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Mais prazer, dor


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Conversa#90 -Ano 3- Relances do Já e Agora[14]

The House That Jack Built (Lars von Trier, Dinamarca, Alemanha, França, Suécia, 2018) -- cin. Manuel Alberto Claro

Um dos trechos mais famosos da Divina Comédia aparentemente abala a noção de imutabilidade daquilo que é perfeito. E nos remete mesmo ao contrário: "tanto mais algo é perfeito, mais sente prazer e dor". O problema é que isso obedece a uma lógica cristã e estranha, que subverte a lógica convencional, e só pode ser entendida dentro de uma perspectiva infernal.

O diabo e o inferno estão na moda. E não só nos filmes. Glass e The House That Jack Built os põem em proscênio. E o fato de um blockbuster e um filme de arte estarem ao mesmo tempo ocupados com motivos infernais passa recibo do que ocorre para além das salas de exibição ou das telas planas diante dos divãs, projetando conteúdos de Netflix.

Isso não é de todo ruim. Pois, entre outras coisas, implica que o Ocidente pensa sobre si. E recicla substratos culturais importantes e não exatamente pelo veio do exótico. Um filme que toma como pontos de partida Dante, Bach e Goethe não deixa de estar cismando com Ocidente. Ainda que aparentemente refrate esse composto para um perfil de indivíduo que deixa de ser crível e específico exatamente na medida em que é entrevisto como uma espécie de convergência dessas belas ideias. Ou da negação delas. Quer dizer, a ilustração desses ideais degradando-se, na prática.

Aliás, essa distância entre o sublime das idéias e a sordidez da prática está bem estabelecida na trama deste filme. Trata-se da velha dicotomia platônica: a divisão corpo/espírito. Ela entre outras coisas sugere que o espírito até pode salvar-se, mas o corpo não. E a verdade é que, num primeiro instante, nos vemos e interagimos enquanto corpos. E são os corpos -- não os espíritos -- que ocupam lugar no espaço. Ou aparecem nas fotos. Um Manuel Bandeira mais afoito chega a brincar com a perspectiva em franca apostasia:

"Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não".

Poucos anos tiveram início tão pouco auspicioso em quase qualquer parte como este 2019. E no Brasil isso parece ser mais verdade. Os mandatos que se inauguram não inspiram a menor esperança. A menor confiança. E como se não bastasse a sucessão de fatos funestos vai se avolumando de janeiro para fevereiro, a dominar as manchetes durante a estação das chuvas. Da tragédia ecológica de Brumadinho ao incêndio nos alojamentos do Flamengo, passando pela crise de segurança no Ceará, o temporal que atingiu o Rio, e as desastradas, bisonhas declarações dos recém-empossados. São eventos em que corpos sobressaem sobre espíritos. Nem que na funesta forma de cadáveres.

Um vídeo de 16 segundos, postado no Twitter sintetiza essa autoconsciência que os brasileiros começam a ter de seu país. Essa autoconsciência, a despeito de Machado, é dado novo para alguns. E um pouco doloroso. Algo que veio encorpando na esteira de um desencantamento diante da política partidária mais convencional. E, súbito, o brasileiro se dá conta de que o país, no concerto das nações, não é lá esses babados. Bem, no vídeo, sob a legenda "pátria amada", vemos uma cena inicialmente prosaica: alguém bate um tapete à porta de uma loja rente a uma esquina em que há carros e uma moto paradas diante do semáforo. De repente, o batedor de tapetes cessa o trabalho, pois parece divisar algo que está fora de quadro. E então um kart adentra a imagem, ultrapassa os veículos estacionados, e fura o sinal perseguido por uma viatura da polícia.

Sem embargo, parece um tanto quanto fortuito o tom de densa comédia negra de The House That Jack Built. Até porque se o intuito foi o de denunciar e combater a violência com sua deglamurização, dificilmente isso se justifica, estética ou eticamente. E, entre outras coisas, o filme é demasiado ambicioso. Quer dizer, quiçá seja possível produzir um filme mais efetivo e belo sem necessariamente apelar tanto para escatologia. Ou talvez para o sentido mais aparente dessa escatologia. E, quem sabe, a música de Bach possa ser reservada para legendar sonoramente algo menos sórdido.

Além disso, ao tomar como instância de diálogo a Divina Comédia seria de se esperar algo mais engenhoso em troca. Uma trama menos café com pão a respeito de um serial killer que é ao mesmo tempo um "esteta". Porque qualquer obra de arte também se dá a conhecer pela escolha de suas referências, de suas fontes de conversa. E a Divina Comédia é o que é porque Dante dialoga com a longa tradição cristã do Medievo. E, logo, não basta construir uma casa cujos tijolos são cadáveres para "lacrar". Ou propor que o Virgílio da vez seja o mesmo ator que faz um anjo num filme menos niilista. (Uma fita feita, aliás, num momento histórico mais alvissareiro).

Um das poucas vantagens de nosso tempo é a de que ele anda um tanto mais implacável, um tanto menos complacente, com demonstrações de inteligência que parecem apenas vinculadas ao ego e/ou ao mero anseio de nos dizer quão sórdida é a realidade humana no planeta em 2019. A essas auto-indulgências de artistas que se creem iluminados. Até porque nos encontramos um tanto conscientes dessa sordidez, uma vez que a realidade fora das telas não é assim tão distante. Logo, não esperamos só que nos digam dessa sordidez. É necessário pensar acerca dela, antes que apenas descrevê-la.

Os melhores filmes já se entregam a essa tarefa. E, portanto, por irem além de meramente apontar para sordidez, conseguem ser os filmes à altura do momento em que foram produzidos. Os filmes verdadeiramente políticos. Algo que passa um tanto ao largo dos gracejos sinistros de The House That Jack Built. Porque, ainda que falhando, esses filmes sugerem modos de ação. Ou se apresentam ousados o bastante para sugerirem novas formas de apreensão de tempo e de movimento ao redor: Transit, Loveless, Guerra Fria, Roma, Isle of Dogs e até The Ballad of Buster Scruggs são filmes de seu tempo, nesse sentido.

O filme de von Trier, de início, mais parece uma comédia negra à irmãos Coen. Porém levada ao paroxismo. E, logo, sem o humor correspondente. Ou melhor, com um humor tanto quanto murcho, intransitivo, dobrado sobre si. Parasita de si mesmo. Deprimido. Ou achando graça de coisas e fenômenos que são demasiado desgraçados para suscitar riso.

Evidente, por exemplo, que se pode perceber algo de bizarro em certos registros dos ensaios de Glenn Gould. Mas daí a decidir que esse bizarro possa legendar sonoramente, possa ser posto em linha, possa constituir uma espécie de equivalente de um rematado sociopata; parece algo um tanto arbitrário. Ou doentio. Quer dizer, bem mais doentio e arbitrário que a obsessão de Gould pelo ritmo do fraseado, o timbre um pouco rouco do piano, ter de sentar na mesma cadeira, por semanas, meses, décadas, para extrair os sons de um modo único, etc.

Não há muito o que dizer da cinematografia em um filme do tipo. De uso, Von Trier faz questão de trabalhar com renomados fotógrafos. Mas é sabido que ele nunca abre mão de operar a câmera. E de fazer muita câmera na mão. O que explica a tremedeira da câmera em determinadas cenas que chegam a cortejar o amadorismo fotográfico. Outras cenas, demasiado na penumbra, devem essa parca iluminação a resíduos de escúpulos que o diretor herdou do Dogme 95.

Ainda assim, há bons momentos no filme. O melhor deles se dá ao final. Ao despedir-se de seu interlocutor num dos círculos infernais, Virgil (Bruno Ganz) o faz com a certeza de que ele não logrará escalar o rochedo até a escadaria do lado de lá da ponte arrebentada. A escadaria para a redenção, fendida sobre o Lethe. E, no entanto, que Jack (Matt Dillon) prossiga no seu intuito parece algo não só da ordem do ego. Mas, por igual, algo arraigadamente estadunidense -- no campo da cultura. Uma espécie de derrota definitiva do self-made man e do do it yourself. E isso, num momento político que têm revalorizado e exaltado essas posturas, não poderia ser mais perspicaz. A derrota desse auto-fazer-se diante de valores que estão na própria gênese do pensamento Ocidental.

E o caso de Von Trier dá o que pensar. Talvez porque depois de um auspicioso começo de carreira -- que foi também algo de inscrição mais coletiva -- ele esteja se revelando mais um menino mimado que um enfant terrible. No que pese estejamos já a viver num tempo tão degradado que nos seja exigido receber reparações morais de um menino mimado.

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