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Driving Mr Daisy

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Conversa#89 -Ano 3- Relances do Já e Agora[13]

Green Book (Peter Farrelly, Estados Unidos, 2018) - cin. Sean Porter

O país que inverte seus valores, o cerne mesmo de seu discurso em três décadas, merece a desconfiança. Não os Estados Unidos do povo, do povão. Do grande povo do norte, "the land of the free and the home of the brave", como está no hino. Um país erguido por orgulhosos imigrantes, e que tem sabido abrir para esses imigrantes oportunidades que não encontrariam em outras terras, outro mar. Nesse sentido e muito a seu modo, os Estados Unidos têm sido o mais comunista dos países. Bem mais que a Rússia e o Leste. De longe aquele em que oportunidades há para quem deseja educar-se e trabalhar a partir de quase nada. E geralmente isso se dá após o sacrifício de uma geração. Ou mesmo antes.

Mas os Estados Unidos são também poderosos demais para que a gente esqueça de sua faceta de Império. Das guerras de que participou diretamente, ou das que fomentou por debaixo dos panos. Das ditaduras implantadas, feito caninos de ferro, ao longo de um Terceiro Mundo clássico e sem jeito, do qual o Brasil parece tão pouco apto a escapar. À direita ou à esquerda.

Uma das facetas dessa dominação aponta para hegemonia. Para um quase monopólio na hora de contar. De contar a história, com h maiúsculo. Todos nós assistimos dezenas de filmes sobre a Guerra do Vietnam: quantos foram contados da perspectiva do Vietnam?

Na hora de esgrimir esse inoxidável soft-power, o controle da contação da história, os americanos não só são inflexíveis como possuem a faca e o queijo. E trazem a faca entre os dentes. E, se a faca é da marca Kodak-Eastman; o queijo é da marca Hollywood. Naturalmente essa contação se dá a seu favor. Isto é, distorcendo fatos e noções de forma a que esses fatos e conceitos amoldem-se aos seus interesses, coincidam com suas prioridades atuais. Com seus interesses de estado.

Crimes de Estado, como o racismo institucional, calcado na letra da lei, linchamentos e arbitrariedades contra negros têm de ser suavizados, para assegurar que a ponta do avanço nessas questões étnicas -- até nos aspectos mais acessórios e ínfimos -- encontra-se nas mãos da sociedade estadunidense. É assim que se arma a arapuca conceitual a partir da história. E se assegura dominação.

Na hora de conquistar a empatia de outros, há melhor arma que Hollywood, a Netflix, o jazz, o rock, os quadrinhos, o jeans, a Coca-Cola, Disney, James Dean? Tudo isso de algum modo pode ser instrumental para a renovada necessidade -- agora oficial, não mais do povo, do povão -- de propor os Estados Unidos não só como protótipo a ser seguido, mas como única via, única possibilidade de modelo, em cada esfera de atuação e convivialidade humanas. Eis porque se ressalta que a história de Green Book seja baseada num caso real.

Então, 30 anos atrás houve Driving Miss Daisy. E era filme filme pioneiro no sentido de edulcorar certa relação, certa contiguidade estranhada entre etnias, entre negros e brancos, quando historicamente bem se sabe que os segundos abusaram dos primeiros até mais não poder. E que até hoje negros e brancos vivem em bairros diferentes, em verdadeiros guetos. E até bem pouco tempo esses abusos de brancos contra negros eram respaldados pela lei. Daí vem Driving Miss Daisy. E em menos de 35 anos antes desse filme, muitos estados ainda mantinham severas leis de segregação. Não tão diferentes das leis do apartheid sul-africano. Mas em Miss Daisy uma simpática velhinha branca é guiada para cima e para baixo por um chofer negro e boa praça. E eles acabam tecendo uma relação de amizade e afeto.

Porém trinta anos depois, em 2019, não há outro modo de reencenar Miss Daisy, a não ser invertendo intempestivamente os papéis. E propondo um branco como chofer de um negro. O chofer branco é rude e semi-analfabeto. O patrão negro é um musicista sofisticado, cheio de afetação, e que ensina ao outro como escrever cartas à esposa. Em bumerangue esse outro -- inicialmente um racista -- abre ao primeiro o caminho para reaproximar-se da própria cultura negra. Da música de Little Richard, Chuck Berry e Aretha Franklink, da fried chicken, das festas de embalo em barzinhos de pau-a-pique na periferia de cidades, do Deep South de Jim Crow. Tudo matéria polêmica, bastante suscetível à lacração. Inclusive pelo fato de o negro ser queer.

Há nisso um alta carga de single-mindedness, sem dúvida. Mas nenhuma época mais se compraz com coisas simplórias que a nossa. E isso explica que um filme tão formulaico, tão previsível tenha caído no gosto dos espectadores. E, em especial, do espectador estadunidense. Ou que essa inversão da fórmula -- inverossímil enquanto generalidade -- não venha, quando analisada à lupa, despertando mais que reações meio mornas. E que, portanto, o filme seja um campeão de bilheteria. Nessa temporada ele ganha o público ao norte do Rio Gande, enquanto BlacKkKlansman fica com os críticos.

Todos estamos um pouco letárgicos diante da pasmaceira e da desonestidade que muitas vezes ameaçam tolher, encurtar ou enxotar verdades do discurso das minorias em nome dessas minorias mesmas, de tal modo a lacração e certa necessidade de vendeta e estratégia têm dado cartas, como "argumentos" da vez: aceitos, canonizados, ainda que mentirosos ou exagerados. Parece que as minorias têm aprendido com Gérson como levar vantagem em tudo. E é precisamente esse aspecto, esse levar vantagem em tudo, que as têm tornado não só antipáticas mas cinicamente desonestas em não poucas circunstâncias. Essa adoção da Lei de Gérson, aliás, tem tornado suas irreprocháveis bandeiras mais injustas aos olhos de terceiros, de leigos, de gente fora do ovo e da academia.

Porém, se a aceitação a um filme assim acontece, em meio à lacração desonesta de nosso tempo, os méritos passam sobretudo por Viggo Mortensen. Ninguém resiste a um cafajeste com um bom coração. E desde pelo menos o Dude de The Big Lebowski (1997) essa persona andava em demanda. Ela achou boa guarida em Mortensen, pois o leão-de-chácara é ítalo americano e do Bronx. E diverte, desde o início, ao sequestrar o chapéu do gângster para devolvê-lo assegurando uma reserva de vantagens. Mas sobretudo nos conquista pelos modos simples, um pouco toscos: a necessidade de atirar os ossinhos de galinha na estrada, pela janela do carro, p. ex. Nada parece mais subversivo e distante do mundo tal qual vivemos em 2019: asséptico, bom-menino, sensabor como soa ser. Com redes sociais a vigiar de um dos lados; e o panóptico das câmeras de segurança a pastorar do outro.

Não deixa de ser curioso, um tanto irônico, que nessa inversão, efetivada para mostrar negros numa situação de superioridade, para dizer que eles não foram só subalternos e escravos -- o que obviamente eles o foram em larguíssima medida -- o patrão negro saia perdendo. E não constitua mais que escada para a gig do outro. Para a gig do branco, que acaba por revelar-se a personagem mais viva e cativante nessa comédia um tanto deliciosa e regular. E essa circunstância desfavorável, por contraste, também ressalta os méritos de Mahershala Ali como coadjuvante. E provavelmente deve render-lhe uma estatueta depois de amanhã.

Vivemos uma realidade estranha, aterradora. Em que há prazer no ato de acusar. Ou que faz questão de esquecer: há muito, política institucional deixou de ser o terreno de embates sinceros pelos quais vale pena empenhar-se, embora muitos -- e sobretudo os jovens dos países periféricos -- não tenham percebido isso. Pois dessa política resulta algo como uma sistemática da difamação, do linchamento. E esses jovens já não sabem respirar sem isso.

Por outro lado, pode-se pensar que Tony seria, traduzido para hoje, o prototípico eleitor de Trump e sua tropa. E, não obstante, ele parece mais vivo, íntegro, e bem-humorado que seu patrão blasé. Este, um potencial eleitor dos democratas.

Green Book é possivelmente o melhor dentre os filmes formulaicos, transparentes desta temporada. Não é pouca coisa, porque foi um bom ano de filmes, ao contrário do que apregoa a New Yorker via um Richard Brody a vociferar contra Roma. Green Book está bem adiante de outros filmes de mesmo DNA, tais como A Star is Born, ou o constrangedor Bohemian Rhapsody, o pretensioso (e um tanto ingênuo) BlacKkKlansman. O fato de combinar em seu espírito de comédia o road-movie ao musical salta bem para a banda sonora. E que a turnê do pianista se dê pelo Deep South agrega ainda mais beleza e tempero, aos olhos.

A cinematografia busca a discrição. Vai bem com a normatividade desta comédia. Pode ser definida em uma palavra: correta. Linda Cardellini faz a esposa amorosa, compreensiva, com extremada amabilidade. É uma personagem gostável, um tanto inverossímil. Nada a tira do sério. A edição é de Patrick J. Don Vito. A música, de Kris Bowers.

Com o passar do tempo Green Book traz todas as credenciais para virar um cult. Ser reprisado na TV. Depois, para ser esquecido.

E nada como um fecho natalino: rima com filmes assim.

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