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Vingança e fábula

Conversa#95 -Ano 3- Oeste por toda parte[14]

Los tres entierros de Melquiades Estrada (Tommy Lee Jones, Estados Unidos/França, 2005) - cin. Chris Menges

Pentear os cabelos de um cadáver insepulto com uma escova para cavalos. Há cenas para estômagos fortes em Los tres entierros de Melquiades Estrada. Pouco antes, num dos instantes mais líricos, Pete Perkins (Tommy Lee Jones) está em um boteco mexicano de frente para o deserto e uma menina toca Chopin num piano poeirento e deteriorado. Há um televisor em preto e branco, paredes de adobe semi-arruinadas, e cordões pendendo com luzinhas, como liames, o deserto ao largo, e um outro país mais além das montanhas. Há um telefonema que fecha um ciclo. E depois um afastar-se ao som de passos no cascalho e esporas que demarcam os segundos de modo assemelhado ao de um metrônomo, no que Chopin vai ficando para trás. Oxímoro: esporas e Chopin.

A cena de um guarda de fronteira estadunidense cruzando o Rio Grande puxado por uma corda no pescoço rumo ao México sintetiza a força destes Tres entierros como filme a ser revisto nos anos Trump. O guarda de fronteira pragueja o tempo inteiro. A travessia do rio não dura mais que alguns metros, e quem o conduz, o faz como nos velhos tempos, em lombo de cavalo. Logo o pequeno grupo atinge um povoado mexicano, com viralatas magros, uma igreja católica, cercas de pau-a-pique, meninos jogando futebol não americano, e uma senhora varrendo uma varanda que lhes diz:

-Que pasa?

Os Três Enterros têm parte numa espécie de subgênero: aquele em que uma pessoa ou um grupo sai zanzando por aí com um moribundo ou um cadáver. Há dezenas de filmes assim. De Odd Man Out (1947) a The Ladykillers (1955), do final de Rififi (1955) a Bring me the Head of Alfredo Garcia (1975), de True Grit (1969) a Dead Man (1995). De Day of the Outlaw (1959) à única comédia de Hitchcock: The Trouble with Harry (1955). Uma comédia negra, no melhor estilo britânico, é verdade, O motivo é um velho conhecido da literatura. Especialmente da Ibero Americana, que pode ir buscar sua origem, em linha reta, no episódio de Inês de Castro. Ou cinco séculos depois da Linda Inês, A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água. Fontes para o roteiro não faltariam dentro da rica cultura mexicana, derivada de sugestões indígenas, onde no Dia de Finados todos se vestem de caveiras.

Um vaqueiro mexicano ganha permissão para trabalhar em uma fazenda do Texas. Faz amizade com o proprietário. Aclimata-se bem no novo país. Por igual, inventa uma história apócrifa sobre o passado, que envolve uma foto de família que não é a sua e um povoado inexistente. É perto de quem e onde quer ser enterrado, numa fatalidade. Em uma farra, o vaqueiro fica com a esposa de um guarda da fronteira. Este acaba matando-o num incidente pouco claro. Ou, no mínimo, imprudente. Mas o proprietário da fazenda faz do guarda um refém. Obriga-o a desenterrar o corpo do vaqueiro, e o conduz junto com o cadáver em putrefação para o enterro no México, conforme desejo comunicado pelo amigo.

Uma menção especial vai para a participação de Levon Helm, como um velho gringo cego. Ele fala num carregado acento sulista. Ouve rádio num espanhol que não entende. Vive numa cabana semi-abandonada, na franja do deserto. Ao conversar com Pete, ele crava, com o olfato apurado dos cegos:

-Smells like something dead around here. Com um pouco, os três estão sentados em volta de uma mesa de pau a pique no pórtico da cabana. Pete e Mike estão famintos. E antes de devorar a gororoba preparada pelo velho, este faz questão de dizer uma prece. E então eles se dão as mãos, embora Mike esteja algemado. Os dois se detém impacientes. E o cego diz seu louvor, que inclui um agradecimento por "all the animals, and all the beasts in the fields". Quando vão embora, o cego lhes implora que o matem:

-I don't want to offend God by killing myself.

-We don't want to offend God either - diz Pete.

Então sobrevém o trecho mais decisivo do filme. É o que um grupo de imigrantes ilegais, que recém-cruzou a fronteira encontra Mike, que tentara fugir, semi-morto depois de ser mordido por uma cascavel. Tratam de socorrê-lo, e enquanto discutem o que fazer com ele, Pete se aproxima. Os imigrantes dão a indicação de uma conhecida, que trabalha com antídotos possantes contra venenos de cobra. Mora, porém, do lado mexicano. Um dos coyotes se predispõe a ajudar Pete. Eles já tinham ouvido a notícia: alguém sequestrara um guarda de fronteira e seguia na direção do México. O essencial nisso tudo, no entanto, é o fato de imigrantes ilegais cuidarem e se ocuparem com a saúde de quem os espanca no cotidiano: um guarda de fronteira. Embora, a bem da verdade, o tratamento dispensado pela curandeira a Pete não seja exatamente vip.

De qualquer forma, o coyote se vê um pouco embaraçado na empresa de levar Pete ao México, Pois inverte sua lógica de trabalho:

-l've never crossed people from this side to that side. Much less on horses.

Outro momento de insuperável humor se dá na barganha com o coyote. O coyote quer tirar o máximo da situação e cobra 3.000 dólares. Pete não aceita. O coyote então quer ficar com o rifle e o cavalo. Pete reluta. Mas nesse momento o helicóptero da guarda de fronteira está já quase sobre a cabeça deles. E é prudente aceitar.

Sem dúvida, a maior debilidade de Los Tres Entierros reside na sua pretensão de propor-se como conto moral. Esse aspecto correcional é o que faz o filme menor do que poderia ser. Pois nele existe uma ética do kharma, que todos sabemos, não corresponde à realidade. Uma vez que, se correspondesse, viveríamos num mundo em que opressores e corruptos seriam sempre punidos. E sabemos que não é assim. Então, essa ética responde, antes de qualquer outra coisa, a uma lógica da violência, tão familiar à cultura americana. Tão indissociável dela. O que o filme não deixa muito claro, contudo, o que passa desapercebido ao espectador menos sagaz, é a extremada violência de Pete. É a forma torpe de ele fazer justiça com as próprias mãos, sem a mediação dos tribunais que, por mais falhos e viciados, ainda parecem menos insanos que uma subjetividade movida pela necessidade de vingar um amigo.

.NOTAS

We're always a long way from home.

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Soy vaquero, no más.

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Vê-se certo estouro da luz em vários planos. Como no que Mike (Barry Pepper) e Lou Ann (January Jones) tomam café com o televisor a passar um desenho do Papa-Léguas, antes de ele sair para o trabalho. A luz entra estourando pela janela de persianas à direita.

A caneta, o distintivo, o retrovisor, a cor clara do carro estouram. [Algo que um DF antigo lutaria para corrigir dentro de uma escala de F-pontos aceitáveis para as limitações de época, O "problema" seria resolvido com maior profundidade de campo e uma imagem mais escura.]

As duas amigas se sentam na lanchonete, a luz que vem da esquerda estoura no cabelo de Lou Ann e na face de Rachel

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O modo como a câmera deixa os conversantes humanos que recém acabaram de entrar nos carros voltando de uma conversa e se afasta um pouco para a paisagem, como se ela fosse de fato a fera, fosse a que desfalece e refigura.

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A paisagem enrugada das 'mesas'.

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Simultaneidades: o acidente com a mula de carga que cai no despenhadeiro, e com a camionete dos guardas que derrapa para uma vala.

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The ants are eating your friend.

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Numa das cenas mais escatológicas, Mike avisa Pete que as formigas estão devorando a cabeça de Melquiades. Este, ao perceber que seria inútil tentar retirá-las, borrifa a cabeça de aguardente e toca fogo. O mau cheiro que era já intenso, empesta o ar. Mike tem uma crise de tosse.

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Na sequência do deserto mexicano, há uma cena em que a paisagem parece antecipar a morte. Mike foge em desespero. É comboiado à distância por Pete. Ele está correndo e atinge uma formação rochosa que se assemelha a ossos humanos, a uma espécie de caveira.

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Duas bandas de cortinas diáfanas ao vento fazem a pontuação editiva, uma fusão inusual, na sequência da operação e da convalescença do guarda de fronteira.

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"All Aboard America" lê-se na lateral do ônibus que Lou Ann toma para deixar a cidadezinha fronteiriça.

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A pobreza do mobiliário mexicano revela uma personalidade e uma beleza que não se vê na profusão pasteurizada do outro lado da fronteira. Mas para os padrões de hoje essa pobreza está fora de moda. A compaixão também. A vingança, não.

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