavam não pouco ao próprio diretor de Le Journal d'un curé de campagne. E Bresson, aliás, sempre deixou isso muito claro, para o desespero de Schrader. E ao assistir um filme tão superficial quanto First Reformed (2017) -- quando posto em paralelo com os de Bresson -- podemos dimensionar melhor as reservas do mestre francês diante das razões equívocas propostas por seu entusiasmado, precipitado e desacreditado "discípulo" estadunidense.

Pode-se crer que First Reformed é um bom thriller, sem nada de muito notável quanto a aspectos morais, éticos ou espirituais. Aliás, é bom thriller dentro de uma perspectiva dupla: mediana e americana. Nele dizem presente vários ingredientes do thriller tradicional: o suicídio condenado como fuga da realidade, loucura ou no mínimo "tolerado" com certa condescendência, o ato de exceção praticado por um vingador solitário como algo que restaura a justiça, assim como o amor convencional, romântico, que impede uma tragédia de proporções funestas.

O ponto de vista de Schrader é exatamente o oposto do de Bresson. Seu filme está longe de ser um filme cristão, embora seja assim que deseja ser apreciado. E há sérios problemas com essa mera intenção. Os filmes de Bresson, sim, são cristãos. Embora Bresson não faça a menor questão, o menor finca pé, quanto ao modo como serão vistos ou a classificação que lhes será atribuída no jogo do bicho: se transcendental, se transcendente, se leigo, se cristão. O filme de Schrader obceca-se com o rótulo, o de Bresson com algo bem menos da ordem do bom-mocismo. E, logo, da ordem da opinião ('doxa') alheia ou da opinião mais ou menos acadêmica.

Ora, fica evidente que o ponto de vista de Bresson é cristão -- católico e com tendências jansenistas. Mas a despeito disso, não é a partir dessa afiliação "transcendental" que Bresson deseja que seus filmes sejam vistos. E ainda quanto ao jansenismo, nunca é extemporâneo lembrar que um dos projetos de Bresson, que chegou à fase de pré-produção, tratava-se de um filme sobre a vida de Ignácio de Loyola, fundador dos Jesuítas, arqui-inimigos dos jansenistas à época da Contra-Reforma. Que estranho jansenista temos por diante.

Bresson jamais fez desse pendor jansenista qualquer mistério. E, no entanto, ele não é algo tomado nunca em sectarismo. Sua admiração por Pascal e Dostoiévski, os motivos de seus filmes, a natureza dos encontros e desencontros de suas personagens, o mistério e a graça que salpica sobre elas inexplicavelmente - mas de forma "realista", factível, convincente - o ascetismo de seus meios, certa louvação do outsider iluminado (não raro, a despeito de si próprio, como em Pickpocket ou em Un condamné à mort), a maneira como enquadra o movimento de braços e pernas debatendo-se, em automatismo, decepando ou mutilando as personagens em quadro; não devem ser lidos apenas sob a ótica pietista, puritana, mas sobretudo sob a ótica realista. Ou, por igual, sob a ótica do mistério, do imponderável.

Os iluminados de Bresson, no entanto, estão no mundo. Diluídos nele. Ainda quando aparentemente o recusam via isolamento. Espécie de eremitismo santo. Ou de antecipação de certas premissas passíveis de encontrar na teologia de alguém como Dietrich Bonhoeffer, por exemplo. E por quê?

Porquê cada momento, vivido sob o olhar de Deus, pode suscitar uma decisão inesperada, a possibilidade de estabelecer princípios gerais válidos simplesmente não existe; o conteúdo de questões éticas não pode ser discutido sob uma luz cristã. E, portanto, só uma coisa pode ser repetida de novo e novamente, também em nosso tempo: nas decisões éticas um ser humano deve considerar sua ação sub specie aeternitatis e assim, não importa como proceda, procederá com retidão.

[BOENHOEFFER}

A cela do monge é replicada em várias instâncias modernas de isolamento, de confinamento, desterro: da mansarda do batedor de carteiras à prisão de Un Condamné a mort s'echappé, passando pela sacristia do cura de aldeia, pelo apartamento da jovem suicida de Une Femme douce ou pelos limites e escrúpulos santos em torno de Mouchette ou do garoto desencantado de Le Diable probablement. Quando não tratam figuras expressamente religiosas -- Joana D'Arc, o pároco de Ambricourt, as freiras de Les Anges du peché -- os filmes de Bresson tomam os leigos na expressa condição de sacerdotes ou de peregrinos. A seu modo. Um modo que inclui o estúdio do pintor de Quatre nuits d'un rêveur -- e que supostamente seriam retomados na figura do marido ambientalista que se apavora ante a perspectiva de pôr uma criança no mundo. Há algo de santidade respingando sobre o estoicismo da velha senhora que ajuda o criminoso em L'Argent. E como paga de sua bondade, não recebe a exemplo de Balthazar senão açoite e sevícia. (Mas não desiste da bondade por causa disso. Ou sequer reclama). Até mesmo Lancelot, o arquétipo do herói, do cavaleiro medieval, surge na imagem desglamurizado, já na maturidade, em meio a um tempo decadente e violento, no qual a busca do Santo Graal, uma empresa pia e devocional, dera margem à pilhagens, ao arbítrio, e um rio de sangue.

Pelo cuidado de se descolar de valores numinosos apesar de tratá-los, Bresson segue longe de vislumbrar seu estilo como "transcendental", como na classificação de Schrader. E essa classificação -- que comporta certo esoterismo New Age e estadunidense -- parece de fato reduzir tal estilo a algo que ele até pode ser. Mas apenas em parte. Acessoriamente. Isto é, não o é em predominância. Ou sente-se incomodado ao ver-se bruscamente reduzido e agrupado a outros estilos que não necessariamente provêm das mesmas fontes e elegem as mesmas prioridades e motivos. Inclusive éticos e históricos.

A ingenuidade americana de Schrader, aliás, ao pôr no mesmo saco Bresson, Dreyer e Ozu -- quando se sabe das reservas de Bresson em relação a Dreyer, sobretudo ao Joana D'Arc (1928) e a distância cultural entre os dois primeiros e Ozu -- se volta contra o próprio Schrader em seus filmes. E, no entanto, não falta perspicácia a Schrader num ponto: eleger simultaneamente Val Lewton e Bresson como modelos. Pois há amplas afinidades, notáveis ressonâncias, inclusive estilísticas entre ambos. Derivações do estilo do primeiro no segundo. E elas nunca que são ressaltadas. (Abertamente, aliás, não o são, sequer naqueles papers que ninguém lê, nem pelo próprio Schrader). Uma espécie de continuidade, uma curiosidade de Bresson acerca de Lewton, que até onde se sabe, nunca foi declinada em público, ou investigada a contento, mas pode-se surpreender claramente em seus dispositivos, nos seus quadros. Uma necessidade do cineasta francês retomar e derivar certas estratégias, insistências e motivos vistos em filmes do ciclo noir, tais como os produzidos por Lewton ou o Pickup on South Street (1953), de Sam Fuller. [Sobre esta última afinidade, aliás, já se propôs algo, porque assoma tão evidente].

Mas, se diante de Lewton, Schrader tentou apenas a refilmagem de Cat People (1982) -- de resto, um bocado inferior ao original de quarenta anos antes -- com Bresson a coisa fica ainda mais incongruente, e ganha contornos dramáticos. Porque é evidente que ao tentar abordar os mesmos motivos de Bresson, falta a Schrader não só espontaneidade, mas sobretudo preparo intelectual e talento, até para chegar ao mínimo: pôr-se a falar do mesmo que Bresson está a falar: a intervenção da Graça no cotidiano, sem aparentes aportes sobrenaturais: “o sobrenatural é o real preciso. A forma mais próxima do real que alcançamos.” Ou em outra definição que aproxima o sobrenatural de algo da ordem da fruição e da sinestesia, da atenção suscitada pela prece ou pela concentração, tal como uma câmera pode conjurar: “chegar o mais próximo possível das coisas, quase traspassá-las. Isto seria o sobrenatural.” :

Diante da carga de mistério de que se revestem os filmes do francês, os de Schrader dispostos a abordar "os mesmos temas" -- algo que não ocorre, mas que o realizador estadunidense não percebe -- propõem-se apenas como pálida tradução da tradução. Uma tradução que dedica-se inteiramente a aspectos marginais, exteriores, ligados ao conteúdo, e negligencia por completo aquilo que para Bresson é a própria pedra angular: forma. Ou aquilo que, segundo Bresson: "verdadeiramente eleva e educa".

As personagens de Bresson vivem em combustão interior. Seu modo de agir revela apenas em parte a paixão que as mantém acesas. Vivas. Em chama. Como fossem uma sorte de iceberg ígneo. E no filme o que vemos? Apenas a porção visível, acima d'água. Mas ao contrário da pálida imitação de Schrader, nos filmes de Bresson pode-se pressentir, pressupor, ter a intuição da porção submersa. Porque a porção visível dela dá testemunho. Certa feita, ao escrever tendo Bresson em mente, dissemos que sua necessidade, a tarefa de seu cinema é a de "revelar o invisível sem violar a visibilidade das coisas".

Entre o cura de Abrimcourt e o de Snowbridge vai uma diferença que não se pode medir a gritos. O primeiro ao cancelar-se, negar-se, engrandece-se. É um homem humilde, combalido, ascético, a quem nem por um segundo ocorre mudar a sombra do mundo injusto de acordo com seus caprichos, desejos ou "luz interior" -- embora compassividade e luz interior seja o que não lhe falta. Ou vontade de mudança. O segundo quer consertar o mundo a partir de uma pulsão subjetiva e violenta, que só consegue ser domada pelo encontro carnal com uma mulher, ao fim de tudo. Há neste segundo muito mais do evangélico, do self-made-man americano, da ética protestante, e, logo, de decisões pragmáticas, da ordem dos negócios. Do machismo. Da esfera da "oikonomia", diria Agamben. Do valentão que quer tomar nas próprias mãos a empresa de vingar os defeitos morais e corrigir as injustiças da comunidade. E essa empresa não é tomada sub specie aeternitatis, pois constitui a solução caprichosa e conjuntural do terrorista, inclusive.

Se tivesse assistido ao filme, Bresson teria torcido o nariz para First Reformed. Em bloco. E possivelmente a cena em que o pastor e a viúva tentam reavivar o "procedimento terapêutico" de reunião transcendental, tal qual esta dividia antes com o defunto marido, sob forma ritual, teria levado Bresson a ânsias de vômito. Nada se encontra mais ao largo do temperamento do cineasta de Île Saint-Louis que uma terapia do gênero, com seu pendor New Age. Pois Bresson sabe bem divisar que tal terapia está no centro mesmo do mal-estar contemporâneo. O mesmo mal-estar que exaspera e corrói suas personagens. Pois terapias assim existem apenas para que as consciências infelizes sejam apaziguadas por ninharias, e não cheguem a resvalar para os abismos da alma. Ora, a fortaleza das personagens de Bresson vêm exatamente da recusa em adotar esses procedimentos analgésicos ou balsâmicos. Ou por intuitivamente nutrirem algum ceticismo diante dessas terapias. Dessas curas comésticas e "em moda".

Por igual, seria improvável conceber uma personagem bressoniana que, ao morrer, ceifasse consigo outras vidas de modo programático, em nome de uma ideia ou de uma causa. Os protagonistas de Bresson podem bater carteiras, fugir de prisões, enganar noivos, jejuar, isolar-se, comandar exércitos, duelar em torneios sangrentos, cedo desiludir-se com a vida de casado, e até constituir suicidas em potencial. Alguns são suicidas de fato. Mas não há terroristas entre eles. O último trucida uma família a machadadas, diante das frustrações e injustiças que lhe engolfaram a vida. Ou do parco entendimento que dela tira. Nem o cachorro escapa. Mas faz isso engasgado na própria dor, e não em nome de uma causa ou de uma ideia prévia.

E nada mais distante de um mestre que um gafanhoto brincando de ser mestre.

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