Antes de jubilação
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Conversa#92 -Ano 3- Oeste por toda parte[8]
Ride the High Country (Sam Peckinpah, Estados Unidos, 1962) - cin. Lucien Ballard
Lucien Ballard está para o western tardio assim como Nicholas Musuraca para o início da estética noir clássica. Se seguíssemos a classificação de Ezra Pound, e esses dois fotógrafos seriam ao mesmo tempo inventores e mestres. Mas Ballard não apenas arejou a perspectiva um tanto mais normativa e senso-comum dos bangue-bangues de Budd Boetticher e Henry Hathaway. Ele foi versátil o suficiente para iluminar e ajustar as lentes do primeiro longa comercial, The Killing (1956), de um jovem e obstinado diretor nova-iorquino, ex-fotógrafo da Look: Stanley Kubrick. Também para orquestrar os movimentos de câmera sob direção de Blake Edwards numa comédia com Peter Sellers (The Party, 1968), a reboque da popularidade dos filmes da série Pink Panther. E nesse ínterim trabalhou com veteranos estilistas. Gente de artesania refinada mas pouco empolamento ou senso de autopromoção, feito Jacques Tourneur (Berlin Express, 1948). Em Ride the High Country sua perícia em combinar paisagem ou arquitetura a estados de espírito está quase no auge a que chegará ao final da década de 1960, e início da seguinte, marcadas por um colaboração ainda mais estreita com o time de Peckinpah. Um time que estava ganhando.
Ride the High Country, como quase tudo tocado por Peckinpah, é uma espécie de elegia. O Oeste já passou do ponto. E embora possa ainda ser selvagem num povoado de garimpeiros na montanha, isso é exceção. Há já certo cosmopolitismo e excesso de capital e capitalismo nas cidades, como atestam a presença de um camelo ou de um circo. Um parque de diversões em que se pode pagar para assistir a espetáculos que ritualizam gestas de um Oeste já ido. Gil Westrum (Randolph Scott) trabalha em algo assim, sob um mau disfarce de Buffalo Bill. Além disso, os dois protagonistas, Steve Judd (Jim McCrea) e Gil Westrum são já dois velhotes quase acercando-se do jubilamento.
A trama é mínima: Judd, um pistoleiro veterano, com um sobejo de reputação no alforje, é contratado por um banco para transportar certa quantidade de ouro de um garimpo na montanha até a agência na cidade. Judd, então, recruta um velho conhecido, Westrum, e um jovem amigo deste, Henck Longtree (Ron Starr). Ambos, contudo, estão, de partida, determinados a ludibriar Judd para dividir o butim. No caminho, uma garota fugindo de um pai excessivamente carola junta-se ao grupo. Ela e Henck acabam se apaixonando, para a delícia e a língua experiente, maliciosa da dupla mais veterana de vigilantes.
Os gerentes do acanhado banco expressam dúvidas quanto à capacidade de Judd, porque acham-no velho. Como se não bastasse, Judd irá recrutar Westrum, outro veterano. A presença de um jovem casal em formação era assim necessária para contrabalançar tamanha geriatria. Ride the High Country é uma elegia também no aspecto de constitui-se no derradeiro filme de Scott e no último de McCrea com real impacto e aclamação crítica.
Boa parte das conversas entre Judd e Westrum são evocativas. Revisam. Falam dos tempos em que eram jovens. Nesse ponto parece-se mais com Odisseia que com Ilíada. E os tempos reconvocados são aqueles em que o Oeste era o Oeste, não essa atração de circo ou faz de conta de então. Ambos comentam com certo desprezo sobranceiro os equívocos de Henck (Ron Starr) e Elza (Mariette Hartley), como se estes fossem sobrinhos e, volta e meia, necessitassem de uma correção de curso. De uma, digamos, assessoria ou aconselhamento sentimental. Randolph Scott em particular parece retirar da situação amorosa, das vicissitudes dos jovens pombinhos, o tanto que elas têm de cômicas. O tanto que qualquer namoro tem de comédia.
--All I want is enter my house justified -- diz Judd, quando indagado por Westrum quanto a seu motivo último, durante o arriscado caminho de volta das minas. E é uma resposta de tom elegíaco, já que casa aqui pode ter a acepção de túmulo. A resposta é significativa para Westrum. Mas não o demove do plano traçado inicialmente: matar Judd e dividir o dinheiro com Longtree -- mesmo que este já se mostre, então, hesitante. E em seguida abrace o ponto de vista de Judd.
NOTAS
Lirismo (a cena de Judd barbeando-se e Elza (colhendo água)).
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Recolha de tempo entre velhos é algo que preenche sequências inteiras deste filme em que o Oeste já não é tão selvagem.
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Na beleza da moça existe algo de andrógino. Aliás, essa personagem guarda uma ambiguidade que parece refratar o complexo motivo de Vienna em Johnny Guitar. Só que em tom menor, mais comezinho ou quiçá menos alegórico, mais nos domínios do realismo que da fábula ou da alegoria. Elza (Mariette Hartley) é um ponto de esperança em meio à misoginia-ambiente.
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"I don't think I met a perfect gentleman before Mr. Longtree" -- é a provocação que põe em dúvida a masculinidade de Henck (Ron Starr) aos olhos dos garimpeiros.
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Warren Oates dá o ar da graça no prosaico papel de garimpeiro sórdido, que resiste ao banho mas acaba jogado num bebedouro transbordante. E porém estamos falando de Oates, e ele dá um jeito de parecer ainda mais sórdido pondo um corvo sobre o ombro, evocando Poe, envergando casaca, chapéu alto, e agindo de forma bem pouco cavalheiresca diante da noiva. Na cena do casamento, o semblante transtornado de Oates, cheio de lascívia pela noiva, cai sob a mira do revólver de Steve (Joel McCrea).
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O presumível juiz de paz bêbedo como um gambá, ri da situação em que a noiva é sequestrada pelo guarda do banco e seus capangas. O malogrado casamento de Elza, aliás, vira o centro da trama. Henck assume de vez que quer a moça. Mas o recém-marido pode apelar para uma espécie de conselho, que dirime esse tipo de caso entre os garimpeiros. Um tribunal improvisado.
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Num determinado momento, Gil Westrum (Randolph Scott) perde a paciência e a compostura diante do juiz de paz embriagado:
"Listen to me your fatted gutted soak you'll do as I said".
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Uma cena de roubo toda calcada em botas e cascos de cavalo. E súbito os dois velhos valentões estão frente à frente.
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Há aqui uma brincadeira de Peckinpah, pois o primeiro semblante a aparecer em quadro é o de Westrum (Scott). E se pode ter a impressão de que ele suplementa o quadro anterior, o de quem segura a arma. Mas na verdade ele está sob mira dela. Sob a mira da arma de Judd, e joga no chão os alforges com o dinheiro.
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-I knew in my bones what you aimed for but I wouldn't believe it - diz Judd agastado.
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-This is bank money, not yours - diz Westrum.
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Mas o tira-teima será à moda antiga: quem sacar primeiro.
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Se não insistisse numa inusual frontalidade em determinados planos, Ride the High Country poderia ser um western de Tourneur. Não menos pela circunstância de se pisar em um terreno acidentado, fora da geografia mais canônica do western. A fotografia, a cargo de Lucien Ballard, é correta, bela até, mas não excepcional.
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Certa visada oblíqua parece mais com Tourneur. Embora seja exceção.
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Os contendores tomam posições para o tiroteio preliminar da companhia. A matinê. A banda de abertura.
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Marca registrada de Peckinpah: violência gráfica. O tiroteio parece um balé de tão bem coreografado.
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Henck Longtree não desperdiça a chance e se destaca na refrega. É quem mais tem a perder. E a quem impressionar. Aqui ensaia-se para The Wild Bunch (1969). Mas é um estudo e tanto.
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E é claro que o filme não poderia terminar sem um conflito de gerações. Ao som de tímpanos e metais graves.
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