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Melodrama restaurado


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Conversa#91 -Ano 3- Oeste por toda parte[7]

The Lusty Men (Nicholas Ray, Estados Unidos, 1952) - cin. Lee Garmes

Um veterano peão de rodeios (Robert Mitchum) busca trabalho numa fazenda. O proprietário da fazenda (Arthur Kennedy), no entanto, é um entusiasta de rodeios e o transforma em seu treinador. A esposa do proprietário (Susan Hayward) revela-se uma mulher bastante pé no chão, que desconfia de tudo que cerca esse universo de risco e chance. Um universo que abole o trabalho regular. Além disso, ela teme pela integridade física do marido, ao mesmo tempo em que vê no veterano peão o catalisador da mudança que ocorreu na sua postura. Mas há apertos financeiros e hipotecas a vencer. A opção não parece despropositada, se for para passar uma chuva. Um triângulo potencializa-se, porque aos poucos ela compreende que o peão de rodeios talvez até possua, a seu modo, valores mais arraigados que um marido que se deixa levar pelo especioso êxito.

Não é exatamente isso. O que ela percebe é uma questão de belonging. De pertença. O peão de certa forma encontra-se em casa no ambiente desenraizado do rodeio. Ele está como que condenado a ele. Longe dele, e é peixe fora d'água. Ele até gostaria de deixar esse ambiente para trás, mas é perfeitamente incapaz de adaptar-se a uma vida menos nômade. A uma vida "normal", com padaria na esquina e a escola das crianças.

Apesar de constar entre os filmes menores de Ray, The Lusty Men é um filme adulto e de uma intransigente coerência. Mais adulto, mais coerente, aliás, que suas obras abordando delinquência juvenil: as que contaram mais para seu reconhecimento. Pois Ray simpatiza amplamente com essa delinquência sem, no fundo, entendê-la. Isso porque ela não só vem de outra época, como responde a outros estímulos, possui outra razão de ser, diferente dos tempos de quando Ray era jovem, nos anos 1930, sitiados pela Grande Depressão. Além disso, essa visão de Ray sobre a delinquência juvenil traz algo de programa prévio, de teleologia. E como toda teleologia está a um passo do sectarismo, e da cegueira correspondente. Há uma espécie de condescendência pouco luminosa nessa visão. A não ser que, aqui, juventude seja vista na forma de figura. Na forma alegoria.

Assim, sobretudo Knock on Any Door (1949) mas também Rebel Without a Cause (1955), iniciando com They Live by Night (1948) trazem uma visão bastante romantizada, um tanto unilateral dessa delinquência. Os filmes portam essa inata vocação de Ray: simpatizar com tais desajustados de partida, de modo irrestrito, de forma programática. Cada um desses três filmes situa-se distantes, portanto, de The Catcher in the Rye (1951), o livro que por primeiro e melhor diagnosticou esse mal estar juvenil no pós-guerra. No livro de J. D. Salinger, todavia, se pode perceber que o tédio e a falta de heroísmo na existência de Holden Caulfield, em parte deriva da própria pasmaceira do protagonista. Não deve ser creditada tão somente à sordidez do mundo. Quer dizer, do mundo adulto. Como nos features de Ray.

Outro motivo sobre o qual recai a simpatia de Ray assoma, contudo, menos pautado por esse romantismo em relação a tudo que recende adolescência e ritos de passagem. Tal aspecto vem a ser o mundo da mulher. Ao que parece, Ray aqui é menos condescendente, embora não menos empático. A visão que resulta disso surge, assim, mais complexa que no caso da rebeldia adolescente. Ray bem sabe divisar que entre as mulheres, mesmo entre as menos"neuróticas", as que não toleram violência masculina, há momentos de perda da compostura. (Ou seja, há momentos de violência de mulheres contra mulheres). Como numa cena de ciúme neste The Lusty Men, na qual Louise Merritt (Susan Hayward), a esposa, desfere um pontapé no traseiro de Rosemary Maddox (Maria Hart), a candidata a amante da vez, durante uma festa. Isso põe entre parêntese todo esse papo sobre sororidade.

Um dos momentos mais climáticos deste filme é quando Louise, a bordo de um trailer, na faina de dona de casa, após ser informada dos planos do marido, Wes Meritt (Arthur Kennedy) - permanecer no circuito dos rodeios mesmo após faturar a boa bolada em premiação necessária à compra do rancho, conforme planejado - tece diante de Jeff McLoud (Robert Mitchum), um verdadeiro libelo feminista. Bastante concreta, elucidativa, dita ao modo de um desabafo, cheia de ressentimento e dores acumuladas, essa declaração de Louise (Susan Hayward). Soa como um programa. Soa também como algo factível, algo que conquista e faz crer pelo argumento e pelo testemunho, ao contrário de certas sequências lacrimosas ou imponderáveis dos filmes de Ray em torno de adolescentes.

Quanto às sequências lacrimosas, é preciso dizer que mesmo neste filme, em que busca certa concisão psicológica - nem sempre um de seus fortes - Ray não deixa de conceder bastante ao melodrama. O fato de Jeff McCloud (Robert Mitchum) voltar subitamente às competições de rodeio sem preparo físico, sem treinamento adequado, tempo de adaptação, é o passo mais incongruente do roteiro. Que ele acabe morrendo por conta dessa incoerência, parece menos uma punição por um adultério que não houve - ao menos nas imagens em campo, embora poucos adultérios tenham sido melhor sugeridos na trama - do que a vocação geral de Ray: conduzir a coisa toda para o país do melodrama. É que ele é cidadão deste país, e nele sente-se em casa. É que ele também sabe tirar efeitos do melodrama como poucos.

Não o coloniza para, a partir dessa ação, atingir objetivos que têm mais a ver com outros gêneros. Não é o caso, por exemplo, de agir como agiria um temperamento mais europeu. Mais frio. Oblíquo. Esquemático. Esse temperamento, ao modo de um Ophüls, irá colonizar o thriller policial resvalando para melodrama, e dele extrair efeitos de sofisticada comédia de costumes. É a estratégia de Ophüls em The Reckless Moment (1948), talvez seu filme mais subestimado.

Não é assim com Ray. Ele não usa o melodrama contra o melodrama. De modo muito diverso, faz do melodrama algo que volta a atingir certo patamar de dignidade. Algo que recobra nos olhos marejados do espectador sua decência primitiva, sua plausibilidade básica. Sua dignidade enquanto dramalhão. Ray consegue reinstaurar a fé do espectador no dramalhão corrente, trazendo esse dramalhão para perto de arquétipos (alegoria) e da realidade. Ophüls, muito sorrateiramente, rompe com o dramalhão, e propõe no lugar - sem o espectador se dar conta dessa permuta ou máscara - algo em que é possível crer: o comentário social na forma da comédia de costumes. Logo, onde Ray restaura a fé do espectador pelo melodrama, ao propô-lo um pouco menos binário, Ophüls sutilmente substitui esse melodrama pela comédia de costumes. Tarefas bem distintas. Mas de certo modo bastante suplementares.

Uma e outra tarefa irão deflagrar diferentes simpatizantes. Godard e Truffaut, europeus e inicialmente críticos provindos de um meio já excessivamente cerebral, saturado de racionalidade, irão eleger como modelo a perspectiva do americano Ray, mais espontânea e intuitiva. Já o mais sofisticado dos jovens realizadores americanos de então, Stanley Kubrick, derivará nitidamente da perspectiva de Ophüls, o judeu-austríaco de mundividência expressamente vienense e centro-europeia. São prismas, aliás, bastante diversos, porém igualmente estimulantes. E suplementares entre Estados Unidos x Europa. Embora, aqui, a precedência seja americana.

Em favor de Ray conta não pouco sua predisposição para documentar num filme de ficção. O universo dos rodeios é mundo que está lá, independente das personagens que a ele chegam e dele saem. Pode-se sentir quase o odor forte do estrume, entre os currais, o turbilhão dos espectantes, o mirabolante da narração amplificada pelos alto-falantes, o estilo das roupas, a vida nômade acomodando-se nos trailers, e todo um submundo que vaza para trabalho e lazer. Ou para certa confusão de trabalho e lazer numa perspectiva que pode ser simultaneamente bizarra e cruel. Algo que não se extingue fácil, quando não se encontra mais ao centro da atenção. E a entrada das personagens nesse miúdo circuito não é senão uma brecha através da qual o espectador conhece bastidores de um meio bem menos glamuroso do que era de se supor. E, no entanto, evidente, quando as personagens saem dele, carregam-no em parte consigo: o ímpeto, a fisicalidade, um desafio análogo ao das touradas.

O microcosmo do rodeio encontra-se mais ao centro da trama que em The Misfits (1962), por exemplo. Esse filme de dez anos depois guarda notáveis semelhanças com The Lusty Men. Entre elas, certo olho documental avançando pelos bastidores do rodeio ou da vida de vaqueiro numa etapa um tanto posterior ao Oeste clássico. Um mundo que gera certa desorientação crônica na mente do caubói. Um mundo em crescente desagregação. Curiosamente, o terceiro filme que desdobra essa linhagem também assentada no documental, virá dez anos depois de The Misfits e vinte depois de The Lusty Men: Junior Bonner (1972).

O circuito dos rodeios antecipa, aliás, muitos aspectos ligados a certo show-business ainda longe da virtualização digital. Seu nomadismo faz lembrar as futuras turnês de grupos de rock ou as temporadas das corridas de automóveis. Há um circo a montar-se e desmontar-se. Seguindo de cidade a cidade, em peregrinação. Vive-se em trailers. E o jardim diante de casa será diferente daqui a uma semana.

Eis o ponto em que assoma, então, o grande motivo de Ray: achar na América uma espécie de lar mais ou menos definitivo, minimamente estável. Mesmo em meio à fronteira e ao nomadismo. Talvez dissociando-se de sua condição de império. Ou apesar disso. Sentir-se atraído por certa condição de acampamento, mas estar bem consciente da existência de um lar. Nem que como lembrança perdida, e idealizada. Quando no início mesmo do filme, o peão, sequelado por tombos e outras estrepolias, busca a velha cabana da família, e aí recobra os suvernires da juventude -- entre eles um velho revólver e um punhado de fotos -- estocados em um alçapão, sob ela; nesse movimento, busca também a raiz de um lar que ele próprio desconstruiu por estilo de vida. Há uma fábula americana em curso. Uma que só não é mais veemente, nesse filme sobre homens primitivos, porque o filme acaba refreado por certa censura ambiente. E o limite, aqui, não é pequeno. E, logo, o romance entre Louise e Jeff não pode consumar-se na tela. Não pode mais que ser sugerido. O que, convenhamos, limita um bocado a personagem de Jeff. E, por outro lado, torna todas as insinuações em torno tanto mais deliciosas.

Em The Lusty Men - esse filme sobre homens rudes, lascivos, que trata suas personagens como arquetípicas, ao modo de fábula moral - tal limite impõe-se ao ponto de a grande personagem, ao fim de tudo, não ser nenhum dos homens do título, senão uma mulher. E, no caso, ela é também a única fiadora de um lugar onde é possível refazer-se, repousar, baixar a guarda. Ou melhor posto: ela é o caminho para casa.

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