Citações, Cinefilia & Academia numa Hollywood da mente
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Conversa #97 -Ano 3- Relances do Já e do Agora[15]
Once Upon a Time in Hollywood (Quentin Tarantino, Estados Unidos, 2019 - cin. Robert Richardson)
Pouca coisa é menos kitsch hoje que tentar surpreender "citações" de De Toth, Peckinpah, Demy ou Leone nos recentes filmes de Tarantino. Ou velhas convenções do 'kaiju''. E quando visto à lupa, há algo mais que gratuito nessa tarefa. Algo expressamente brega. Pela pretensão. Pela normatividade do ato: "será qu'esse plano-sequência deriva de Touch of Evil, de Ride the High Country, de Model Shop ou de Day of the Outlaw?" E isso vai por um clichê já meio folclorizado: incensar o conhecimento enciclopédico de filmes acumulado por um balconista de locadora de vídeos. Por um João Ninguém, cuja única nota dissonante em seu joãoniguemísmo é justamente...sua paixão por filmes. Seu amor de colecionista. E nesse ponto, a paixão do balconista, intacta, por si, talvez seja mais nobre que o subsequente êxito do realizador…Mas infelizmente balconistas não são entrevistados em concorridas coletivas. Ou tornam-se o centro da atenção, no circuito dos festivais.
Qual o sentido de tornar esse conhecimento enciclopédico algo normativo? Ora, não é preciso ir muito longe para perceber que o sentido é o de equiparar "cinefilia" à "academia". Ou, se quiserem, de subsumir uma na outra. De ver a cinefilia sancionada e absorvida pela academia. De a única possibilidade válida de cinefilia ser aquela sancionada pelo universo acadêmico. Afinal, numa das obras mais incensadas pela academia nas últimas décadas, seus dois volumes sobre o Cinema, Deleuze demonstra uma hesitante cinefilia. Uma cinefilia, aliás, que consegue misturar um bocado de coisas, alhos com bugalhos, sem necessariamente se comprometer. Uma cinefilia barroca, monstruosa em sua tendência à enciclopédia. Mas também uma cinefilia, digamos, já bastante concessiva e domesticada pela academia. Ao lado, evidente, de observações pontuais, agudas, urgentes, que não soam pouco sagazes. Uma cinefilia, ela mesma, pouco normativa. Mas que irá assegurar a normatividade da cinefilia ao menos por duas gerações subsequentes. Pois hoje, não poucos cinéfilos revisam Deleuze com olho ávido, antes de proclamar o veredicto. E essa sensibilidade - mais deleuziana que de Deleuze - provoca delíquos e calafrios nas sensibilidades mais histéricas. Sobretudo aquelas que se considerarem ao mesmo tempo guardiãs do cinema "estético" assim como do cinema "político". E desfolham tal cinefilia sem muito critério ou discrição. Mas aqui já entra o papel decisivo das redes sociais. E uma espécie de intolerância opinativa. Uma intransigência que se apresenta feito um selo geracional.
É mais ou menos óbvio que as duas esferas - cinefilia e academia - são um tanto incompatíveis. De partida, diversas. Definitivamente, dessemelhantes. Tanto que a cada uma, há um nome. Ou, no mínimo, encontram-se à frente de diferentes janelas, ainda quando debruçam-se sobre a mesma vista. E é também óbvio que a cinefilia não deve deixar-se tutelar pela academia. Pelo cartorialismo insípido da academia. É-se cinéfilo por impulso. Há algo de muito subjetivo, excêntrico e transgressor nisso de gostar de filmes. Há um impulso amoroso, amador, intuitivo que cria suas próprias regras. Um impulso análogo ao do leitor. Ou talvez ainda mais próximo do colecionador que o do leitor. E isso não pode ser reduzido, como se faz na academia, a um elenco de autores que alicerça uma teoria prévia. Nem pode ser regulado pela ABNT.
Ou por aqueles temas pré-gestados, de títulos altissonantes, subtítulos pomposos, que exigem que o filme é que caia em linha reta e caiba dentro de sua trama. Geometricamente. De sua camisa-de-força. De seu roteiro engessado como um braço que antes estivera próximo da fratura exposta, mas já não há qualquer sinal desse trauma no aspecto final da coisa. E, ao invés disso, há uma trama mais geométrica e generalizante. Mais regeneradora. Contida. Bem comportada. Que se interpõe à hemorragia e à síncope. Que passa ao largo do caso, do concreto na direção do tipo. E então referenda mais essa trama acadêmica a partir da qual se predispôs a ler o filme. Mais até do que o próprio filme. Pesquisas que glosam a partir de um regime de citações muito próprio. (E, na maioria dessas teses, dissertações, TCC's, artigos, a parte aproveitável são justamente as citações. E nada mais. Ou seja, no fundo, o próprio exercício de fazê-las, escrevê-las, agrega muito pouco à experiência de vida de seus autores. Além de leituras nem sempre feitas de forma orgânica, prazerosa). Essa domesticação segue por disciplinas, com carga horária fixa, regras de jogo muito bem estabelecidas, e inclusive visceralmente normatizadas quanto à redação.
Logo, não se devia confundir as esferas, a não ser que se deseje passar de um cinéfilo a um acadêmico ou scholar. Ou o contrário. No primeiro caso, aliás, movimento que implica na morte do cinéfilo pelo desaparecimento do que há de mais espontâneo na cinefilia: fruição sensual, intuitiva e amorosa de filmes em paralelo a uma rotina. Uma espécie de tomá-los pelo que são. Um corpo a corpo que finca pé diante de generalidades, e reafirma o filme com algum frescor. Como algo autônomo, específico. Ao menos tão único quanto uma garrafa de vinho. Um gibi. Uma caneca. Um bloco de notas. Um volume de contos. Algo não redutível ao propósito, à compulsão acadêmica por classificar, decompor e definir numa linguagem escrita domesticada e uniformizada por determinadas normas. Nem graduar essa paixão às bandeiras acadêmicas em moda: feminismo, ativismos étnicos e lgbt's, pós-industrialismos (pós-modernismo), equiparação da alta-cultura à cultura middle-brow, pós-colonialismos, etc. Ou seja, muito de tudo isso que resulta hoje num conceito e num entendimento de história perfeitamente rasos.
Para ser realizador, sem dúvida as duas coisas são relevantes: cinefilia e conhecimento sistemático (mais próximo do acadêmico, mas não necessariamente "acadêmico"). Porém a cinefilia é muito mais importante. Não só porque específica, mas sobretudo porque amorosa e intuitiva, como tudo que diz respeito à criação e à arte. Sobretudo porque embate solitário entre homem e filme. Entre o olho e os pedaços de imagem colados, que se tem diante de si. O jogo da academia é depois. É apenas informativo. Ou quando muito organizador. Mesmo que alguns teóricos, ao modo de Deleuze e Guattari tenham tentado revolvê-lo, torná-lo mais "intuitivo". [Benjamin, Bazin, Kracauer, Simmel e Bergson, de outro modo, também fizeram esse mesmo percurso antes de Deleuze. E com mais eficácia. Mas, ao contrário de Deleuze, nunca foram professores universitários, no sentido ortodoxo. E, portanto, lograram melhor êxito].
Como a escrita, as leituras acerca dos filmes também não podem ser só recortadas epistemologicamente. Não podem ser restritas a um determinado tipo. Não devem caber numa tipologia. Reduzidas a um tipo que segue o mesmo molde de como se escreve sobre outros temas na academia: por meio de artigos e papers que não guardam lá a possibilidade de se envolverem, de se desenvolverem na forma mais ampla, liberta, inesperada: a do ensaio.
O alpiste do cinéfilo é de outro tipo, diverso do alpiste do scholar, do professor de pós-graduação, do que escreve um paper para um periódico acadêmico. E, em larga medida, a sanção do acadêmico ao cinéfilo implica tão só na morte do cinéfilo por sucção. Sua transformação em animal empalhado, classificado, para usar a terminologia e os procedimentos de certos filmes B, de terror. Pois ao fim desse processo, o cinéfilo é sacrificado - com todas as pompas rituais - e embalsamado. E depois transformado em espantalho. Em vez de pássaros, afugentará outro seres volantes: novas ideias. O cinéfilo é apenas o coletor de dados, o repasto inicial do perigoso vampiro que irá sugar toda sua seiva, seu mojo, seu elã vital: o acadêmico. Pois essa taxidermia implica na desidratação completa de algo que o acadêmico visa sugar do cinéfilo: sua espontaneidade, sua intuição, a leveza casual, anedótica e específica - não a serviço de uma tese, causa ou bandeira - de suas observações, de suas associações e observações mais inesperadas e espontâneas.
Não a serviço, bem entendido, de um sistema meta-referencial já meio caduco. Ou deslumbrado demais consigo mesmo. Com suas menções, seus métodos, premissas, procedimentos, regime de citação. Tudo isso talvez apenas confira a Tarantino o componente de um pós modernismo meio brega, cediço, que as massas adoram. Quer dizer, massas mais cinéfilas, mais bem "informadas", reguláveis, marias-vai-com-as-outras. Massas pela primeira vez pós-graduadas - embora pós-graduadas naquela informação que não confere muita invenção, senão confirma certo tédio. Massas que não lançam mão do deslavado humor - ou auto-humor, evidente - que só erudição em grupo, compartida, propicia. Uma erudição que guarda débito com uma experiência comum. [E uma experiência do tipo Erfahrung, mesmo quando pareça a mais rematada e banal Erlebnis]. E, nesses dois sentidos, o da superficialidade e do tédio possa, então, esse proceder de Tarantino - com a citação ao centro - ser aproximado - e até estimado - e posto no rumo do pós moderno, por doutos analistas. Pelos doutores em cinema. Quase todos rendidos às modas acadêmicas de momento: o feminismo de 3ª geração, os temas lgbts, as contrafações e identitarismos étnicos e culturalistas. A uma cultura globalista um tanto cosmética e niveladora.
Algo pretensioso. Mas calcado em um jogo referencial raso, um tanto previsível. Um jogo que é o antípoda dos Irmãos Coen. Estes estão se lixando se são ou não "pós modernos", mas o refinamento irônico que salpica seus filmes, por todos os ângulos e sons, por todos os poros, os faz ter em mãos, moldar, expor um pós modernismo muito mais complexo e convincente que o de Tarantino, com seus joguinhos de cinefilia rasa, que se convertem em senhas e joguetes a serem invocados e re-citados nos artigos acadêmicos e em brochuras informativas. Para não falar dos trocentos mil blogues em que se regurgita "cinefilia".
Ou ainda sem falar que tais jogos meta-referenciais, catálogos de citação, têm um peso completamente despropositado nas críticas e análises. Pois parece que sem essa meta-referencialidade, sem o desvendamento e exegese das citações, sem o mínimo de citações em si, sem uma genealogia amparada em conceitos gnósticos, a própria trama não carbura, não pega no tranco, não assoma tão instigante assim. E, logo, a meta-referencialidade em Tarantino - algo que começou como trunfo, como "espontaneidade", como "cinefilia" - mais e mais torna-se um peso, um problema para o autor, uma espécie de câncer, num crescendo que vem desde seu segundo filme: Pulp Fiction (1994). Se vem convertendo numa espécie de fetiche de cineasta - no mau sentido. Uma espécie de tique. Uma sorte de derrota diante da qual a cinefilia capitula, filme após filme. E assina, diante da academia, um tratado de rendição incondicional.
Aqui importa mais o modo de fazer que certo equilíbrio entre esse modo de fazer e aquilo que é feito. E, nessa toada, pode-se perceber que a forma é convertida em conteúdo de modo exasperantemente barato. E empreende esse movimento notadamente por razões pragmáticas: cortejar o público mais bem informado. O público das art-houses, que é o mesmo das pós-graduações. Ou seja, para cortejar a academia. Essa academia que, pela primeira vez na história, rendeu-se não ao mau gosto - porquanto ainda há reservas de revolta e de beleza até no mau gosto - mas a determinado populismo de esquerda, que corteja mais o lúmpen. Ou seja, a fração de classe média baixa que nunca tinha chegado à universidade. Que nunca tinha tido acesso à educação formal continuada. Essa classe média baixa que viu, em menos de duas gerações, a universidade chegar até ela. E celebrá-la. Calibrar-se por ela. Como costuma ser em casos assim.
Isso posto, vamos a Era uma Vez em Hollywood.
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O filme pode facilmente ser visto, sem favor, como o terceiro western encarrilhado de Tarantino. Dos três, o mais concessivo é Django Unchained (2012); o mais divertido e orgânico, The Hateful Eight (2015); e o mais confuso (o mais convulso também), este Era uma Vez…, a despeito de ser também o mais apoteótico e ambicioso. E conter momentos isolados de uma deslavada beleza.
Fala-se muito da meticulosa reconstrução de época. E ela é louvada, até pelo aspecto em si da imagem, em recente matéria da American Cinematographer. Esse texto compara o padrão visual da fotografia à fotografia New Hollywood dos anos 1960. Ou então, fala-se do amor de Tarantino pelo cinema produzido até o final dos 1960. Ele próprio, em entrevistas, tem reforçado tais aspectos. Mas tais aspectos - filme de época e amor por filmes de uma determinada época - passam também por certa disposição americana. E uma disposição parente da que afeta a valoração do trabalho do ator. Investiguemos essa disposição.
Para os americanos, o bom ator é aquele capaz de se transformar. De virar outros. De empreender uma sorte de mutação. De, a cada vez - e de novo - surgir na tela como outro. De preferência, já com um certo punhado de "outros" prévios ao longo da carreira. Mais gordos ou magros. Uma antologia de tipos preferivelmente um bocado distintos entre si. E, sobretudo, cada um desses tipos é alguém muito diferente do ator que os joga. E se ela ou ele perdeu ou ganhou dezenas de quilos, foi submetido a camadas a mais de maquiagem - falsas calvas, bochechas inchadas, olheiras, corcundas, lábios mais carnudos ou leporinos, celulites, tiques violentos, rugas, estrias, maus dentes, paralisias, cegueiras, verrugas, cabeleira crespa -, se ela ou ele atormentou-se por causa disso, comeu do pão que o Diabo amassou, teve insônias, traumas, despontou vinte anos mais velho ou contrário, separou-se do cônjuge, indispôs-se com o diretor, com o elenco de apoio; tanto melhor. Não importa que tudo isso seja, no fundo, um tanto pueril: os americanos adoram.
Ainda que tudo isso indique apenas algo estritamente da ordem da mutação e da fisiognomonia. Algo da ordem da epiderme, da superfície. Da aparência. Algo que é mais casca que polpa. Seu fim é o de apresentar um produto bem acabado na esfera da similaridade. Ou ao menos uma espécie de boa embalagem desse produto...E, evidente, ninguém entende mais a liturgia das embalagens e dos produtos que os americanos. Eles são mestres em mercadoria. Sabem exportá-las como ninguém.
Da mesma forma isso se dá com tempos. Pelo menos na cabeça, no senso comum dos americanos. Sabemos que cada presente lê o passado firmemente assentado em seu agora. Seu agora tecnológico, por força. Mas, principalmente, seu agora filosófico. Porém, os americanos não querem saber disso. E se 2019 tem condições de replicar um 1969 factível, que diz presente nos rótulos de comida canina enlatada ou no lounge de um 747 da Pan Am, passando pela sordidez e certa obtusidade de grupos hippies, e chegando em carros de época pegando parelha numa ampla autoestrada; é isso que importa. Daí o vagar e a pachorra com que a personagem de Brad Pitt manuseia as latas de comida canina, ao modo de um ritual. E então vemos a gororoba entornar até o depósito de comida sob o olhar extático do cão salivante: ploft!
Por que a lentidão transforma algo tão prosaico quanto alimentar um cão em um ritual estudado? Porque tem de exibir o rótulo dessas latas de comida canina. O quanto toda uma época é atestada, conjurada por esses rótulos. Não importa o quanto, meramente para ser feito, isso demandou de energia e recursos.
Certamente uma cena noturna, numa via expressa, com carros de época, demanda um custo altíssimo de produção. Só com a iluminação gasta-se uma pequena fábula. E há aqui um excesso de meios a devastar natureza - e não só a física. A pirotecnia toda por trás desse tempo presente reconstruindo um passado. Não é necessário mensurar essa reconstrução de época em termos de custo/benefício - em termos ambientais, inclusive - se o resultado for satisfatório na imagem. Na ilusão da aparência. Da similitude. Da similaridade. (Não é necessário investigar sua ética em sua "potência de falso", para lembrar Deuleze). A exemplo do trabalho do ator. Pois o trabalho do ator é o paralelismo mais aproximado da concepção histórica à americana.
E, no entanto, há filmes que tratam esse submundo californiano e/ou hippie, do final dos 1960, início dos 1970 às vezes muito cerca dos próprios estúdios, de modo bem mais maduro e complexo. Em termos recentes, pode-se pensar, por exemplo em Inherent Vice (2015). Ou, um pouco antes, The Big Lebowski (1998). Ou, ainda antes deste, o corrosivo libelo anti-holywoodiano de Altman que tanto assustou Roger Ebert: The Player (1992).
É evidente que há alguns belos momentos na imagem de Era uma Vez... Certa brincadeira com desfoques, compreendendo o grupo de integrantes mulheres da Família, à primeira vez em que surge, revolvendo latões de lixo sob um imenso painel com James Dean, está entre esse momentos extasiantes. Cinemáticos. Classudos. Californianos. Há outros.
Mas a impressão que fica: Tarantino tem problemas com filmes de época. E esses problemas derivam da limitadíssima dimensão histórica de seus filmes. Ou seja, de o quanto o próprio conceito de história, algo que sobra em filmes como Transit (2018) ou Loveless (2017), parece limitado para o diretor de Reservoir Dogs. Muito pouco elaborado. É algo, aliás, semelhante ao que ocorre com Sofia Coppola.
Especialmente a Sofia Coppola de Marie Antoinette (2006). Uma tal superficialidade debaixo de certa casca bem construída, que é certo: reproduz bem a aparência da época, mas o mais importante, a mentalidade - a investigação dela, em torno dela, certa presunção dela - é completamente negligenciada. A ponto de se poder questionar a noção de "filme de época". E o pior: não parece ser algo proposital, senão uma limitação.
Em Coppola, essa espécie de violação do tempo se dá à custa do estilo. Estilo, aqui, não como tendência estética, mas como modo de vestir e de decorar. Algo mais da ordem do estilismo que do estilo. Algo da esfera da moda e do pop, tomados como prioridade. Isto é, algo da impecável direção de arte, do design de suntuosa profusão dos filmes de Coppola. Algo 'fashion'. Da ordem da aparência. Da moda. Semelhante a como os americanos entendem o "trabalho do ator". Mas de uma moda e de um pop menos investigados criticamente. E, portanto, bem diferentes de como são tratados, digamos, por um Preminger em Bunny Lake is Missing. Ou por um Antonioni em Blow-Up. Ou por um Jacques Démy em Model Shop. E isso também demarca - meio atavicamente - a diferença entre europeus e americanos. Os primeiros inclinam-se espontaneamente a tratar da história com uma complexidade, com uma gravidade que não se vê nos segundos. Falamos numa tendência. E, como qualquer tendência, comporta exceções.
Em Tarantino, tudo isso - a moda, o pop - é relevante, claro. Todavia, antes entra em cena o fator decisivo, que está em nosso prólogo: a citação. O quanto esse regime de citações é superestimado. O quanto no fundo é ele o astro mais resplandecente da película. Seria quase o inverso, p. ex., da austera perspectiva de Straub, que quer colocar a arte, inclusive em seus condicionantes mais concretos, no proscênio. Isso não despreza circunstâncias colaterais. Como quando Straub versa sobre Bach. E, então, entra até uma espécie de contabilidade das empreitas sob encomenda.
Além disso, há outros problemas: Tarantino hoje é um homem muito poderoso em Hollywood. Seus contratos contém prerrogativas quase inacessíveis à maioria dos diretores. Ele possui controle total do corte final. E até a prerrogativa integral dos direitos e lucros sobre a obra depois de algum tempo. E deve-se desconfiar de alguém assim. Alguém resguardado por cláusulas tão poderosas. Porque, do contrário, limites constituem também um fator relevante na criatividade de um cineasta. De um artista. E a geração de Glauber sabia bem disso. Trabalhando na periferia reles do planeta. Como o súdito de Kafka em "Uma Mensagem Imperial". E a nos ensinar algumas coisas a partir disso.
Em termos concretos, esse poder excessivo de Tarantino se traduz em orçamentos generosos. Fabulosos. Mas também em incidentes menos esclarecidos. Menos esclarecedores. Ou mesmo menos questionados. Como súbitas mudanças de opinião. P. ex., a irmã de Sharon Tate era inicialmente contra Era uma Vez em Hollywood. E de modo peremptório. De repente, segundo informam, tornou-se a favor depois de ler o roteiro enviado (candidamente) por Tarantino…E a favor, de modo incondicional. Uma apologista fervorosa do projeto. Será que só a leitura do roteiro operou tão espetacular milagre, foi assim tão persuasiva? Pouco provável. Em casos análogos, há fatores outros, menos nobres e mais contábeis envolvidos.
E, evidente, há a posição de Roman Polanski. O imbróglio judicial entre Polanski e Hollywood é longo e complexo. Um vespeiro, cheio de idas e voltas. E é óbvio que o grande elo entre o filme de Tarantino e 1969 se dá pelo assassinato de Sharon Tate e integrantes de sua entourage pela Família Manson. É o episódio central no filme, aquele que data: estamos em 1969. Tudo converge para ele. E ele possui aquele inoxidável vínculo com a cultura pop, via o "Helter, Skelter" e outros delírios dessa ordem. Apenas pretender que se possa revê-lo a partir de uma cena um tanto escatológica não parece distanciar o episódio (ou destacá-lo) de uma forma saudável. Ou luminosa.
Mas há um mal-estar no tratamento dado a Tarantino para a história. Esse mal-estar segue atenuado em alguns de seus filmes, como Reservoir Dogs, Jackie Brown ou The Hateful Eight. Essa assimetria histórica é difícil de lidar [to cope with], no entanto, em filmes como Inglorious Basterds, Django Unchained e este Once Upon a Time… Há um fosso tão intransponível entre ficção e realidade que é difícil crer nesses contos. Não em sua veracidade. Mas em sua "veracidade enquanto filme". Na sua coerência interna. Na sua congruência, digamos, ficcional. Na sua congruência histórica. Quer dizer, enquanto filmes radicados em determinados tempos, e lidando com certas personagens não fictícias.
Não é certo até que ponto Hitler e Manson podem ser tomados dentre esse jogo referencial de pastiches e citações sem banalizar o mal que causaram. Aqui, a leviandade com que Tarantino trata a história chega a bordejar a banalidade de que nos fala Arendt. E, assim, talvez não possa ser vista como uma crítica à banalidade do mal. Mas como uma nova e estranha forma de banalidade do mal em si, provocada por um mau entendimento, um débil entendimento do conceito de história. E, aqui, pode-se pensar no mal que era subjacente aos respectivos projetos coletivos que Hitler e Manson comandavam - por assimétricos que possam parecer. Por outro lado, parece pueril sugerir um pistoleiro negro que ameaça transformar-se num super herói num oeste subitamente transmutado numa espécie de guerra étnica.
Difícil crer que Era uma Vez... seja sobre mortalidade, como decretam algumas resenhas. (Ad Astra, a seu modo, trata bem mais desse tema. E melhor, dentro de suas limitações, que também não são pequenas). E como em outros filmes de Tarantino, o espaço entre a brutalidade e o riso é tênue. E nem sempre, ao contrário de autores mais sutis como Wes Anderson, saudável. Talvez Era uma Vez... seja mais um filme sobre apreciar e homenagear filmes de uma determinada época. Mas faz isso, por tudo que foi dito, de maneira equívoca.
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