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Nenhum cão é uma ilha


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Conversa#87 -Ano 3- Relances do Já e Agora[11]

Isle of Dogs (Wes Anderson, Estados Unidos, 2018) - cin. Tristan Oliver

E então chegamos a um dos melhores filmes políticos do ano. E é fácil reconhecer seus méritos, porque não se presta a uma alegoria óbvia. E praticar alegorias ou literalidades óbvias tem sido, nos últimos tempos, a moeda corrente nas caixas de comentário, nas postagens, nos tuíteres. Nessa sufocante polarização que abateu-se sobre o mundo, com menção honrosa ao Brasil. Uma polarização que sugere que a política partidária assuma um valor mais absoluto do que deveria assumir. E daí este Isle of Dogs bem poderia ser mera sátira de Trump e sua tropa. Isso até não se pode descartar, porque a conjuntura é tão grotesca. Mas a importância de não sê-lo de forma específica é o que sobressai. Pois seria óbvio demais se fosse. Quando, do contrário, qualquer regime ou líder autoritário -- de Kim Jong-un a Duterte, passando por Bolsonaro, por Maduro, Netanyahu e Oban -- pode vestir a carapuça.

O traço visual de Isle of Dogs aponta para a ilustração. E os cães, que surgem quase sempre em grupo, parecem provir mais de livros ilustrados, que porventura andaram nas prateleira do jovem Wes Anderson do que propriamente de um pet que o acompanhou com zelo e estoicismo caninos. Esse derivar a imagem em movimento de uma imagem fixa, aliás, é algo que não conta pouco para os realizadores americanos atuais. Os Coen fazem isso recorrentemente, e como ninguém. Inclusive em seu filme mais recente, The Ballad of Buster Scruggs. Mas certo desenho fixo, imagem fixa, que antecipa e rege a imagem em movimento também pode ser visto na raiz do Phantom Thread de Paul Thomas Anderson. Aqui, de modo mais alusivo ao próprio trabalho do desenhador de moda, do modista.

O apelo de Isle of Dogs passa por uma conjunção de referências. A mais decisiva: veneração que muitas crianças, adolescentes, jovens, em qualquer lugar do mundo, têm pela cultura japonesa, via quadrinhos e cartuns. Esse fascínio nasce cedo e mora longe. Passa recibo de um soft-power japonês que é único, e às vezes um tanto inexplicável. Ou em parte explicável pelo exotismo e pela continuidade de heranças da cultura japonesa tradicional -- como a escrita ideogramática, as artes marciais, a arquitetura, a pintura de rolos, Basho, o tanka, o haiku, a culinária, a estética das sombras ou o salão de chá -- em meio a um oceano de tecnologia e modernidade.

Alguns procedimentos e opções soam arrojados neste stop and motion. Um dos mais arriscados: a não tradução do japonês em momentos que não sejam estritamente necessários à apreensão do enredo. Assim, o despótico prefeito é o mais traduzido "diegeticamente", porque é para onde converge a tensão da trama. Por seu turno, os cachorros já se expressam em inglês, que é uma língua bastante franca para se latir à vontade e, ainda assim, ser entendido. Mas essa prerrogativa de não traduzir do japonês -- a rigor não captamos nada do que o jovem Atari diz, a não ser por contexto -- foi uma opção louvada por nove entre dez tradutores ou especialistas da área. Entre outras ela possibilita alguma escuta da língua japonesa. Tal escuta, sem embargo, não se daria com tamanho grau de nitidez se o mesmo trecho ocorresse dublado ou legendado.

A fábula se passa num Japão meio distópico daqui a 20 anos, na esteira de uma ameça de epidemia de gripe canina. Um despótico prefeito japonês bane os cachorros da cidade. Os animais são postos numa ilha usada como depósito de lixo. Quarentena permanente. Monturo. Exílio. Mas, inconformado com a perda de seu melhor amigo, o sobrinho do prefeito baixa na ilha de avião. Junta-se a um grupo de cães, capitaneados por um cão de rua. Juntos planejam o retorno em massa dos totós a Megazaki, cidade da qual se encontram exilados.

As condições do exílio são desoladoras. Há lixo, ratos, insetos e vermes por toda parte. Os cães passam fome, e o dia de amanhã é incerto. Eles desconhecem como vivem os cães que não estão próximos. E até mesmo supõe que os grupos que habitam uma região mais remota pratiquem o canibalismo.

Nesse ínterim, o prefeito comanda o envenenamento do cientista que havia sintetizado a vacina contra a gripe dos cães. Auxiliados por um grupo de ativistas adolescentes, que fazem oposição ao prefeito, liderados por uma garota de Cincinnati, Ohio; o sobrinho retorna triunfalmente, liderando os cães. Ele constata que a vacina sintetizada pelo cientista assassinado é de grande eficácia. Os cães são acolhidos de volta. O sobrinho casa-se com a líder dos ativistas e, em pouco tempo, o vemos como novo prefeito do município.

Outra astúcia bem lapidada vem a ser o atmosfera desse futuro de duas décadas. Ele agrega vários aspectos retrô. Não há smartphones, tablets, notebooks. Os televisores voltam a ser de tubo e em preto e branco. O design das coisas remete mais para os anos 1950-70 que para 2040. E esse baralhar de tempos também não guarda certa analogia com Transit (2018)? Não há certo impulso retrô numa das distopias mais cultuadas, e exatamente por sua direção de arte miscelânica, que embaralha elementos futuristas a elementos retrôs: Blade Runner (1982)?

Um terceiro aspecto tem mais a ver com os outros filmes de Wes Anderso: certa histeria adolescente. Mesmo nos filmes mais, digamos, adultos de Anderson há uma espécie de rastro de puberdade. E essa puberdade nos põem diante de três cenários: 1. certa falta de jeito para lidar com o mundo adulto e, não menos, com a sordidez e desfaçatez adultas; 2. a formação de casais um tanto heterodoxos, sobre os quais paira certa zona de sexualidade imprecisa e 3. uma recusa desse mundo adulto em favor de outro, que parece possuir todos os elementos para compor o puzzle da diversão, do jogo, do ludo mas também de certo hedonismo bizarro, um tanto auto-centrado, característico dos nerds e emos.

A curiosidade final vai para a ilustríssima trupe que dubla os simpáticos cães e seus adversários ou simpatizantes humanos. Ela congrega de Bill Murray a Eward Norton, de Frances McDormand a Scarlett Johansson, passando por Harvey Keitel e Anjelica Huston. Frank Wood empresta a voz para uma engenhoca de tradução. Edward Bursch, o editor, também dubla a coruja. E Yoko Ono faz uma assistente de cientista que se chama Yoko Ono.

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