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Contramor

Conversa#82 -Ano 3- Relances do Já e do Agora [6]

Loveless [Нелюбовь] (Andrey Zvyagintsev, Rússia / có-produção Bélgica, França, Alemanha, 2017) - cin. Mikhail Krichman

A disposição intervalar, a reticência, a suspensão dão a tônica de Desamor. Trata-se de um roteiro bem composto que, num determinado passo, ao versar sobre a busca a um adolescente fugido, nos faz crer na extrema simplicidade da trama. Essa simplicidade é enganosa, e é tóxica. Porque, a despeito de sua desafetação, a trama, paradoxal como se vai propondo, é muito mais densa. Nessa busca, por exemplo, nos deixa ver a inadequação dos pais, a despeito de seus esforços. E acaba muito mais por dizer dessa inadequação, dessa incapacidade de amor, que da presumida fuga do filho. O desamor do título passa por essa inadequação. Pela plena incapacidade de os pais serem pais. E tal incapacidade -- a despeito do amor que nutrem pelo filho, a seu modo -- apenas distingue, no fim das contas e ainda uma vez, o fato de este ser indesejado desde o início. E ainda assim não há no filme uma só palavra, um só aceno contra os pais.

A densidade deste filme empata com seu niilismo. E há algo de um inarredável humanismo por trás dessa aparente falta de fé. Do modo como tudo é feio, tudo retorcido, e nada é comunicável. (Se há um filme brasileiro que pode ser posto em analogia com Loveless, este filme é O Padre e a Moça (Joaquim Pedro de Andrade, 1965), a despeito de tratar de um motivo muito diverso). Zvyagintsev aborda essa extrema esterilidade e degradação afetiva, só que plasmada pela perspectiva dos pais, não a do casal sem filhos. Pois é marcante a dignidade que lega às personagens. Algo que respinga sobre o cotidiano cinza dessas pessoas fechadas sobre si mesmas, portando seus gadgets ou postando-se diante de telas planas, filas de bandejão, espelhos de salão de beleza, esteiras de corrida, mesas de fast food, desembarques em estações de metrô. Envolvidas por trapos com etiquetas.

Pode-se dizer que, depois deste filme, de seu final em suspensão, há de novo -- e de uma forma miraculosa, um tanto impressentida -- terreno sulcado e semeado, para que se possa reaver uma esperança mínima. Mas, aqui, diante de filme tão expressamente literário, para ficar com um escritor do Leste Europeu, da vizinha Praga, podemos também lembrar do Kafka que certa feita escreveu: "há esperança suficiente, esperança infinita, mas não para nós".

Rancor é o sentimento partilhado por Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin), pais do pequeno Alyosha (Matvei Novikov), 12 anos. Vivendo em uma cidade do Oblast de Leningrado, numa família de classe média, o jovem adolescente ressente-se de estar permanentemente no meio do fogo cruzado de um casal separado há não muito, e que não esconde o mal-estar mútuo, a cada vez que se encontra. Um mal-estar que brota do simples avistar-se. O garoto mora com a mãe num apartamento confortável, mas o pai vem visitá-lo de quando em vez. De sua janela, o outono se faz um pouco menos gélido, com garotos jogando futebol no parque. Mas só um pouco. Esse arranjo familiar é instável, encontra-se ameaçado pela venda do imóvel. Assim, Alyosha vê seu mundo potencialmente ruir, e os pais até cogitam interná-lo numa instituição pública. Uma espécie de reformatório, de forma que não tivessem de gastar com sua educação.

O título do filme em russo é Нелюбовь. Ou, transliterado, Nelyubov. Quer dizer algo próximo de dissabor, desgosto. O termo entra para o rol daqueles que não têm uma tradução precisa, a exemplo de saudade. Seu equivalente mais imediato em inglês: dislike. Mas há quem sugira que o termo seria mais corretamente traduzido por "anti-amor". (E, aqui, apenas por conveniência vamos traduzi-lo por "desamor").

Não é necessário mais que alguns planos no início para perceber a fineza com que Andrey Zvyagintsev ausculta suas personagens e trata seus motivos. Aqui, ao contrário da luta do pescador de Leviathan (2014) contra a corrupção crônica de políticos e burocratas da província, há algo da ordem da família, e a história abre com uma sequência onde se vê árvores desgalhadas pelo rigoroso outono. Uma paisagem branca, preta, cinza, azul marinha, enlameada. Uma paisagem estéril, morta, a não ser por um bando de patos, que, aos poucos ajunta-se na porção do lago ainda não congelada. É pouco, como sinal de vida.

Ao fundo do parque há blocos de apartamento. E, antes de chegar a eles, uma escola de onde crianças saem em disparada ao final das aulas. Uma delas, mais contida, corta caminho pelo desolado bosque: é Alyosha. Num determinado momento ele se detém para prender uma fita plástica nos galhos de uma árvore, junto ao lago.

Sua vida em casa não é muito diferente da vida de milhares, milhões de adolescentes ao redor do globo. Viver com pais que se revezam entre iPhones e televisores digitais. Pais que exercem trabalhos burocráticos, enfadonhos e/ou mecânicos. Pais que parecem frustrados não só entre si, mas no que fazem e com quem convivem. Ou diante do tempo que têm de despender para sustentar os filhos ou a si próprios. Pais que enfrentam algum tipo de reserva ou crise financeira. Morrem de tédio e pusilanimidade. De vontade de consumir mais. Porém não têm dinheiro para tanto. Para ter em volta uma decoração mais elaborada -- o que responde por certo "refinamento kitsch" do apartamento de Anton (Andris Keišs), o namorado de Zhenya.

Não parecem pais particularmente amorosos. Desejam vender o apartamento. O garoto aborrece-se no quarto. Não demonstra nenhuma propensão para cumprimentar os prováveis compradores, quando estes vêm em visita. E estes também olham para ele como algo que ocupa espaço nos metros quadrados da futura propriedade. Espremido entre as tarefas escolares e o dissenso dos pais, o garoto sofre ao vê-los espezinharem-se. Chora atrás da porta ao escutar insultos trocados, e a possibilidade do internamento. A vida é estreita, e o pequeno tem apenas um amigo na escola, além do controle dos pais sobre seu email e contas de redes sociais.

Os pais também constituíram vidas paralelas. Boris, bancário, vive com uma companheira, Mascha, que é mais jovem, de uma classe social modesta, e encontra-se em avançada gravidez. Zhenya mantém um romance com um executivo mais velho. Tanto o pai quando a mãe tentam reconstruir suas vidas após o malogro de um casamento do qual o garoto é a expressão mais concreta. E há um rancor de ambos diante da instância filho. De ter de trabalhar duro e sacrificar-se para mantê-lo.

Tudo isso de repente é abalado pela fuga de Alyosha. Os pais vêem-se congregados, a despeito do desamor. Até a velha e ranzinza avó do menino é procurada pela filha, o genro e a voluntária de um grupo que os auxilia no encalço do fugitivo. Debalde. Esse grupo de voluntários, aliás, é das poucas presenças louváveis e, algo, generosas nesse filme cortante, que versa sobre a esterilidade e a indigência dos sentimentos em família. Da falência desses sentimentos. E de pais capitulando diante de circunstâncias que eles parecem ser incapazes de compreender ou moverem-se por.

A amargura do casal é proposta num nível de realismo inusual. Após mais uma troca de farpas, retornando por uma estrada rural, Boris subitamente larga Zhenya no acostamento. O grupo de voluntários segue com as buscas. A polícia entra finalmente no caso. Um colega de escola repassa a pista de certo esconderijo ritual, numa espécie de resort em ruínas, em meio a um bosque. As buscas prosseguem. Os pais visitam hospitais, necrotérios. Mas Alyosha não é encontrado, a despeito dos esforços do grupo de voluntários.

Três anos depois, vemos Boris ao lado de Masha, que deu luz a um garoto. Boris os trata com frieza, dilacerante indiferença. Eles vivem espremidos em uma quitinete num conjunto habitacional suburbano, e parecem enfrentar alguma precariedade, e dificuldades financeiras. Zhenya mudou para o endereço de Anthon, o amante bem de vida. Ela prossegue inseparável de seu iPhone. Às vezes, consegue afastar-se do televisor, em torno do qual ela e Anthon passam as horas de lazer, para correr numa esteira mecânica posta na varanda. E então surpreender-se, não só com sua má forma física, mas com o frio da varanda ao ar livre, e a fealdade de sua vida àquela altura.

Agora os cartazes com imagens de Alyosha não passam de resíduos desbotados, rotos. Quase ilegíveis. O apartamento de Zhenya e Boris é vendido, e uma equipe de operários remove os apetrechos do quarto do adolescente. A câmera retorna ao parque que ele costumava cruzar dia após dia, ao voltar da escola, e põe em campo a fita plástica presa aos galhos da árvore, junto ao lago: sinal único de uma existência que se foi, não se sabe bem para onde.

O filme conta com um cinematografia diligente, a cargo de Mikhail Krichman. O destaque vai para naturezas mortas. A neve caindo janelas afora, em quadros em que não há presença humana. Por inércia ou opção. As inerciais são belas e tomam um espaço pelos quais passaram personagens agora em fora de campo. Há, por igual, muitas cenas noturnas. Uma impressionante locação em ruínas. E o retorno em desoras aos locais do início: a escola, o bosque, o apartamento sendo desmontado. A insistência da câmera ao acompanhar, passo a passo, o esforço desmedido do grupo de voluntários e dos pais na busca do garoto. A câmera parece compenetrar-se em cada prender de fôlego, cada gemido de amor, cada expressão de enfado. Cada esgar ou riso, como quando duas garotas saem meio tontas de um edifício semi-abandonado dirigindo gracejos aos voluntários. Ainda que todo esse esforço de busca pareça vão. E Desamor nos dimensione um tanto dessa esperança infinita que existe no mundo "mas não para nós" sendo desenrolada em tempo real.

Há os que atribuem a Loveless um valor alegórico. P. ex., entrevêem Zhenya como uma alegoria de Rússia. Ou Boris como o fracasso de certa burocracia estamental. Mas a verdade é que há demasiadas pulsões realistas que não menos requerem que o filme conheça ao menos uma camada de representação literal. E que a gente, então, se volte estritamente para os acontecimentos fixados pela câmera de Krichman em sua atualidade.

E, no entanto, Desamor é um grande filme político. Como qualquer grande filme. No campo do comentário político, ele encontra paralelo apenas em Transit, na safra dos filmes recentes, projetados neste 2018. Ainda que seus motivos, ao contrário dos de Transit, sejam na aparência mais comezinhos, mais distantes da política como jogo institucional, nacional ou partidário.

Andrey Zvyagintsev, ao lado do polonês Pawel Pawlikowski, é dos mais instigantes realizadores surgidos no Leste Europeu nas últimas décadas. Porém se há mais imediata beleza nas imagens em preto e branco das plásticas sequências de Pawlikowski, há também nelas certa assepsia publicitária. E, embora isso não as diminua, seu corte é mais breve, televisivo, menos clássico. Além de ser sempre mais fácil agradar quando se trabalha com um par romântico. E, logo, parece que há mais verdade em Zvyagintsev, num primeiro momento. Que ambos articulem problemas mais urgentes que gente como Lars Von Trier passa recibo do Leste Europeu como uma cultura capaz de dotar o Ocidente de certa insuspeitada consciência. De certa eleição de prioridades que soa coerente diante de esteticismos vazios ou excessos de detalhe.

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