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Is her majesty a pretty nice girl?

Conversa#86 -Ano 3- Relances do Já e do Agora[10]

The Favourite (Yorgos Lanthimos, Irlanda, Reino Unido, Estados Unidos, 2018) - cin. Robbie Ryan

É pegar ou largar a perspectiva da fotografia em The Favourite. Ela se apresenta dramática e grande angulada, utiliza luz natural durante o dia, luz de velas à noite, opta por uma câmera à baixa altura, que se movimenta em suportes -- quase nunca à mão -- e não tem qualquer pudor em desfocar uma porção considerável do quadro. Nesses movimentos à baixa altura ela eventualmente sublinha os adereços de um móvel, de um candelabro ou a suntuosidade das louças ou da prataria. Volta e meia assoma um tanto minada, estourada pela luz exterior, pois é predominantemente tomada no interior de palácios oitocentistas de compridos saguões, solenes e ajanelados, tornados monumentais por essas grandes-angulares. E, no geral, dispensa filtros ou luzes mais elaboradas, nesses interiores.

Às vezes, essa câmera sai dos salões, vestíbulos e escadarias e chega ao jardim ou ao parque. Fareja-os. Monta a cavalo. Acompanha a mira nos exercícios de tiro e caça. E, em ao menos numa ocasião, é tomada no interior de uma carruagem. Trabalha incansavelmente em função da trama, e compõe belos planos de detalhe. É o caso de um último close, em que vemos apenas o sapato de salto da Baronesa Masham calcando sobre si um filhote de coelho. É toda tomada em locações. Não há cenas de estúdio. Tampouco é o primeiro trabalho notável de seu fotógrafo, Robbie Ryan. Esse irlandês já havia chamado a atenção, entre outros, por Slow West (2015). Mas é só no filme seguinte, The Killing of a Sacred Deer (2017), já em colaboração com Lanthimos, que ele faz uso recorrente das grandes-angulares.

Diante das câmeras e escassas luzes de Ryan, três atrizes revezam-se em excelência. Cada uma melhor que a outra. Representam respectivamente duas damas de companhia e sua majestade a rainha, na corte inglesa de inícios do século XVIII. Mas, aos poucos, também percebe-se que o destaque recai em Olivia Colman na pele de uma Rainha Anne obesa, enfermiça, inerme, dada a affairs lésbicos. A soberana era um tanto alérgica aos negócios de estado. E foi dominada sucessivamente pelas aias, que eram primas e formidáveis rivais: Sarah Churchill (Rachel Weisz)e Abigail Masham (Emma Stone).

Tão feroz era a animosidade entre essas primas que foi instrumentalizada pelos partidos políticos, e polarizou votações no parlamento. Sarah Churchill, duquesa de Marlborough, apoiava os tories, conservadores que se inclinavam pela prolongamento da guerra com a França. E, em consequência, por um aumento de impostos. A própria duquesa tinha interesses pessoais investidos na empresa da guerra, já que o marido era um dos principais comandantes e beneficiários desse estado de coisas. Ausente da corte, esse marido não aparece fugazmente mais que um par de vezes no filme.

A prima da Duquesa, Abigail Masham, Baronesa Masham, chegou à corte com essa história já em pleno andamento, pois era proverbial a capacidade de mando, os modos senhoriais, a facilidade no trato das questões políticas, a firme ascedência sobre a rainha e até a pontaria da outra. Mas aos poucos a dissimulada Abigail segue surrupiando da primeira os privilégios de favorita. Ela também alia-se aos whigs, partidários do fim da guerra, e do não aumento das taxas. Na verdade, um dos primeiros encargos de confiança de Abigail Masham foi o de preparar os funerais do príncipe consorte. (Mas não é assim que a vemos no filme, onde quem sabe para reforçar jogo entre entre as três mulheres, a figura do finado sequer mostra o focinho). Ao contrário da prima, mercurial e acostumada a lidar com ministros e embaixadores, Abigail fazia a linha mais low-profile, ainda que o affair com a Rainha, cuja obsessão religiosa é pouco explorada na trama, fosse do conhecimento da corte.

Anne não era a mais popular dos monarcas ingleses. Excessivamente carola, lasciva e irritadiça, carregava consigo algo do ridículo. Uma espécie de D. João VI de saias, porém sem a astúcia do roliço rei português, que viveu um século depois dela. Como se não bastasse, era suspeita de catolicismo, e foi a última soberana da dinastia Stuart. Exatamente à época dessas intrigas palacianas, enviuvou de um príncipe dinamarquês a quem, em vez de herdeiros, prodigalizou com abortos. Foram nada menos que dezessete, o que explica a precariedade de sua saúde. Como se não bastasse a rainha era dada a passatempos um tanto pueris, como a promoção de corridas de ganso pelos vestíbulos do palácio. Ou brincar em seus aposentos com dezenas de coelhos que mantinha em gaiolas. Era também tão pusilânime, que os ministros e líderes parlamentares, quando desejavam favores, preferiam cortejar as duas damas de companhia, que eram de fato as que davam as cartas no reino, pois mandavam em quem mandava. As duas primas, camareiras reais, detinham, de resto, a chave da libido dessa mulher desgraciosa, doentia, mas não menos rainha da mais poderosa potência européia à época.

Não é nada difícil explicar as razões pelas quais essa comédia -- acerca da corte inglesa mas produzida e fotografada por irlandeses -- cai nas graças de Hollywood e dos americanos. Ela possui todos os ingredientes que lhes falta: história, tradição, verniz, refinamento, uma corte. Um senso de elite por hereditariedade e arbítrio que os estadunidenses desconhecem, e até falam mal; mas adoram. Possui também três personagens magníficas, vividas por atrizes no auge de suas carreiras.

Não poucas cenas são regidas por um humor impagável. Abigail gostava de ler poesia. E em alguns momentos, como no que ela involuntariamente testemunha uma transa entre a rainha e sua prima, encontrava-se a bisbilhotar os volumes da biblioteca pessoal de sua majestade, em pesadas encadernações. Depois, numa refrega entre ela e a prima, vemos a segunda atirando-lhe em cima a obra completa de "this fellow, Dryden". Era mais perigoso ser fã de livros no passado.

A direção de Yorgos Lanthimos consiste em abrir espaços para o trânsito e o talento dessas atrizes a viver personagens de um modo nem sempre coerente ou fiel à realidade dos fatos ou às circunstâncias históricas. Mas, quem sabe, filmes não devam buscar tão obsessivamente essa coerência. E, no entanto, vários aspectos que só foram melhor assuntados com o advento de uma micro-história também estão presentes em A Favorita. É o caso de certa sordidez-ambiente na corte. Até porque hábitos de higiene ainda não estavam de todo consolidados após uma longa Idade Média. Assim, é frequente vermos, por exemplo, a Rainha e suas damas vomitando em bem adornados jarros de porcelana.

Quanto a cavar espaços para o talento das atrizes, mister de Lanthimos, ele empreende isso mediante o emprego das grandes-angulares. É que hoje, mesmo o mais modesto shopping-center parece mais vasto e suntuoso que os palácios oitocentistas, onde viviam reis absolutos há trezentos anos. Logo, uma das saídas para re-emprestar certa monumentalidade perdida, uma escala de grandeza amesquinhada pelo livre-mercado, é cavar espaços nesses palácios cada vez mais acanhados. Fotograficamente o melhor modo de se fazer isso é mediante o emprego das grandes-angulares, rabos-de-peixe, e de um contra-plongée que curiosamente situa os espectadores sempre abaixo dessas mulheres nobres, briguentas e azafamadas.

Não parece ser o projeto mais pessoal de Lanthimos. O diretor grego sequer conta com a participação de Efthymis Filippou, habitual corroteirista. Ainda assim, se o filme vinga, deve essa superação sobretudo ao extraordinário trabalho de três atrizes.

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