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Trauma, incesto, insônia, tiros

Conversa#93 -Ano 3- Oeste por toda parte[12]

Pursued (Raoul Walsh, Estados Unidos, 1947) - cin. James Wong Howe

Em Pursued, James Wong Howe traz a noite para o Western. Isso equivale dizer que a trama fica mais adulta, os problemas mais sérios e considerados. Age-se menos com músculos e uma espécie de juvenília-ambiente. Cede-se menos a impulsos. O cálculo aparece. E o trique. É uma atmosfera de grileiros, políticos e jogadores de pôquer. O heroi ainda quer ser vaqueiro, mas traz um ás na manga. Sabe se virar bem com ele em quatro naipes. E fazer deduções. E contas. Fortalece-se um subgênero: o western noir. Nada surge mais paradoxal que um cowboy com insônia, ruminando até alta noite seus dramas existenciais. Ou portando traumas de infância.

A direção é do veterano Raoul Walsh. Mas se Walsh não é nenhum Welles em termos de inovação, definitivamente não está fechado a elas. E bem devia reparar no modo como seu diretor de fotografia levava mais a sério que a média essa empreita: transpor a ação do dia para a noite. Isso num bangue-bangue. Wong Howe ainda não apresenta toda sua paleta, todo o refinamento exemplar de Sweet Smell of Sucess (1957) e sobretudo de Hud (1963), mas já dá um fortíssimo indicativo disso. E há planos, mesmo prosaicos, como o de Jeb Rand deixando o rancho para alistar-se no exército, em que a fria madrugada do Novo México surge transfigurada na tela, envolta numa inédita beleza. Isso tem a ver com uma novidade: é agora possível mostrar o fundo de uma cena escura. De algum modo isso torna-se então necessário e valorizado. Nem que seja para, quando mostrar o horizonte, contrastá-lo com o 'mood' sombrio das personagens.

Assim, ao invés de breu ou de algo em desfoque, vê-se atrás de Adam (John Rodney), que prepara a montaria de Jeb (Robert Mitchum), um celeiro, cavalos, árvores não tão copadas, um prado, uma serra, o capim sobrevindo em direção à casa, em altos e baixos, agarrado ao solo com desníveis. Quase ao centro da imagem há um carrinho de mão na suave contraluz. Talvez esmaltado de água de chuva, como nos versos de Carlos Williams. Mas há outros detalhes que não seriam vistos em filmes passados. Feito o vulto, quer dizer o formato e a sensação de volume que temos, das traves que compõem a cerca imediatamente atrás desse carrinho de mão. E mesmo que parte desses elementos sejam falsos - apenas realces cenográficos - ainda assim há um fundo de cena focado, iluminado e tomado em profundidade de campo.

Antes para se chegar a um resultado parecido, a solução era tão só um cenário pintado, posto em perspectiva sob determinada iluminação. Pois lentes de câmeras e estoques menos velozes de filme ainda não permitiam a abertura (de lente) e a velocidade necessárias para captar segundos planos ou fundos de cena assim, em locação ou estúdio, na penumbra. Ainda quando suplementadas ou "corrigidas" por um esquema especial de iluminação difusiva. (Um esforço admirável é feito em alguns "tios" deste filme, como em La Nuit du carrfour (Jean Renoir, 1932). E, logo, tudo era feito por meio dessas trucagens, em estúdio. E essas trucagens tinham mais a ver com atrações de feira e circo, com cenografia para teatro, com carpintaria, bricolagem, com a delicada construção de modelos em miniatura ou de maquetes; que com nossos efeitos digitais de hoje em dia, desenhados e colorizados em computador, e inteiramente virtuais.

Aqui, é preciso dizer que como a própria imagem é agora um constructo virtual, pelo menos a natureza dos efeitos especiais inseridos nela atualmente é da mesma qualidade da natureza da imagem, ao contrário dos efeitos antigos, não virtuais, moldados na matéria,. Moldados em 3 dimensões, e não em duas - embora, ao final do processo, reduzidos a duas na imagem. Aliás, essa simples discussão, prosaica como possa ser, traz elementos suficientes para pôr em cheque toda a elaborada teoria do cinema em autores como Bazin e Kracauer, calcada em um "realismo fotográfico". Não as invalida. Ou as torna menos ou mais "científicas" (até porque dificilmente um leitor mais arguto vai deixar-se impressionar com o adjetivo "científico"). Mas faz ver que embora a teoria realista de ambos, seja provavelmente os resultados gerais mais satisfatórios para uma compreensão do fenômeno da imagem em movimento, ainda assim essa teoria está baseada em premissas inteiramente superadas do ponto de vista do suporte material, pois depõem sobre esse suporte uma estabilidade e perenidade que apontam para o infinito em perspectiva. Ora, cinco ou seis décadas depois, e esse suporte fotográfico analógico está inteiramente superado ).

Porém há também na trama aspectos demasiado adultos para a usual leveza, carga ligeira, do western. O mais denso: o incesto entre Jeb e Thor Callum (Teresa Wright em outra performance de tirar o chapéu. Ou, no caso de beijar sob ele). Pois embora não sejam a rigor parentes consanguíneos, ambos foram criados como irmãos. O ponto é que, aqui, pesa sobre Jeb uma maldição de proporções bíblicas, que faz com que um desafeto de sua família tente assassiná-lo quando ele não tinha mais de dez anos. A cena de um adulto tentando alvejar uma criança montada em seu potro é de uma insuperável crueldade. Nessa altura, cabe ao espectador preencher a lacuna e imaginar que a família Rand não devia ser das mais pacíficas do Novo México. E então supor um largo rastro de ódio envolvendo assassinatos e vendetas.

Depois o atirador, Grant (Dean Jagger) confirma isso. E placidamente, enquanto faz a barba, diz à mãe adotiva do garoto (Judith Anderson) que ela mesma deveria tomar uma "providência" quanto ao pequeno: é o último remanescente de sua família e, a rigor, deve morrer. Grant é cunhado de Mrs. Callum. Mas Grant, que não tem o braço esquerdo, também promete à mãe adotiva, não importunar mais o menino. É a história de Esaú e Jacó ou a do Wuthering Heights reatualizada. Com todas as funestas reverberações que exalam dessas histórias de amor e ódio em família.

Teresa Wright irá sempre emprestar algo da dignidade e da inteligência da Charlie de Shadow of a Doubt (1943) às suas personagens subsequentes. Só que essas personagens subsequentes não são mais adolescentes em fim de carreira, ou moçoilas casadoiras, senão mulheres com m maiúsculo. Como faz aqui com essa Thor, que é uma mulher forte antes de qualquer coisa. Ela toma iniciativas, e tenta apoderar-se do próprio destino. Ela declara-se e beija o meio-irmão. quando ele parte para a guerra Hispano-Americana.

Desnecessário dizer que o outro irmão, Adam Callum (John Rodney), é o patinho feio desse arranjo familiar. E como todo patinho feio, também aquele que nutre um incontido ressentimento diante dos patinhos bonitos que, como se não bastasse, amam-se entre si às expensas de excluí-lo. Isso inclui a mãe, que devota ao filho adotivo um carinho que desperta os óbvios ciúmes de Adam. Está armada a tragédia. E, convenhamos, é uma tragédia e tanto para um western. E, então, ao despedir-se do irmão com o mais longo beijo debaixo de uma aba de chapéu da história do cinema - afinal, algo teria que pagar o pato na mise-en-scène pela ousadia do incesto - Thor mal sabe o que futuro reservará aos três irmãos.

Debaixo dos caracóis do seu chapéu, etc.

É claro que a impenetrabilidade de Mitchum faz a gente não saber por onde andam seus botões quanto aos sentimentos. Pois mesmo quando abraça uma Thor torturada nessa cena de despedida, seu olhar é vago, distante, alheio. Parece fazer cálculos. Ou estar em busca de algo que não faz parte do quadro, que sequer está em jogo, em cena. É um permanente, espontâneo ennui, a comprovar que a modernidade em Mitchum encasta-se em seu inalienável tédio.

Mas quando ele se separa de Thor, e vai em busca da montaria que Adam lhe traz pelo cabresto, em dois momentos as figuras dos irmãos se fundem no quadro, como a ocupar o mesmo espaço: um a velar o outro. Há mútuo cancelamento do outro na imagem. Embora esse esconder o outro, esse extinguir o outro para poder ser; pareça ser mais determinante para Adam. Ele é quem afinal prevalece ao fim da cena, expressando certa indiferença e desprezo - além de algum alívio - ante a partida de Jeb para a guerra. É o incontido despeito que sente diante do amor da mãe e da irmã por um irmão adotivo que usurpou seus privilégios de filho e irmão. Um arrivista que, do nada, tomou dele a condição de filho e herdeiro.

Como usa ser quando a personagem de uma trama pessoal e intransferível toma parte em um evento épico -- mas que não passa de um breve momento na biografia dessa personagem -- a sequência da participação de Jeb na Guerra Hispano-Americana é de longe a mais desinteressantes de Pursued. Há pirotecnia. Explosões. Um exército americano brioso, bem uniformizado e disciplinado frente a um bando de bárbaros metidos em brim branco e sombreros. Só pela aparência tira-se o digno vencedor da guerra. Há feridos, e Jeb entre eles. Há febre. Delírio. Calor. Sudorese. Pesadelo. Um médico de campanha a dizer que ele não deve se importunar com o "conteúdo" dos delírios, já que será enviado de volta para casa. A guerra dura apenas alguns minutos. E logo se retorna ao que interessa.

A pulsão de Mitchum é semelhante à de Out of the Past, que é do mesmo ano de Pursued: um homem assombrado pelo passado, fugindo dele. Delirando em torno dele. E ainda não chegamos a um terço de filme. Ah, a irrevogável decisão tecida pelas parcas.

Mas as condições estão postas, a sorte lançada. Há uma vida por diante. A ser ganha num Oeste mais envernizado. O mesmo que um reprodutor de rolos musicais faz supor. Uma caixinha de música tamanho jumbo. Sob o fundo mecânico do tema, Jeb solfeja uma canção de acalanto e despedida. A canção tem sabor irlandês. (Não à toa, logo em seguida se ouve uma versão orquestral de "Danny Boy"). Sua doçura, que comove até a Adam, o meio-irmão e arqui-inimigo, está divorciada de toda amargura e fealdade que sobrevirá. Ou seria sua trilha sonora indissociável e ideal?

Na sequência, Thor e Jeb saem para ver a lua. Na varanda, o inventário de ilusões de Thor contrasta com a reticência sombria de Jeb. Seu desejo de sumir no mundo junto com ela, como possível forma de apagamento do passado e seus efeitos deletérios. (Quer dizer, é o mesmo motivo que cerca Jeff e Kathy em Out of the Past). E o depois, depois da guerra, da Odisséia é que são elas. O depois, depois da pré-história. E é quando Jeb irá sair em busca de ganhar o mundo, e uma mulher. Será um jogador inveterado e trambiqueiro, como são os bons jogadores. Corrompido por natureza. Mas possuindo uma dignidade que ressalta ainda mais nessa condição. Terá um sócio honesto, na medida que um sócio de jogo pode ser. Ganhará dinheiro. Mas sobretudo sonhará voltar ao colo da mulher amada.

"There is a moon now".

E, em algum lugar fora de quadro, Kafka poderia replicar: "But not for us".

Depois sobrevém o plano que resume o filme. E nele o homem não é mais que um ponto montado em seu cavalo. A trilha poeirenta, o sólido rochedo perfurado por uma saxífrega e pelas sombras, a árvore agarrada às pedras, retorcida como sua sombra no imenso dia solar, todo esse resto emparelha mais com a tragédia que está por vir tão certa quanto ouvir os amortecedores de um carro soar depois de as rodas atingirem a lombada. E está mais do que claro: a primeira coisa que aparece de sólido nessa estrada já são ruínas. E entre essas ruínas se dá uma das mais elaboradas reflexões sobre o fim da vida -- tomando "fim", aqui, no sentido da 'economia', para lembrar Agamben. Ou seja, em seu duplo sentido: morte (ou escatologia) e razão a comandar a gestão prática.

A nada nobre arte de olhar pelas costas.

O verniz de civilização no Oeste: primeiro nos tubos de música, e então nesta máquina de costura. Duas décadas depois, Peckinpah fará dessa modernização um de seus motivos.

Os tetos são sufocantemente baixos.

A excelência da edição e dos recorrentes e expressivos closes fazem de Pursued um dos mais elegantes westerns já propostos.

Há algo de masculino, de Gertrude Stein em Mrs Callum (Judith Anderson), mesmo quando ela está à máquina de costura. E devemos lembrar, ela e o pai de Jeb foram amantes. E também lembrar que criou os dois filhos naturais, bem como o filho adotivo, sozinha, sem marido por perto. Não se deve descartar certo traço lésbico na personagem.

Mas quando a vemos falar realmente do passado, ela já ressurge mais convencionadamente "feminina" -- não por uma maior vulnerabilidade -- mas por parecer feita de carne e osso. Por preocupar-se com o desmedido poder que um passado reprimido pode ter no destino do filho adotivo.

A brutalidade do mundo, que é um mundo dominado por homens, divide e assusta as mulheres. Eles são galos no terreiro. Thor ama Jeb, mas não parte com ele. Também não recusa prestar socorro a um Adam estropiado após uma briga de socos. A família está partida. E essa cisão anunciou-se desde o princípio. E foi obra de homens. Embora as mulheres ao redor também não surjam mais dignas de todo.

Nos planos preparatórios para o tiroteio final, vê-se o bando acercando-se do rancho de Jeb e Thor. Muito silêncio e um tema a-diegético, à base de violas, cellos, contrabaixos, trompas e tímpanos graves. (Os ataques de metais não tardam, mas estão guardados para as cenas de perseguição, não essa climática sequência de cerco ao amanhecer). Os vultos e rostos dos assaltantes na penumbra através das janelas, sob as cortinas, reenquadram e recortam a imagem dentro da imagem, sugerem telas, podem ser assistidos por Jeb, em grandes tensão e definição. É uma das mais plásticas (e tensas) sequências do universo do western. E também uma que deve ter demandado alguns esforços extras, capazes de driblar as limitações fotográficas diante da pouca luz. O trecho mais elaborado do filme, em termos estritamente fotográficos.

E ao final, Mrs Callum mais se assemelha a uma matriarca russa, viúva e amargurada, saída de alguma página de Turgenev. Ou de alguma cena de Dovzhenko, a decretar o futuro definitivo a partir da solução trágica de um dilema passado:

"Take your wife home, son".

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