Uma causa justa
Conversa#84 -Ano 3- Relances do Já e Agora [8]
BlacKkKlansman (Spike Lee, Estados Unidos, 2018) - cin. Chayse Irvin
Se algo fica claro em BlacKkKlansman é o fato de, apesar de ser bom filme, não ser o melhor filme de seu diretor. Isso dá a medida de Spike Lee. Ele é um dos grandes diretores de sua geração, ao lado de Nolan, dos irmãos Coen, de Soderbergh, Fincher, Tarantino, P. T. A., Wes Anderson e S. Coppola. Mas também dá a medida de a trama não se mostrar nada sutil ao sugerir que a direita branca supremacista um dia chegaria à Casa Branca. Como profecia, a coisa é um pouco tardia. Como rememoração, não exatamente perspicaz. Os enxertos documentais tomando protestos contra marchas supremacistas na Carolina do Norte, contra o propalado Unite the Right Rally, assomam mais que esquemáticos, um tanto pueris. Didáticos demais no contexto. Meio como se o roteirista do filme, para tais trechos, não passasse de gente que se tenha aposentado como integrante de um diretório acadêmico. E a vida, convenhamos, é mais que diretório acadêmico.
O que se deve temer quanto a posições políticas: intransigência. E a certeza de estar do lado certo, do lado do socialismo, da partição de renda, das garantias individuais, dos direitos humanos, de um estado de bem-estar social, não nos deve conduzir a abusos de poder. Os grandes genocídios e matanças, como os de Hitler, Stálin, Mao, foram perpetrados em nome de certezas, de causas justas, de coletividades injustiçadas. E nem por isso são crimes menos bárbaros. E é indesculpável que até hoje a truculência de Stálin encontre quem a justifique, e que scholars do raio de influência de um Zizek ainda pugnem por ela. Mesmo os que são menos caricatos ou divertidos que o esloveno.
É gratuito, um tanto populista falar em nome de uma coletividade. Pois quase todos que tiveram esse lugar de voz, essa prerrogativa, acabaram seduzidos pelos privilégios que esse lugar de poder, que esse poder de falar pelo outro suscita. (Cá pelo Brasil, Lula e o primeiro escalão petista que o diga). Ao invocar episódios como as manifestações de Charlotesville automaticamente alguém se propõe numa posição de enfrentamento. E, logo, de poder. E é necessário, então, ao cineasta, saber exatamente qual imagens devem compor com os trechos de documentário que versam sobre um episódio de tal importância e simbologia. E não se deixar contaminar pelo populismo ou por um discurso contestatório mais ou menos previsível e padrão.
Nada perto de eloquentes são esses enxertos documentais no filme, como parece ser a pretensão. E BlacKkKlasnman, enquanto profecia política tardia da chegada de Trump e sua tropa ao poder, não passa de um devaneio distópico um tanto previsível, escrito por alguém que assiste a séries do Netflix, é verdade, mas que também parece guardar com carinho as charges do Henfil -- deve ter havido algo próximo ao Henfil por lá durante os mandatos de Reagan -- e as leituras fichadas de Eduardo Galeano, Carlos Castañeda, Herman Hesse, Paulo Freire e Francisco de Oliveira. Pois, com as devidas adaptações, com certeza esses caras também existiram em espírito de época naquelas latitudes. Ou, quem sabe, o roteirista de BlacKkKlansman, além disso, assiste ao equivalente norte-americano do Fantástico aos domingos. (Deve havê-lo(s)). E, evidente, não se pode abarcar um motivo tão complexo a partir dessas fontes datadas e um tanto propedêuticas, simplórias. Algumas delas.
Aqui deve-se falar em roteiristas, no plural. O filme foi escrito por um equipe de quatro: dois negros -- incluindo o diretor -- e dois judeus. O que explica a personagem de Adam Driver. De resto, esse influxo judeu é responsável por não pouca coisa nas tramas de Hollywood.
Logo, a impressão que se tem é a de que BlacKkKlansman é um filme coerente a despeito de suas fraquezas. Mas nada o emascula mais que o fraco tratamento dado à questão política. E exatamente por conter tão pouca autocrítica à esquerda e aos de esquerda, bem como por não reconhecer méritos em quem pensa diverso. Ou indistintamente vincular a direita e seus luminares à Ku-Klux-Klan, quando se sabe que a vasta maioria dentre os Republicanos condena tal instituição.
Descontada essa salada política mal ajambrada, o filme até que funciona. No registro de uma comédia negra -- aqui, sem resquícios de trocadilho ou ironia -- ao modo dos Coen, é como esse thriller político ameaça pegar e carburar. E porém há esse excesso de bom-mocismo ideológico que acaba arrastando tudo para o brejo do previsível, do lugar comum, ao delimitar tão explicitamente: mocinhos à esquerda, malfeitores à direita. Preto bom, branco mau. Esquerda justa, direita injusta. Mulher ponderada, homem violento. Pois, pensando bem, não é um filme exatamente igual a esse o que testemunhamos dia após dia em nossas TLs, cá pelo Brasil no ano de 2019? Um retrato de mocinhos tão sem defeitos, e de malfeitores perversos? Será que ninguém desconfia que em algum lugar do futuro tal polarização e tal histeria partidária serão vistas como um tanto simplórias e abjetas? Verdade que num determinado passo, a personagem encarnada por Adam Driver se rebela, e ameaça ficar complexa. Mas deve ter sido apenas um arroubo do ator -- ou da parte judia dos roteiristas -- contra a planura da personagem, e então se deixou passar esse arroubo para corte final.
O protagonista, vivido por John David Washington, é até charmoso e bem humorado para um protagonista em 2019. E isso talvez se dê porque na verdade ele vive nos anos 1970. Verdade que namora uma ativista estudantil belíssima mas um tanto insossa, e até meio xarope. Mas isso faz parte da pantomima, e há uma bela mulher a interpretá-la: Laura Harrier. Ao que tudo indica Harrier é mais inteligente que a personagem -- decalcada de uma Angela Davis que chegou a ser musa de uma canção de Lennon e Yoko. É certamente mais perspicaz que a ativista do filme, a quem cede um tratamento distanciado e um tanto irônico, na interpretação. Salvo engano.
Sobre heroísmo político, Borges escreveu o conto definitivo: "El tema del traidor y del héroe". E a partir dele temos melhor dimensão de o quanto heróis políticos -- à direita ou à esquerda, tanto faz -- não são lá esses balaios todos quando vistos na intimidade. Ou seja, são bastante semelhantes ao resto da cambada. Do que se convencionou nomear por humanidade. E, pior, apesar dos defeitos, não compuseram nonas sinfonias, concertos brandeburgueses, pintaram mulheres envergando pérolas, enormes girassóis ou escreveram Hamlets.
Há muitas belezas na luta anti-racismo dos afro-estadunidenses. Mas essas belezas só parcialmente dizem presente em filmes como BlacKkKlansman ou até mesmo I Am Not Your Negro (2016) -- que ao menos traz o didatismo de apresentar ativistas e artistas negros menos conspícuos. E é preciso investigar as razões dessa parcialidade. Afinal, causas justas deveriam gerar belos filmes. Deveriam dar o que pensar. Mas quase sempre não é assim nos filmes. No Brasil, filmes que têm cortejado o ponto de vista das esquerdas ou do PT revelam-se quase descartáveis. Ou, no mínimo um tanto programáticos, populistas, um tanto chapa brancas. De Entreatos (2004) a O Processo (2018) passando por A Torre das Donzelas (2015).
Se hoje é um tanto difícil levar a sério uma história de amor, mais difícil ainda é escrever um filme político e tentar ser levado a sério. Pois aqui, na redação dessas fábulas panfletárias, segue-se em geral algo formulaico. E é difícil entrever alguém com o grau de integridade e desconfiômetro de, digamos, um George Orwell. Alguém que, embora de esquerda e com declaradas simpatias trotskistas, ponha isso de lado na hora de escrever. E, então, seja capaz de gerar uma grande fábula política enquanto artista, a despeito das simpatias e preferências partidárias pessoais.
Portanto, ao se escrever tais fábulas no presente, segue-se embutindo-as de um excesso de teleologia. Excesso de intenção. Excesso de programa prévio. Excesso de potencial proselitismo. E nenhum desses excessos gera integridade, intuição ou inteligência em arte. Ou algo próximo do paradoxo de que se alimenta a matéria mesma do fazer artístico. Geralmente resvala-se para um visão da história à reboque de um ingênua boa vontade de esquerda. Como se houvesse uma reparação histórica, uma espécie de vingança (virtual) dos injustiçados permeando atos mínimos. Mini-vinganças a todo instante e em homeopatia. O problema, aqui, é que essa mini-vingança só acontece na traminha do filme. O policial negro ganha ao telefone do estúpido supremacista branco, ludibriando-o. E todos nos reviramos satisfeitos na poltrona. Catarse. Mas pode-se perguntar, depois, diante do próprio desfecho do filme: será que ganha mesmo? Do mesmo modo, soa caricata, por exemplo, a aliança entre o negro e o judeu. Mas isso, vindo de Hollywood, é um tanto fácil de deduzir o porquê.
Mais esplêndida, menos decifrável em meio a essas mamatas e simplificações edulcoradas, é a pujança da cultura afro-estadunidense. Especialmente da música. E de como o suingue propagado por ela, e seus subprodutos -- a cabeleira afro, os adereços chamativos, as gírias, gestos, ginga e o estilo de proselitismo político, que guarda tanta afinidade com o dos pregadores evangélicos e o dos coros gospel -- assoma muito mais subversivo e refinado que o mero discurso político em si, passível de ser posto em palavras. Porém desafortunadamente BlacKkKlansman vai menos por aí, e mais pelo discurso, pelas palavras. E se recusa a cortar na própria carne. E é um filme que guarda um débito expresso para com a palavra. Especialmente a palavra falada, da ordem do comício, do rally, do discurso do político.
Mas nada se dá por acaso. E quando um crítico como Richard Brody, na New Yorker, investe tão asperamente contra Roma e em favor de BlacKkKlansman, sabe-se bem em nome de quem ele investe. E é um investimento, a rigor, reterritorializante, pois politicamente congrega judeus e negros, já mais estabelecidos, contra latinos, que representam uma cepa mais recente de imigrantes. De qualquer forma essa retórica de esquerda nunca esteve tão rente a certa intolerância de direita. E as duas posições políticas nunca surgiram mais repugnantes ou intercambiáveis.
Quando essa palavra mais convence, ela volta ao passado. Ela vem na voz roufenha de um artista/ativista do vulto de um Harry Belafonte. E é bom vê-lo velhinho acomodado numa bela cadeira de espaldar alto, cercado por jovens, falando às novas gerações, que o escutam com reverência. Mas nem sempre o lugar da fala guarda a sabedoria de Belafonte.
Por isso mesmo, os melhores filmes políticos hoje em dia apenas tangenciam a política e a palavra política. Tocam em ambas muito en passant, sem nenhuma pretensão de serem didáticos, exemplares. De serem convencionalmente políticos. Ou seja, de serem proselitistas. De serem normativos. Heróicos. Quer dizer, os melhores filmes políticos desde sempre -- como os de Bresson, Dreyer, Bergman, e Tarkovski; ou mais modernamente Haneke, Kaurismäki, Zvyagintsev -- passam longe de se pretenderem ortodoxamente "políticos". Antes de serem grandes filmes políticos, são grandes filmes. E, nesse sentido, por razões que seriam vastas demais para se justificar por aqui, mas que em parte estão discutidas por CÁ, Roma é um filme muito mais decisivo e maduro, politicamente falando, que BlacKkKlansman. Embora ao leigo, como ao nosso dileto personagem de outra resenha, Carlos Otávio Guarani-Kaiowá, pareça exatamente o contrário.
Essas são algumas das reservas que podem ser feitas em relação a BlacKkKlansman. E parece meio óbvio que Spike Lee já dirigiu filmes que mereceram melhor distinção da Academia, como Do the Right Thing (1989) ou 25th Hour (2002).
O primeiro é o tipo do filme cuja relevância política tende a ganhar destaque no correr dos anos. E, logo, é algo que dificilmente a Academia é lúcida ou perspicaz o suficiente para premiar na ocasião do lançamento. Na ocasião certa. E é para tanto há os Oscars honorários pelo conjunto da carreira, a tentar suavizar essas pisadas de bola.
Já o segundo, 25th Hour, é menos relevante como fábula política, embora se imponha como melhor filme -- em termos de cinematicidade, das astúcias e dispositivos cinematográficos -- e como ótimo registro de um momento histórico candente. Porém esse segundo dificilmente seria o escolhido, e porque os protagonistas não são negros. Que a academia acabe distinguindo um filme menor de Lee, justamente para tentar reparar equívocos passados, dá prova apenas da inércia dela própria. De seu pouco empenho em enxergar prospectivamente. Em arriscar. Em, por que não, cometer equívocos mais estimáveis. Em fazer a coisa certa.
Porém, como no dito da emenda e do soneto, a Academia insiste em cometer esses equívocos em retrospecto.
Amplificando-os.
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