Fleuma, espaço, visualidade, rasura
.. Conversa #100 -Ano 3- Relances do Já e Agora[16] Ad Astra (James Gray, Estados Unidos, 2019) - cin. Hoyte Van Hoytema
Em breve cena, somos postos na pele de um astronauta. E vemos o modo como ele é visto pelos colegas do projeto espacial. Há distanciamento, ironia, certa condescendência solipsista na maneira como vê o mundo, os demais. E também como é visto por eles. Mas, aqui, desvela-se o grande trunfo de Ad Astra: o temperamento de seu protagonista. Sua fleuma. Estoicismo. Nele encontramos Brad Pitt na sua melhor performance. Ainda mais inteira (e intensa) que encarnando o irrequieto dublê de Once Upon a Time in Hollywood. Ou o neurótico facínora, que arquiteta a trama de sua própria morte em The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford.
Esse desempenho de Pitt é o trunfo mais notável de Ad Astra. Há outros: o desenho de produção, os efeitos, a fotografia, o classicismo das composições, a discrição editiva. Certo otimismo envergonhado. Ou mais propriamente um ceticismo vocacionado a conviver com os demais. Guardadas as proporções, é como se Gray fosse uma espécie de Howard Hawks contemporâneo: mestre, mas sem reconhecimento.
De qualquer modo, o segundo maior trunfo também raspa em Hawks: esse estranho condão de falar de coisas sérias dum jeito banal. Quase inapropriado. Beirando o superficial. O irresponsável. Embora a soar bastante convincente. E a não se eximir de tratar motivos potentes, complexos, definitivos, dessa forma rasa, um tanto esportiva. Como em Hemingway. Mas sem o fatalismo.
Roy McBride é o mais existencialista dos astronautas. Além disso, sua figura assoma maior que o filme. (Assim como a de seu pai surge menor, mesmo encarnada por um bom ator, como Tommy Lee Jones). Muitos anos de aqui, e talvez se vá discutir mais o temperamento de Roy. Desse astronauta saído de um romance de Camus, corroído por dúvidas, escrúpulos e silêncios. Vai-se discutir isso mais que a peripécia - até certo ponto insossa - que se desdobra na trama desse épico. Pois é quase brega, por simples excesso de pretensão, que o filme assuma como central assuntar a relação Deus/homem. Ou divagar como satélite em torno do mito de Édipo.
Se há uma grande ausência no filme: a figura da mãe. Tudo bem que no centro da trama esteja a relação Pai/Filho. Inclusive em termos metafísicos. Mas talvez uma maior presença da figura materna nos fizesse, por contraste, entender melhor a fleuma de Roy McBride. E o papel dessa fleuma na relação com o pai.
MacBride segue aos confins do sistema solar, e quase morre de tédio no caminho. Isso a despeito de escapar de uma queda literalmente estratosférica, de um atentado promovido por guerrilheiros lunares no Mar da Tranquilidade, além de encontrar com uma cientista cujos pais foram presumivelmente mortos por aquele a quem McBride busca: seu próprio pai. Às vezes, é preciso recordar - de um modo quase intempestivo - que Ad Astra é também um filme de ação. Mesmo que seu forte passe ao largo dela. Ou que ela não se negue a surgir, na pele de dois babuínos gigantes, dentes afiadíssimos, assanhados por sangue, até um deles virar pudim contra a vigia das salas de descompressão da espaçonave. Mas não sem antes arrancar parte do rosto de um astronauta. Numa escatologia que remete a Alien. Ou que, de algum modo, vez por outra a gente se esqueça disso na contemplação dos belos quadros que surgem, compostos por Gray, Von Hoytema e mais de 3 equipes especializadas em efeitos gráficos.
Há tantos filmes envolvendo Ad Astra que seria enfadonho inventariá-los. Pode-se nele ver tanto de 2001 quanto de Solaris. Mas há mais. Muitos. E parece até haver mais débito para com Ridley Scott e seu Alien. Ao menos no plano visual. Algo que talvez não acaricie tanto o ego do diretor: ser tributário mais do discípulo que do mestre. No caso, mais de Alien que de 2001. Mais do desenho de produção que da filosofia que precede esse desenho. Mas nem sempre se atinge o que se quer como se quer e com o que se tem...Então, é uma proeza que James Gray seja capaz de passear com seu classicismo - inabalável e um tanto insípido - com segurança, por entre tantas e tantas referências convocadas. Ele assistiu bem aos clássicos, como Paul Thomas Anderson. Mas é menos amado por isso.
Porém aqui há uma diferença. O filme vale mais por si que pelas citações engenhosas, ao contrário do outro épico do ano: o de Tarantino. Ad Astra, com seu classicismo contido e aparente despretensão, é o próprio antídoto ao exibicionismo quase voyeur de Once Upon a Time in Hollywood, outro filme em que certa visualidade exuberante mostra as fuças. E onde há também todo um rol, todo um florilégio de citações. Um ror delas. O exemplo do filme-palimpsesto dos dias correntes. E que também deve ser mais destacado pela Academia. E porque a Academia curva-se mais e mais à academia.¹ Logo, leva ainda mais a sério a citação como dispositivo. Ao ponto de ferir de morte a própria lógica interna - lógica alética - da fita. Do contrário, Astra trata-se de um filme que se importa um tanto menos com uma esfera crítica central para realizadores hoje em dia: a sanção da academia.
No plano ético não é fácil lidar com certa fleuma que, ao abdicar da reflexão sobre as grandes questões, as questões inescapáveis, também abre porta para uma espécie de irresponsabilidade geracional. Pois é quase como se o filme dissesse: é possível ser feliz sem pensar. Sem pensar em muita coisa. Sem pensar em profundidade. Sem pensar em pais, mães, e até certo ponto cônjuges. E sem pensar em Deus. (Crianças, nem pensar. Não entram na fatura, de tal modo têm sido trocadas por pets, bicicletas e ativismos identitários, nos países pós-capitalistas).
Obviamente é o contrário disso - de forma bastante cosmética, aliás - o que é proposto ao final. Um rompimento com essa atitude de pós-industrialismo blasé. E de um modo estranho. Embora acessível. Invocando o sublime, mas, ao fim de tudo, passando ao largo dele. Do próprio sublime matemático: a desmesura infinita do Universo, diante da qual o corpo humano é reduzido a quase nada. A uma mesquinharia um pouco sem graça diante de satélites e cometas que cruzam o espaço numa perenidade absurda. Ou ainda, há aqui o reforço de certo mito da felicidade. Não menos da "felicidade conjugal". No que esse mito tem de pior: "Minha esposa e eu X o Resto do mundo". Ou de mais próximo de como a felicidade é apregoada nas propagandas, nos realities, nas redes de fotografia instantânea, nos consultórios de psicanálise. A cosmeticidade publicitária salpicando tudo. E sendo dragada das grandes corporações para a esfera da individualidade, do grupo de amigos, da família, do ambiente do trabalho, da tribo que se diverte junta. A felicidade regulada por psicanalistas, ensinada por aplicados jornalistas de serviços. Comprimida em drágeas que, meses à frente, vão desvelar seu verdadeiro rosto: são menos lenitivas, afrodisíacas ou estimulantes que indutoras de angústia. Ou, para além das cartelas, especialistas em qualquer imaginável babaquice terapêudica. É no que todos têm se empenhado mais em converterem-se.
No plano ático, algo fica devendo. Talvez um déficit de beleza diante da pretensão filosófica da saga. De sua tentativa malograda de abrir diálogo com Kubrick, Tarkóvski; pois termina a conversar mais com Riddley Scott. Isto é, menos com os filósofos, mais com os gladiadores. Menos com pensamento, mais com ação. Menos com conceito, ideia, e mais com aparência. Nesse rumo, Ad Astra é a segunda bola fora seguida de Gray. O que só atesta seu talento de diretor. Por igual, seu pendor para visualidade, algo cinemático. Pois mesmo filmes sofríveis ou problemáticos, como The Lost City of Z e esse Astra, não deixam de reter um valor que assoma vivo, vai além do cerne de seus equívocos. E transcende esses equívocos. É algo que se dá apenas na obra de muito poucos cineastas. I. e., que se dá só entre aqueles cujos filmes menos coerentes ainda constituem filmes que dão o que ver e pensar.
Um dos equívocos de Astra passa frontalmente pela estranha debilidade, quase indigência, da personagem de Tommy Lee Jones. A sequência do encontro entre filho e pai nas franjas do Sistema Solar é constrangedoramente débil. Anti-climática. Sem peso. Sem proporção. Sai-se dela como de uma peripécia a mais: o acidente de trabalho na estação espacial, o ataque dos guerrilheiros, o sequestro da espaçonave ou os ferozes e famigerados babuínos. O encontro com o pai nas lonjuras de Netuno não parece - como devia - ser o centro do filme. Nada guarda de seu modelo conradiano: o encontro com o Coronel Kurtz.
Se há um banho de visualidade e de vazio (espaço), há também uma grande estranheza nesse Astra. E a visualidade é boa até o ponto que nos recorda: o cinema se tem feito predominantemente de quadros bem compostos. Mas sobretudo da coerência interna e relacional entre esses quadros. Do fluxo que os percorre e mantém juntos. Empresta liga. Cada um deles. E todos eles. Ao modo de azulejos. Para compor alegoria. Um painel que, por sua capacidade geral alegórica, ao assaltar, ao passar ao largo, ao testar o limiar, ao saltar fora de algumas esferas discursivas - e aqui, inclui-se a lógica meramente publicitária - suscita, também, algumas ou muitas lebres. E naturalmente, nem todo realizador dispõe de um orçamento de 100 milhões de dólares e equipes sobre equipes de efeitos gráficos para engendrar fantasias que fazem pensar.
E há os que, ao contrário de Gray, conseguem dar o que pensar com orçamentos módicos. Ad Astra chega perto de dar de fato o que pensar. Mas esse esforço, digamos, malogra junto com a personagem do pai (Tommy Lee Jones). O encontro entre pai e filho, cerne do filme, é uma sequência insossa, de má inflexão. E temporalmente resolvida com celeridade. O malogro desse momento compromete o restante da trama. Um filme até bem orientado, visualmente convidativo, com um protagonista complexo, talhado na medida. Mas a peça se equivoca ainda esta vez quanto ao equilíbrio de suas partes.
O desamor da Academia por Gray parece excessivo, contudo. Assim como excessivo é o amor de alguns cinéfilos por esse cineasta pouco mais que formulaico. Mas esses ao menos estão em seu direito. E, no fim, isso é apenas aposta. Pois muito disso de reputações será decidido só no futuro.
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Há um patente malquerer da Academia em relação a Gray. Talvez uma tentativa de indicar: seu classicismo promete mais que entrega. E nesse ponto, como ressaltado acima, ele de fato fica devendo. Ao contrário de outro classicista que entrega melhor seu filme, e é mais bem amado pela academia e pela Academia: Paul Thomas Anderson. Ad Astra foi indicado apenas a melhor mixagem de áudio. E isso já chega a ser exagero. Entenda-se exagero de mau humor da Academia. (Nota Posterior)
¹Nesse rumo, o texto sobre Once Upon a Time in Hollywood: "Citações, Cinefilia & Academia numa Hollywood da Mente". ..
¹Ver a conversa sobre Once Upon a Time...