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Jetztzeit

Conversa#85 -Ano 3- Relances do Já e Agora[9]

Transit (Christian Petzold, Alemanha, 2018) - cin. Hans Fromm

Falta pouco para Transit ser um dos grandes filmes de 2018. Na verdade, se ele complica-se um pouco ao final, isso se deve a um excesso de idas e vindas que, sim, podia ter sido evitado sem prejuízo de um final em suspensão. Há dispositivos simples mas bastante engenhosos: um filme da Segunda Guerra, um filme de época, passado em meados dos anos 2010; o uso imaginativo da voice-over como um dispositivo ao mesmo tempo literário e literal; certa ambiguidade de sentimentos que forja personagens contraditórias, encorpadas; uma cena de suicídio absolutamente paradigmática; um homem que um tanto fortuitamente acaba assumindo a vida de um outro que era um escritor importante e de quem ele viu os vestígios de morte, e de quem leu o derradeiro manuscrito, e de quem vai conhecer a esposa, e se apaixonar por essa esposa; uma Europa deglamurizada, onde há imigrantes por todos os lados; boas analogias lançadas como dados e que não abolirão o acaso -- seja no caso de exilados alemães não medindo esforços por um visto de imigração, seja no de imigrantes recém-chegados do Magreb aos cortiços de Marselha, meio clandestinos, atrás dos subempregos e do futebol das horas vagas. De certa forma a Segunda Guerra é agora, e agora é a Segunda Guerra. Os tempos são como que fundidos, acavalados dentro de uma perspectiva que faz lembrar o Jetztzeit de Benjamin.

Há um turbilhão de energia confluindo para Marselha naquele tempo e estado. Cruzando as ruas desse porto em diferentes direções, para diferentes consulados. Portando diferentes desejos. Há vetores de volição entrechocando-se à medida que entram no campo visual de Transit. E pode-se imaginar as divisões alemãs descendo no mapa. Instaurando apreensão, terror. Eles estão prestes a chegar. É questão de dias, horas. O momento é aquele em que tudo se precipita. E, logo, quase qualquer futuro -- liberto ou não, vivo ou não, deportado ou não para um Lager -- é possível. Vive-se um momento limiar. Aqueles em que tudo é chama e perigo. Como o 11 de Setembro. Uma sensação de realidade instaura-se. E deriva precisamente do excesso de realidades trágicas invadindo brutalmente o cotidiano. Poucos filmes ilustram tão bem esse apreço pelo conceito de despertar, de limiar, tal como proposto por Walter Benjamin.

Não por acaso há uma profusão de imagens feitas no limiar de portas e janelas. Os navios, fazendo-se ao largo, são vistos a passar por elas e pelos balcões debruçados sobre a baía. O futuro fica mais perto, quase ao alcance da mão, quando se corre esses riscos tremendos. É quase possível vê-lo a bordo. E não embarcar nesses navios é perder sua perspectiva de sobreviver. E há uma espécie de permanente análise combinatória de possíveis futuros e possíveis casais precipitando-se, virando limites e fronteiras: o médico e a viúva do escritor. A viúva do escritor e o técnico de rádio transmissores. A mãe argelina do garoto asmático e o técnico de radiotransmissores. Este e a suicida. E não deixa de ser estranho o modo como a viúva do escritor confunde o protagonista com o marido antes mesmo de os dois darem um com outro, por intermeio do garoto asmático e do médico.

Aqui, é evidente, temos por diante um tipo de realismo que se aproxima da histeria, a potencializar, por igual, possibilidades de futuro e hipóteses de passado. Um tempo impregnado de mudanças, de contingências, de revoluções. Nesse sentido, o roteiro parece haver saído a marteladas dos prosadores pós-modernos americanos, além, claro, de receber influxos de Walter Benjamin. Não deixa de acontecer muitas coisas em Transit. Mas parece que acontecem ainda mais. Um universo de coisas. O próprio Aleph, na descrição de Borges.

Ao conceder a última instância narrativa a um voice-over que praticamente duplica a imagem, o filme torna-se simultaneamente literário, literal e agrega algo de testemunhal a cada personagem. O discurso livre indireto assume uma estranha inflexão. Algo que confina com a narrativa de uma novela (literária). Uma companhia, que empresta relevância e sentido a cada mínima vida. Que faz de um garoto filho de imigrantes o portador da Parúsia (ou Parousia, como prefiro).

Que Georg (Franz Rogowski), o alemão em fuga, se importe com a vida e com os sentimentos desse garoto é uma das boas novas de Transit, em meio a uma atmosfera de salve-se quem puder, da qual Georg não está imune, aliás. Essa atmosfera alcança seu paroxismo na cena das prisões, nos corredores do conjunto habitacional. Ou nos dilemas de Richard (Godehard Giese), o médico. Ou no suicídio da mulher dos cachorros (Barbara Auer).

Por tudo isso há muito vigor, muita libido política em curso. E as personagens são incrivelmente ousadas: complexas, paradoxais, contraditórias. Parecidas com gente de carne, osso, sangue, linfa, cuspe, banha e outras cavas e volumes. Outras volubilidades. E de um modo urgente, como personagens nem sempre conseguem ser nos filmes, em 2018. E isso num filme fadado a ser um tanto plano, ao tratar de motivos tão assentados, consolidados, como os temas em torno da 2ª Guerra. E, não obstante, as reflexões acerca da culpa de escapar vendo outros perecerem faz lembrar os dilemas éticos vividos pelos judeus sobreviventes aos Lagern, tal como propostos por Primo Levi em seus romances e contos. Ou por Paul Celan em seus versos. Além do que, por sua disposição gráfica temporal -- confundindo passado e presente -- o filme insiste que é impossível pensar a Europa de hoje dissociando-a da realidade da 2ª Guerra. Ou melhor posto: que só uma reflexão continuada acerca da 2ª Guerra pode impedir um novo conflito.

Pode-se lembrar de vários filmes a partir de Transit. Casablanca (1942) é o primeiro deles - e, aqui, não descartando seu duplo: Passage to Marseille (1944), ambos produzidos durante a Segunda Guerra. E, num certo sentido, Transit não é mais que um Casablanca reencenado em 2018, pois os motivos são praticamente os mesmos. Inclusive o triângulo amoroso conturbando uma polarização bélica e ideológica já acirrada. A diferença é a perfeita desorientação de Georg, o protagonista de Transit, que segue assumindo uma variedade de decisões em cascata, até tornar-se, como convém, um herói pós-moderno, uma espécie de esperador de Godot. Nesse ponto ele é o inverso mesmo da firmeza de Rick Blane (Humphrey Bogart). Mas há vários outros filmes sendo conjurados. Alguns de forma breve, apenas por contingências. Por exemplo, certa recorrência de cenas num café, com carros de polícia passando ao largo, na rua, do lado de lá da vidraça, aponta para a atmosfera de Rififi (1955). E isso faz com que os exilados alemães, numa França ocupada, surjam ainda mais clandestinos. E certa atmosfera geral de conspiração do mundo contra as personagens lembra o que há de mais sombrio nos filmes de Haneke. Pesadelos que existem a despeito de si. Às vezes transcorrendo em meio a uma leveza, a uma desfaçatez kafkiana.

Há, por igual, uma decisiva participação dos mortos no destino dos vivos. Em relação a Georg, seu futuro é praticamente lançado por Heinz, o amigo morto no trajeto de trem entre Paris e Marselha. Mas também por conta do suicídio de Weidel, o escritor. Ou, mais adiante, pelo suicídio da arquiteta. No caso, o primeiro decreta os fortes laços que irão unir Georg a Driss e Melissa. Assim como o segundo decreta sua facilidade de mover-se na obtenção de vistos e carimbos, bem como a natureza de seu envolvimento com Marie (Paula Beer) e, por tabela, com Richard, o médico. A terceira tem impacto imediato sobre sua relação com o próprio momento vivido.

Eis uma diferença entre Transit e os três outros filmes que guardam com ele analogias mais estreitas de motivo ou de astúcias: Desamor (Zvyagintsev, 2017), Iles of the Dogs (Wes Anderson, 2018) e Guerra Fria (Pawlikowski, 2018). Isso a despeito de certas reservas que possam ser feitas em torno de Guerra Fria. Os três conformam filmes em que se lida com o político de forma não ingênua. Quer dizer, de forma não apenas prosélita, naïf ou "bem intencionada".

Falta pouco para Transit ser um dos grandes filmes de 2018. E talvez não falte nada, uma vez que ele seria incompleto, não apelasse, ao final, para diversas possibilidades de final. Ou também não legasse a seu protagonista um estado de indecibilidade e de expectação que é o próprio presente vivido, conjugado hoje sob Trump e Putin. Sob Orban e Bolsonaro. Sob Duterte e Maduro.

Com Transit chega-se finalmente ao filme político com a dose necessária de ceticismo, indecisão, maturidade. Ou de franco niilismo diante da política institucional. Com a dose do saudável anarquismo que decreta que não só não há bom governo, como também não há boa oposição. E, logo, não é bem de se explicar que Transit tenha passado um tanto incólume pelo circuito dos festivais e pelas listas de melhores do ano. Especialmente quando se dimensiona que essa lacuna se dá às expensas de certa caducidade de um Goddard que se expressa via um ensaísmo um tanto roto, esotérico e previsível. (O enfant-terrible envelheceu mal). Ou de um Welles não editado pelo próprio autor de Citizen Kane, mas urdido pela Netflix como punhalada final na sala de cinema. Ironicamente. Ou de franquias um pouco xaropes que são entrevistas como o supra-sumo da reflexão mais pungente e atual sobre o mistério divino, como em Vidro (M. Night Shyamalan). Ou em certa reflexão monótona acerca da finitude da vida quando se é ainda tão jovem numa terra áspera: The Rider. Ou, por fim, até de certo romance cosmético embalando numa fotografia de sonho, como em Guerra Fria.

Ainda vamos ouvir falar deste filme. E deste diretor.

É um filme particularmente agudo no manejo do conceito de história. E na habilidade de contar essa história heteroclitamente. A partir de diferentes dons, libidos e poderes.

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