Uma vinheta a partir
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Conversa #81 -Ano 3- Oeste por toda parte [5]
The Ballad of Buster Scruggs ( Joel e Ethan Coen, Estados Unidos, 2018) - cin. Bruno Delbonel
Há filmes que não nasceram prioritariamente para sua data de estreia. Nem sempre esses lapsos batem, coincidem. Quer dizer, alguns dos melhores filmes tendem, então, a ser mais apreciados no decorrer do tempo. É que eles encorpam feito grandes amores ou certas safras vinícolas. Ou talvez seus motivos rendam-se menos às demandas do presente. The Ballad of Buster Scruggs tende a ser o caso mais agudo desse tipo de filme, digamos, de recepção lenta, no ano da graça de 2018. Mais até que Phantom Thread, outro que cai como luva na mesma categoria. E aqui entram algumas variáveis.
O fato de ser um Western desloca Buster Scruggs para um patamar arriscado, num instante em que certa consciência ingênua -- sobretudo quanto ao conceito de história, esse eixo -- supõe estar inaugurando a plena justiça, como uma espécie de pleno emprego -- pela primeira vez no itinerário humano debaixo do sol. Isso assegura ainda mais esse justiceiro contemporâneo daquilo que ele já tem absoluta certeza de possuir: uma sólida vantagem moral sobre gerações de tempos passados bem como sobre adversários políticos ou dissidentes do presente.
Nos Estados Unidos, a resistência a Trump é menos obtusa, menos "justiceirista" que a oposição a Bolsonaro no Brasil. É não só mais diversa como mais sutil. E só pelo fato de ser mais diversa é já mais sutil. Menos vulnerável a essas auto-complacências que instauram vantagens morais. Ou a esses autos-da-fé de esquerda, em que tudo que não está alinhado ao PT e a Lula é declarado fascista. Entre outras coisas, essa oposição americana foi muito mais rápida no entendimento de uma circunstância simples: a eleição perdida é um fato. Fato consumado. E tentar reverter isso a qualquer custo por meio de incidentes é simplesmente golpe. Golpe, aliás, ainda mais escancarado que o alegado Golpe de 2016, por aqui.
É perceptível também que o ceticismo político por lá não é algo de apoiadores dos democratas ressentidos, como por aqui o é de petistas ou psolistas profundamente agastados, choramingando pelas redes diariamente por qualquer dá cá a palha e, assim, minando a possibilidade de protestar por algo realmente importante na hora em que isso se der. Por lá há intelectuais e artistas independentes, legitimamente enfastiados com política partidária, com a forma mesma com que se exerce os esgotados modelos de democracia representativa que ainda nos são dados. E olha que lá essa democracia representativa, e esse modelo são exercidos em um sistema muito mais orgânico, estável, bem-sucedido e eficiente do que nosso arremedo por aqui.
Logo, quem começa a assistir Buster Scruggs, digamos, com a cabeça de um Carlos Otávio Guarani-Kaiowá, não irá muito longe. É certo. Mas o problema, então, estará menos na história da conquista do Oeste -- a cobiça pelo ouro, o genocídio dos ameríndios, a expansão do país ao Pacífico, a psicologia do homem da fronteira -- ou no humor corrosivo dos Coen do que na falta de humor muito mais corrosiva de Carlos Otávio Guarani-Kaiowá junto com essa turma que vive de reformar o mundo com a bunda no sofá e os dedos no smartphone.
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A cinematografia é mais normativa, mais clássica do que antes, quando esteve a cargo de Roger Deakins (pelo menos até Hail, Caesar! (2016)). Temos uma fotografia menos aventureira, menos inventiva e mais profissa sob Bruno Delbonel. Apropriadíssima para um filme tão clássico quanto ao formato, embora nada clássico quanto ao conteúdo. Essa defasagem, de resto, é a própria moral da história do filme, como veremos adiante.
Ainda a tratar da fotografia, louve-se a limpidez da dessaturalização de cores, puxando tudo para uma sépia mais sóbria, temperada, pastel. É algo como se o bleach bypass empregado por Vilmos Zsigmond em McCabbe and Mrs Miller chegasse ao digital. E chegasse novamente, com distinta elegância. Pois não deixa de ser interessante que, ao lançar mão de uma técnica inicialmente desenvolvida por Roger Deakins, em O Brother, Where Art Thou?(2000), Delbonel a reapresente no paroxismo de sua elegância.
São meia-dúzia de histórias, não há outra forma de dizê-lo. Cada uma mais niilista que a outra. O humor que exala dessas histórias não é menos negro. Sem nenhuma moral aparente, senão efeitos e algum estilo. Como se fosse possível reter alguma moral apenas no formato. Num formato, aliás, que segue desaparecendo por toda parte, mas aqui é reavivado: o formato do livro impresso. Do livro impresso ilustrado. Um formato que os que nasceram no início da década de 1960, ainda sem uma TV ininterrupta, talvez tenham sido os últimos a fruí-lo, na sua inteireza e unicidade. No seu apelo à calma e à paciência. A um estilo de ler à antiga.
E, então, essa moral do formato refere-se a um estilo gráfico específico. Algo que situa-se a meio caminho entre o livro ortodoxo e o gibi: o formato do livro ilustrado clássico, com vinhetas gráficas. (Quem se lembra do Tesouro da Juventude, editado pelos Clássicos Jackson?) A moral da história neste filme-antologia é uma amorosa homenagem a esse formato que desapareceu.
E não exatamente a seu conteúdo mas a sua forma. O conteúdo antigo, em geral de ordem edificante ou exemplar, é substituído por um conteúdo pós-moderno, de aberto flerte com o absurdo, a falta de sentido da vida, ou a nenhuma referência a aspectos correcionais, regeneradores ou mesmo uma crença no "karma". Logo, a única coisa que faz sentido é a forma mesma do livro. É ela que porta e que contém as histórias. Que as viabiliza, como se pressentindo a necessidade que temos delas. É ela quem conduz a contação a partir das ilustrações em cores, da capa dura, das vinhetas gráficas, dos títulos e trechos de capítulo. Das legendas.
Todas as seis histórias, em maior ou menor grau, portam aspectos escatológicos ligados ao corpo humano. Do mau hálito do comerciante de peles na última delas ao duelista que tem todos os dedos decepados na primeira, passando pela mancha de sangue na ceroula do garimpeiro, pelo grau de "ancianidade" dos que versam sobre tosses à volta de um jantar, pelo semi-enforcado a flertar no instante mesmo da execução, ou o contador de histórias reduzido a tronco.
Com este homem desmembrado segue também uma das mais sombrias e melancólicas reflexões sobre a narrativa a partir da arte cênica. Um ator, a que faltam braços e pernas, vê-se reduzido à voz e a expressão do cenho. Mais ou menos como, por um formato normativo de quadro e edição, o apresentador padrão de telejornal não possui pernas. (Ou será que em certos filmes, como nos de Coutinho, alguém possui um corpo que seja mais que a soma da cabeça a um fio de voz?)
Não há muito espaço para chance ou para remissão. E que não se pense que essa ode expressa à fealdade, esse western que quase poderia ser assinado por Bélla Tarr, seja alguma forma específica de se referir em cifra ao atual momento político americano. Os filmes dos Coen sempre foram expressamente sombrios, escatológicos -- na dupla acepção deste último termo. E é da sordidez da vida que arrebatam seu sarcasmo, seu humor. Em certo sentido eles preveem Trump muito antes da eleição de Trump. Pois o que segue antecipado neles são os eleitores de Potus. Sim, o que segue antecipado neles é o fato de os eleitores de Trump e os de Bernie Sanders não passarem das mesmas pessoas e suas consciências políticas infelizes.
Pois até mesmo quando há nítida simpatia pelos protagonistas -- como no caso da delegada de Fargo (1996); do "conselheiro" do gangster em Miller's Crossing, ou do músico caipira de Inside Llewyn Davis (2013) -- esse humor corrosivo, um tanto surrupiado ao Eclesiastes ou ao Pentateuco (conforme sejam mais dissertativas ou narrativas) nos faz dar voltas em torno de mistérios não gozosos. Nos faz lembrar que a chuva cai indistintamente sobre justos e injustos. Que a lama dos reservatórios da Vale mata tanto eleitores petistas quanto bolsonaristas. Tanto ateus quanto evangélicos, rubro-negros, apostadores do jogo do bicho, mineiros, budistas, quilombolas, corintianos, maconheiros, racistas e veganos. Mata independente do gênero. De votarem ou não na esquerda. De discriminarem ou não. E é desse senso judeu, de denso comércio com a tradição bíblica, que se faz o cinema dos Coen. E, nesse cinema, por exemplo, não seria nenhum disparate imaginar até mesmo a escrupulosa delegada de Fargo como eleitora de Trump.
Cada conto reverbera uma espécie de subgênero específico: duelo, assalto, circo, garimpo, caravana, diligência. No plano estrito das imagens há homenagens sucessivas ao western enquanto gênero. E a seus mestres. E menos a Ford que a autores intermediários, não exatamente inventivos mas de uma compelente normatividade: Henry Hathaway, John Sturges, Anthony Mann, Budd Boeticher. Aqui a homenagem não é só quanto ao gênero, também não parece excluir o momento histórico cruel, sem o qual não haveria o gênero. Eis o dado suplementar.
Talvez fosse melhor dizer: "sem o qual não haveria o formato". Pois na verdade, poucos compreendem tão bem o formato western quanto esses quase gêmeos do Minnesota. Suas incursões pelo western não só não são novidade como nem sempre situam-se na esfera do ortodoxo, feito neste filme ou na refilmagem de True Grit (2010). Porém estendem-se a filmes como Raising Arizona (1987), No Country for Old Men (2007) e Blood Simple (1987), a estreia mesma da dupla. Tais incursões, aliás, surgem muito mais perenes do que em Tarantino e mesmo do que no Paul Thomas Anderson de There Will Be Blood (2007).
A compreensão dos formatos pelos Coen é algo da ordem do enigma. E é visceral. Toda a trama de Barton Fink (1991) gira em torno de uma ilustração, de uma estampa emoldurada, vista por um roteirista na parede de um hotel barato.
Essa estampa, que sintetiza a própria libido da personagem, do escritor, irá retornar depois, na imagem em movimento. Ela tem a ver com pulsões de sexo e morte. Mas também com certo inconfessado desejo de ser a outra.
Todo o filme parece refletir essa imagem. Expandir-se dela. Logo, é visível o quanto alguns dos filmes dos Coen derivam não mais que de uma imagem. Imagem fixa. E uma imagem fixa que assume algo da ordem do arquetípico. Uma única imagem, parada, e que, apesar de não estar em movimento, movimenta filmes ou trechos de filmes inteiros a partir de si. Nesses filmes e nesses trechos de filmes girando em torno de uma tal imagem muda e estática, os Coen apenas revelam, no rescaldo de tal processo de animação das imagens derivadas de uma imagem fixa, os imensos e amorosos leitores que foram na juventude.
Assim que pode-se sustentar que todas as histórias deste Buster Scruggs derivam da ilustração de contracapa do volume de contos. Isto é, daquele cavalo mestiço, corpo na profundidade, pescoço virado para trás, numa pose pacata e um pouco estúpida, sobre uma pequena touceira de capim, posto em ouro e baixo relevo, na contracapa verde da antologia. E que é tomada em expressivo zoom.
(Na verdade, essa ilustração constitui-se na logo de uma das produtoras vinculadas aos Coen).
Essa noção perene de certa maldição bíblica aplicada à condição humana diz presente, entre outros, no conto do garimpeiro. A simples presença desse velhote com sua mula, seus instrumentos e utensílios toscos, ainda na colina, antes mesmo de adentrar o vale intocado, é capaz de suscitar o desassossego do cervo da montanha, eriçar as penas do mocho pousado nos galhos do pinho, afugentar panapanás de borboletas, cardumes inteiros de piabas na água translúcida. É capaz de sugerir o quanto o planeta ia melhor e em harmonia sem a presença humana.
E diante de uma instância dessa ordem, convenhamos, ser democrata ou republicano é café pequeno.
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