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Conversa#83 -Ano 3- Relances do Já e Agora[7]

Guerra Fria [Zimna wojna] (Paweł Pawlikowski, Polônia, 2018) - cin. Łukasz Żal

É mais acessível agradar uma platéia quando há um par romântico bem ao centro de uma bela fotografia. Possivelmente uma nota abaixo de Ida (2014), ainda assim Guerra Fria (2018) apresenta boas soluções para aquela velha história de um desejo que todas as canções têm pra contar. O casal de protagonistas luz. E, claro, especialmente a presença magnética e algo felina de Joanna Kulig. Embora quem conduza o novelo da trama seja mesmo Tomasz Kot, o pianista, Kulig enverga os saltos de uma mercurial cantora, que se vai deixando levar por sucessivas ondas de destino e sobrevivência no correr de um momento histórico prenhe de dilemas políticos. E isso numa época em que a política interferia em linha reta sobre afecções e escolhas. É bom que ao final Kulig tenha a última palavra, e até sugira uma mudança de perspectiva, nesse depois, quando o casal, já maduro, reconciliado e um tanto alquebrado, espera o ônibus à margem de uma estrada vicinal, na província. Tal iniciativa, tal percepção têm a ver com Zula Lichoń, a cantora, a protagonista.

De alguma forma.

O filme é vagamente inspirado nos pais de Pawlikowski. Junto com a mãe, ainda um adolescente, Pawlikowski emigrou para a Inglaterra. Mas os eventos passados neste filme datam de antes disso. E há também um dado decisivo na biografia desse realizador, que provém de uma família polonesa católica: a descoberta inesperada de que uma de suas avós era judia, executada em Auschwitz. Isso conta não pouco para Hollywood ou dentro da indústria de entretenimento.

...

O dado estranho passa por certa obviedade do roteiro. Algo análogo se dá também com o Loveless (2017), de Zvyagintsev: a trama é um tanto quanto plana. Em Guerra Fria um casal se acha, perde-se, se reencontra. Não mais. Não há intrincados rodeios. Sutilezas. Turning points. Twits and turns. As idas e vindas que baralham o espectador em filmes como The Big Sleep (1946). Da mesma forma, em Loveless, um adolescente desaparece. Existe então uma lacuna em ambos esses filmes. Não há neles algo que apele de forma mais populista a uma suposta inteligência do espectador. Compense-lhe por isso: artimanha tão comum nos roteiros de Hollywood. Em Hitchcock e seus epígonos. Esse jogar o biscoito canino e esperar o retorno do totó por mais, não ocorre aqui. Nesse sentido, os dois longas têm pouco de americano. Quer dizer da trama do filme americano clássico. Se postos diante da trama de um thriller noir, os respectivos roteiros iriam empalidecer. Iriam parecer de uma exemplar monotonia. A tradicional redação das férias diante de Dostoiévski.

Isso indica que narratividade desses filmes é intensa. É próxima daquilo que se acostumou a chamar de realismo histérico. Ou de sinestesia. Ou seja, de um rótulo inicialmente empregado para dar conta de certo estilo narrativo característico de prosadores estadunidenses. Algo que se esboçou ao final da década de 1960 e se estende até hoje. Só que agora dos dois lados do Atlântico, como bem pode atestar a obra de Zadie Smith. Grosso modo, há nesses romances e contos um prolongamento da narrativa na direção da sinestesia. Uma prodigalidade de detalhes e sensações. Uma vazão de detalhes que ameaça fazer picadinho do povoado abaixo da represa. Esse povoado que coincide com a mente de um espectador desatento.

Mas Guerra Fria é mais concessivo que Loveless, e traz um tanto mais de melodrama, de folhetim. E daí há ainda os que juram que Pawlikowski e Zvyagintsev jogam em diferentes divisões. Que o russo estaria na Série A, e o polonês quando muito na C. Mas parece haver certo preciosismo ou no mínimo alguma precipitação aqui. E para quem assistiu Ida e Leviathan (2014), não seria de se perceber tão grande distância, embora no caso dos filmes subsequentes (justamente Guerra Fria e Desamor) a incisão alargue. Especialmente por certa imprecisão de tempo em Guerra Fria. Quer dizer, certo problema, digamos, com "o tempo diegético". Com o modo como a temporalidade se encontra disposta, repartida, fatiada. E se vai desdobrando ao longo do filme. Pois há aqui certa irregularidade que ameça transformar algumas sequências em trechos de videoclipe. Em algo amparado no clichê dissertativo.

Tanto Pawlikowski quanto Zvyagintsev dependem muito de três aspectos: fotografia, direção de arte e direção de atores. (Dito assim, quem não depende, jovem?). Mas se em Zvyagentzev a ambiência parece mais decalcada do cotidiano, aparentemente menos construída, elaborada, estilizada em estúdio; em Pawlikowski essa ambiência assoma um tanto glamurizada e, algo, minimalista. Uma ambiência menos neo-realista ou documental, e mais da ordem da produção de um feature de ficção. Ou quase sempre em recoleta, um tanto distante do presente. Em geral, trabalhando com algo de época, com códigos reconhecíveis, e cobrindo sobretudo os anos do pós-guerra, a própria época que intitula este filme. Ambos os realizadores, por igual, trabalham com os mesmos cinematografistas, respectivamente Łukasz Żal (indicado para melhor fotografia pela Academia este ano) e Mikhail Krichman. E esses fotógrafos não poderiam ser mais diferentes.

O primeiro a tudo capta em aveludado preto e branco de alto contraste, e certo pendor para o esparso, para o clássico. Voltaremos a ele. Já Krichman opta por um colorido -- intenso mas discreto -- e olha para pessoas e coisas a partir de certa emulsão documental, onde há uma mistura de tensão e elegância. Note-se o quanto sua câmera reage maleável ao que tem por diante, pondo-se a serviço da mise-en-scène de modo orgânico, embora um pouco casual, enviesado, que passa pela ordem da gestualidade. Como se constituísse, em certos passos, uma modalidade de POV. Mas um POV tomado do ângulo de uma personagem tão secundária, que nunca entra em campo. No caso de Loveless, pode ser um voluntário que cumpre seu papel de modo exemplar, e não questiona as ordens do coordenador da busca. Pode ser um colega do pai, no banco, que se encontra ali próximo, colhendo o almoço no bandejão, e se detém em uma conversa protocolar. Pode ser a mãe de um colega de classe, que contempla a escola segundos antes do término das aulas. Ou um simples transeunte que atravessa o salão de beleza onde a mãe trabalha. O certo é que há uma inclinação para o casual nessa fotografia. Mas também para o testemunho. E essa inclinação -- casual e atestante -- vai muito bem com os propósitos de algum realismo histérico e exaustivo que se pode surpreender nos filmes de Zvyagintsev.

O ponto de vista de Łukasz Żal é outro. É mais clássico. Inclusive em seu formato de tela. Deriva expressamente da pintura. E dela toma algumas sugestões:

Divide o quadro em regiões, de modo racional e estudado, quase maneirista, não fosse sua devoção pelo despojamento, acentuada pela composição em preto e branco. É uma fotografia da ordem do projeto, do desenho e de uma iluminação meticulosa, um tanto acadêmica, que reparte o quadro entre penumbra e luz. Prescindir dessa fotografia contrastada, estilizada, seria prescindir de um recurso chave para a contação de uma história sem muitas subtramas, afluentes narrativos, anedotas.

O curso de Guerra Fria praticamente não comporta histórias acessórias. E nesse sentido segue em sua previsibilidade. Logo, a câmera -- com a exceção de uma leve escapada junto com o burocrata do partido que supervisiona e vigia o grupo de música folclórica -- está sempre com o casal. Ou no mínimo com um deles. Assim, a própria elipse quando do desaparecimento da coreógrafa, insatisfeita diante das ingerências stalinistas, enciumada com o interesse do pianista pela cantora, vai bem com essa trama magra, propiciada por uma câmera que nos devolve uma aveludada realidade em branco e preto.

Se há um fotográfo e uma fotografia a serem postos como antecedentes de Żal e de Guerra Fria, pode-se pensar em Boris Kaufman e em On the Waterfront (1954). É o mesmo preto e branco texturado, macio, estratificado, em camadas, de alto contraste, às vezes proposto numa ligeira granulação. E talvez isso não se dê por acaso, uma vez que Boris Kaufman -- assim como seu irmão mais velho, Denis Kaufman (mais conhecido como Dziga Vertov) -- é originariamente também da Polônia. E de um tempo em que parte da Polônia integrava o Império Russo.

Há outras indicações culturais que são pura delícia. O início do filme, arremedando o documental, nos apresenta uma coleta de material gravado. No caso, canções folclóricas registradas num gravador de rolo, na medida em que dois musicólogos pretendem arregimentar músicos locais. para um grupo, durante uma incursão por uma região erma e montanhosa. Algo orquestral, polifônico e coreografado, que viria a constituir uma espécie de cartão de visitas, de porta-voz musical da Polônia. E, então, ao se flagrar o pianista e a coreógrafa nesse afã, surpreende-se na expressão deles, bem como dos cantantes, certo patetismo. Um patetismo atribuído quase automaticamente ao ato de cantar. É meio óbvio que esse ato guarda algo de sublime, mas também um substrato de patético, de ridículo. E por literalmente dar voz a tanta emoção. Às coisas do coração. Logo, ao mesmo tempo que cantam, e se esquecem do que cantam, parecem apenas arrebatados. Mas às vezes sobrevêm a consciência do que se está a cantar, e, logo, é como se dissessem o verso de Cacaso: "Ah, se pelo menos o pensamento não sangrasse".

Se há algo que incomoda neste filme intenso vem a ser certo generalismo que é da esfera do videoclipe. Das belas imagens. Da publicidade. Do cartão-postal. Do genérico. Que o aproxima da generalidade e da tipologia de que o videoclipe se nutre, como se funcionasse à base de hienas eliminando vestígios documentais. Há certo esquematismo para caracterizar cidades, costumes, espaços boêmios, artistas e rotinas de performance (dublagens, aplicação de trilha sonora, gravação de disco, shows ao vivos em bares e restaurantes, etc). Isso se eriça sobretudo na etapa parisiense da trama. E implica que alguns sucessos passados portam certa cosmeticidade previsível, vazia. Clichês. Porém até aqui há que se ter em conta o quanto a direção de atores de Pawlikowski não opera exatamente numa zona próxima de certo naturalismo, de certa tendência à especificidade, à micro-história. E, logo, ao concreto. E tal procedimento espolia as cenas de alguma concreção no rumo de um generalismo. Um generalismo um tanto teatral. Esse estilo de atuação não deixa muito margem para coadjuvância. E, ainda assim, entre os coadjuvantes, a menção honrosa vai para Agata Kulesza na pele de uma coreógrafa empática e dedicada. Uma mulher madura, levemente enciumada de seu colega pianista. Nem sempre atores discretos têm seu charme reconhecido. Quase sempre, não. O certo é que Kulesza lega à sua personagem uma indelével e complexa dignidade.

O casal segue ao centro da trama em grande estilo. Quase não é necessária a expressão verbal para Joanna Kulig. Ela é moldada pelo mesmo pathos, o mesmo curto-circuito, a mesma intensidade, o mesmo magnetismo animal que molda divas como Maysa.

Rapidamente Tomasz Kot converte-se em coadjuvante nas cenas que reúnem os dois. Porque não poderia ser diferente. Aliás, não há atores mais distintos, em tipo físico -- e, no caso, até étnico -- do que Tomasz Kot e Wagner Moura. No entanto, há algo de muito afim em certo modo de reação de ambos. Talvez um riso de lábios, que não chega a escarnecer do outro, que não chega a escancarar dentes. E que parece rir um pouco de si mesmo. Não em sarcasmo apenas, em compaixão e auto-condescendência também. Riso que serve tanto para instantes de contentamento quanto para pesar ou indiferença. Aquela espécie de reação básica, default, que todo ser humano possui, quando se encontra imerso em si. E que a emprega automaticamente, quando está absorto, no mundo da lua, e não atende prioritariamente ao que um interlocutor está a dizer. Esse tipo de reação vem de automatismo mais que consciência.

Uma observação de comportamento e época vai para o trecho em que Wiktor agride Zula à saída do apartamento de Michel. Ela tinha acabado de ser presenteada com seu primeiro LP, recém-saído da prensa. Porém ela própria incomoda-se diante da indiferença de Wiktor, e provoca-o ao relatar detalhes de Michel na cama. Daí Wiktor exaspera-se e lhe desfere um tapa. É inadmissível qualquer defesa desse ato. Porém há aqui coisa diversa: a defesa do registro do ato como algo relativamente tolerado e/ou corriqueiro à época. Ou seja, sete décadas atrás. É algo análogo ao ato de fumar ou de dirigir embriagado. E deve ser entendido em mão dupla: também não era raro que mulheres agredissem homens. Ou outras mulheres. Como aliás quase ocorre no instante em que Zula, enciumada, vai tomar satisfações com Juliette (Jeanne Balibar), a poeta, durante um daqueles estilizados saraus parisienses.

Quantas garotas e garotos de hoje repelem a atitude em correção, mas desconhecem que são filhos de pais, de avós que provavelmente estapeavam-se entre si mais do que esses filhos e netos podem supor. Ou que não fosse raro que as afecções chegassem ao paroxismo do embate físico. E é o registro desse embate que não deve deixar de ser representado em nome de uma censura febril, moralista e um pouco tola. Embora, claro, essa representação não se dê de modo a naturalizar ou a tecer a apologia de tal conduta. Pelo contrário. De resto, há na atmosfera de Guerra Fria a sinceridade desse embate, dessa intensidade física, que em algum momento lembra Cassavetes. E só não lembra mais, porque Cassavetes trabalha com o específico. E Não é fácil hoje em dia falar de amor em tempos idos. E especialmente falar de amor num passado recente. E especialmente falar de amor.

Como paradoxo final é possível afirmar que, em temperamento, Zvyagintsev está mais próximo de Tarkovski. Embora curiosamente, algumas imagens deste Guerra Fria aproximem-se bastante dos filmes de Tarkovski. Talvez junto com certas locações de Loveless, poderia compor quadros que não fariam feio na composição da misteriosa Zona, do Stalker (1979). Se bem que em Guerra Fria, especialmente em cenas passadas na igreja em ruínas, há algo mais da ordem de Andrei Rublev (1969).

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