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Casamento. Triângulos. Tédios.


Conversa#96 - Ano 3 - Reclassificando Clássicos[32]

The Woman on the Beach (Jean Renoir, 1947, Estados Unidos, cin. Leo Tover e Harry J. Wild)

Jean Renoir despediu-se de Hollywood com esse noir de ambiência marinha rodado em 1947. O projeto traz algo de teatral e um sobejo daquele desencantamento fatalista, tão evocativo e característico do realismo poético francês. Ou a impressão de que psicanálise, existencialismo e comunismo real podiam, quando conjugados, não só explicar, mas ainda salvar o mundo. E há uma tentativa - um tanto malograda - de deslocar o habitual melodrama no rumo de algo mais ousado. E isso se dá às expensas do típico triângulo amoroso. Visto, aqui, não só sob o ângulo dos amantes, mas também dos casados. E esse revezamento da perspectiva, embora relativo, não deixa de ser interessante.

Num dos vértices desse triângulo, o vértice solteiro-procura-sarna, está um jovem oficial da guarda-costeira prestes a casar. Ele porta traumas de guerra, e um torturante pesadelo. Um recorrente sonho com naufrágio. Navio indo à pique, depois de atingido por bombas. No caso, evidente (menos para ele), o afundamento de seu projeto de vida mediante o adultério. Nos outros vértices do triângulo há, claro, um casamento em crise. E tudo está dito. E, depois, desdito por um final feliz um tanto inverossímil, incongruente,:mas carregado de certo decoro, certo fair play humanista em voga na época. Ou mais provavelmente refreado pelos códigos de postura tão restritos em períodos de crise e guerra - quente ou fria. Além disso, é um fecho com moral da história. Algo perfeitamente estranho à nossa sensibilidade em 2019.

O casamento em crise diz respeito a um pintor famoso, que ficou cego, e sua esposa um tanto mais jovem e malévola. Esta faria Eva com sua maçã parecer uma adolescente pré-lolitismos. A femme-fatale por excelência, com o veneno a escorrer do lábio, e alguns laivos daquelas deidades gregas meio despirocadas ou caprichosas. Algo quase ofídico. Um modelo de mulher má. Gratuitamente sedutora. E ainda mais com esse marido que ficou cego na conta dela, e frustrada por não ter logrado seu alvo: tornar-se uma socialite em Nova York.

Esse modelo é vivido por uma das grandes atrizes da era noir:Joan Bennett. Nesse mesmo ano da graça de 1947, ela faria uma outra dona de casa. Talvez mais industriosa, madura, humana e menos clichê, no cativante The Reckless Moment (Max Ophuls). Há atrizes que intuitivamente buscam a direção dos mestres, meio como por uma força magnética. E isso parece um refinamento, ao longo da carreira. Um suplemento. Ou espiral. Perspicaz vice-versa. E há uma exigência aqui. Uma espécie de triagem. E, nas décadas de 40 e 50, isso surge como um selo em atrizes com Joan Fontaine e Joan Bennett. Muito atentas, por sinal, à força dos expatriados e das suas ideias. Bennett, ninfeta da era do mudo, resistiu melhor que a encomenda ao falado. E também deixou-se dirigir por Fritz Lang, Vincent Minnelli e Douglas Sirk. E já na velhice, por Dario Argento. Foi, por igual, uma ativista ligada às causas da esquerda.

O triângulo amoroso, de outro modo, ainda não é obsceno, como aqueles triângulos riscados a carvão, nas paredes e pisos, de algumas décadas atrás, secundados por raios convergentes. Estamos em 1947. Mas, outrossim, é um triângulo, e um tanto ousado para os padrões da Hollywood de então. E vemos beijos e carícias adúlteras. Ainda que não arranquem pedaço. E há stills que atestam cenas mais picantes, rodadas sob a direção atenta de Renoir. Mas naquele tempo, nem mesmo um mestre como Renoir tinha acesso ao corte final de um projeto despejado em linha de produção nos teatros e salas de exibição. E não é difícil supor que o corte final segundo Renoir divirja bastante do corte final definido pela burocracia do estúdio.

Robert Ryan, cenho carregado, o permanente ar de hesitação entre desconsolo, sadismo e cinismo; consegue devolver-nos uma personagem até complexa na pele do oficial casadoiro. E é a partir de quem o fio sai da meada: o ponto de vista do filme, em predominância. Assaltado por pesadelos que talvez encontrem equivalência nas memórias do velho pintor cego (Charles Bickford), tal como cristalizadas em suas telas; Ryan move-se como se houvesse por trás um titereiro chamado destino.

Esse titereiro, por meio dos pesadelos, o informa dos percalços do adultério. E um dado não deixa de ser considerável: nunca vemos as telas do artista cego. Quer dizer, até vemos, mas só o verso delas, quando manipuladas exasperadamente por seu autor. Bickford, aliás, paga o bilhete com uma bela atuação, ao forjar amizade com o amante da esposa e manipular suas queridas telas, Um tanto como se elas contassem um futuro, ao modo de Tirésias. Pois elas surgem viradas só para aquele que, apesar de tê-las concebido, não pode mais vê-las. (Isso podia ganhar sobretons autobiográficos quando se lembra de quem Renoir é filho. Ou pode também ser lido como uma alegoria da "experiência"). Talvez, em algum ponto futuro, o que segue nas telas coincida com os pesadelos do outro, do amante da esposa. E, no entanto, a chave de tudo é mesmo Peggy (Joan Bennett), com sua beleza passando do ponto, seu tédio, sua alergia à província e desejos de mundanidade. Demasiado humanos. E tudo isso temperado por uma fotografia noir clássica, embora longe de distinta.

The Woman on the Beach compõe um filme simultaneamente naturalista e delicado. O naturalismo despersonaliza. As personagens não são mais que incorporações de ideias. Elas perdem a chance da concretude, de certa carnadura humana. Não tem mau hálito, remelas, nem escovam dentes. Não tem furinhos nas bochechas, estrias ou momentos em que o brilho lascivo no olhar apenas embacia. Como se proviessem da pintura medieval, essas personagens, então, representam motivos, quase alegorias: a paz, o conflito, a fé, a lealdade a si, o desejo, a compaixão, a concupiscência. Essas grandes palavras abstratas, que nos maltratam, fazem sofrer. E como tudo que reduz o homem à conformidade com uma lei geral anterior, é fácil simplificar esquemas, aqui. E sintetizar toda a coisa no rumo de um maniqueísmo um tanto naif: o bem vence o mal, etc. Ou o contrário. Ainda que só por algum tempo. Ponto. Pausa longa. (Faz parte do naturalismo essas pontuações sublinhadas. A vida como uma espécie de distúrbio. O homem como um protótipo de doente. Mais ou menos como uma tentativa de normatizar ao padrão Hollywood o expressionismo alemão, via um de seus desdobramentos mais refinados: o realismo poético francês).

Nesse sentido, nenhuma das três personagens escapa de antes ser um tipo. Um joguete. A que se rebela mais contra seu tipo é Peggy. Mas ela não tem tempo de ganhar desenvoltura, de destacar-se de sua condição e "abstrata" em apenas uma hora e dez minutos de um filme no qual não se encontra exatamente ao centro. Essa debilidade das personagens confirma o naturalismo da trama. O próprio título traz algo que insinua certo influxo mesquinho do meio sobre a figura humana. Um homem encontra uma mulher numa praia. Reticências. A praia é semi-deserta, e a mulher abriga-se na ruína de um barco. Nesse abrigo improvisado, refugia-se da aridez do casamento e do lar. O homem desvia-se de casar-se com uma bela e aplicada moça da província, completamente insossa. E passa a ser amante da mulher casada, encontrada na praia, e consolada no barco em ruínas.

A troca é mau negócio. Mas isso o espectador já sabe. Até pelos sonhos premonitórios do homem, que remetem - com bem menos convicção e artesania cinemática, aliás, porque não fotografadas pelo gênio de Boris Kaufman - para as cenas subaquáticas do casal em L'Atalante (Jean Vigo, 1934). Isso, porque a mulher encontrada na praia, além de casada e com tédio - algo não tão incomum - é desde o início uma megera, que quer a todo custo lucrar com a venda das valiosas telas do marido, trancafiadas cuidadosamente na despensa da casa. O marido, de meia idade, cego, atormentado por suas memórias fixadas em telas, vem farejar o casal, vez em quando. Um velho resmungão, que ama a mulher mas não quer admiti-lo. E que busca, por meio de certa anti-sentimentalidade, reavivar um casamento que segue na inércia da chama fria. Pretende também uma amizade com o jovem amante da esposa que quase lhe custa a vida, ao induzi-lo a despencar de um penhasco à beira mar. E nem assim ele desiste dessa amizade, que mais parece interpor-se ao modo de um teste ou desafio. Ou seja, aqui encontra-se cristalizado certa ética de comportamento masculino tida como razoável nas décadas que antecederam a expansão do feminismo como cultura global.

A trama é simples. Algo, teatral. Parece um prefácio sugestivo a roteiros baseados em peças de Tennessee Williams, que virão às telas logo a seguir, com grande aceitação de crítica e público. E mesmo com certo programa: falar de tabus mesquinhos, de época, com uma franqueza um pouco rude e ingênua a reger sua intoxicante iconoclastia. E, para temperar, há aquela ambiência sulista, meio gótica, meio "gonza". Algo que passa em linha reta da sexualidade às relações de família, numa espécie de rearranjo da mitologia grega à província estadunidense. Além de certas personagens femininas que rompem com o restrito papel reservado às mulheres na sociedade americana de então. Do contrário, nas peças de Williams, mulheres se lançam à vida, empreendem, traem, amam, gozam. Acertam e erram. Podem se permitir essas opções. Nem sempre por razões que serão sancionadas pelo feminismo contemporâneo. Mas inequivocamente apontando para um avanço da crescente participação feminina na decisão dos destinos sociais.

Este noir, não é o melhor Renoir. Especialmente quando posto em parelha com filmes da década anterior do mestre francês. Filmes feitos na França no frescor da idade, e escapando de um controle mais cerrado da censura. Filmes que invariavelmente exploram questões envolvendo o marasmo matrimonial compensado pelo triângulo amoroso. Nem que de raspão. Como em La Chienne (1931) - depois refilmado em Hollywood por Fritz Lang - ou Toni (1935), p. ex. Ou ainda em Boudu sauvé des eaux (1932), com seu pendor anárquico. E, a despeito disso, como usa ser nesses casos envolvendo grandes autores, é entretenimento garantido. Seu assistente de direção neste A Mulher na Praia foi um certo Robert Aldrich. Os có-fotógrafos não estão entre os mais notáveis. Mas a música é de Hanns Eisler.

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