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Óbvias vias?

Conversa#88 -Ano 3- Relances do Já e Agora[12]

At Eternity's Gate (Julian Schnabel, Estados Unidos, Reino Unido, França, 2018) - cin. Benoît Delhomme

Ao morrer Vincent van Gogh tinha 37 anos. Mas os tempos eram outros. Cedo as pessoas envelheciam. E não é improvável que o pintor holandês guardasse um aspecto não muito mais jovem que Willem Dafoe, que tem 25 anos a mais quando o encarna. E encarnar é um bom verbo para o caso.

Poucos gêneros assomam mais grotescamente caricaturais que o filme biográfico. Para se ter uma ideia desse grotesco, na safra de 2018, basta assistir a Bohemian Rhapsody. Esse filme faz sumário de tudo que há de mais abominável no filme-bio: desde o início, quando ainda adolescentes e graduandos, os quatro integrantes do Queen têm cortes de cabelo e estilos já definidos. Fred Mercury mais se assemelha a um espantalho ambulante. Ao Visconde de Sabugosa. Ninguém pode ser mais dentuço. Nem mais desajeitado.

Van Gogh era por igual desajeitado. Mas, para seu azar, tal inaptidão não agregava sex appeal. Ou se agregava, não fazia parte do repertório social de época ceder facilmente aos encantos de sereia do carisma pessoal. E o resultado disso, para Van Gogh foi fatal: morreu pobre e com fama de tan-tan. Os garotos de Arles lhe atiravam pedras no meio da rua. E ele corria atrás dos garotos. Certa feita agarrou um deles. O susto não foi pequeno. E o ilustre pintor quase foi linchado por lavradores e amanuenses literalmente da província. Foi parar no hospital. Ele viveu longe das luzes e da grana, ao contrário de Mercury. Mas seus quadros, depois dele, não. E é só por isso que estamos a falar dele, e sobre ele se faz filme: o imenso valor de mercado que um quadro seu adquiriu postumamente. Não é fácil fugir da caricatura quando se corre atrás do esboço biográfico. E só mesmo alguma artimanha própria pode retomar o frescor do biopic.

Nesse sentido, há alguns curiosos perfis propostos por diferentes astúcias cinemáticas. O Picasso de Cluzot, em pleno processo de trabalho. Os trinta e três fragmentos sobre Glenn Gould, de François Girard. O Mozart tragicômico e meio tarado de Milos Forman, com sua gargalhada que é um cantar de galo, e ainda ressoa aos ouvidos dos espectadores, décadas depois. A austeridade do Bach de Jean-Marie Straub e Danielle Huillet. Violoncelistas tocando a Suíte No.1 entre estações do metrô, no Bach de Pere Portabella. O Dexter Gordon de Bertrand Tavernier nos deixando ver a si mesmo, com altiva ironia e algum estoicismo.

Se há um aspecto a ser louvado em At the Eternity's Gate: a organicidade entre região/personagem. Estamos nos últimos anos de vida de van Gogh, e ele deambula pelos arrabaldes de Arles, entre o palimpsesto de civilizações passadas e a exuberante natureza mediterrânea, coberta de oliveiras, ciprestes, girassóis, crisantemos. Vinhedos floram entre ruínas. Belas ruínas a indicar algo como uma atmosfera primeva que aponta para a Terra Santa. Uma Provença que foi saqueada por sarracenos e viu passar cruzadas. Que viu nascer trovadores mais arquetípicos que Dylan e foi até sede do papado. (De Avignon a Arles não dá 35Km no rumo do mar).

Tudo isso é captado de forma precisa e às vezes um pouco desajeitada pela câmera. Esse "um pouco desajeitada" é cumprimento. Certamente num ou noutro passo -- como na opção pelo POV do protagonista a caminhar pelos campos semi-áridos, recém-sulcados de Arles-- há açodamento, maior vontade de acertar que resultado efetivo. Mas um pouco dessa vontade de acertar é sempre bom de ver num filme, desque não assuma a preponderância.

Agora, há também certa vontade de abusar de alguns dispositivos visuais. Caso do emprego de lentes antigas montadas sobre câmeras modernas para criar aberrações e vinhetagem (vignetting). Isso faz com que em algumas sequências o terço inferior do quadro surja permanente e propositalmente borrado. Esses efeitos de aberração e vinhetagem talvez sejam tomados de empréstimo sobretudo da fotografia de The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford (2007). De onde infere-se que mesmo um experiente DF como Benoît Delhomme [The Proposition (2005), One Day (2011), The Theory of Everything (2014)], pode prestar tributos a Roger Deakins.

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