História de Advogados e "coerência"
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Conversa #101 -Ano 3- Relances do Já e Agora[17]
Marriage Story (Noah Baumbach, Estados Unidos, 2019) - cin. Robbie Ryan
Poucos filmes recentes podem surgir mais formulaicos que esse História de Casamento. Modelo de assepsia. Má assepsia. Ou ainda de como transferir para terceiros (advogados) o rancor, os ressentimentos, parte mais pesada e suja das acusações que, mesmo num casal mais razoável em crise, cônjuges nutrem um contra o outro, à hora de separar. Ou de como conduzir a dissolução final de um matrimônio de modo eficiente e profissa. Como se isso existisse. O que é eficiência, profissionalismo num casamento? Isso não existe. Apesar de poderem ou não ser oficiais, casamentos ou são amadores ou não são.
O que é um modelo de casamento? Como ele pode ser assim proposto? E é como se o filme dissesse: há uma saída menos torturante para a clássica fealdade que envolve o fim de uma relação. Mas ela custa algum pecúlio. Isso torna essa fita de Baumbach ainda mais ridícula. Algo que poderia até ser atraente se posto abertamente na categoria comédia. No registro da comédia. E, então, seria uma fina comédia quase do jeitinho que está. Com um mão de tinta aqui e lá. Mas não é assim como ela quer ser tomada por. Ela quer ser algo mais sofisticado do que é. E essa aspiração costuma ser das piores.
Essa pretensão a torna brega. Ainda mais brega, o fato de o assunto passar tão perto de Hollywood. E o casal ser formado por uma estrela em ascensão e um dramaturgo bem sucedido na Broadway - embora um tanto simplório. Além de o roteiro voltar a versar sobre a grande tensão geográfica que pode haver em casos assim: Nova York x Los Angeles. A coisa começa em Nova York (valores, outono, engenho, teatro, Europa, homens brancos, tradição, frio e coníferas) e acaba em Los Angeles (dinheiro, estio, máquinas, cinema, latinos e mestiços, novo-riquismo e palmeiras). Pra variar. E, nessa trilha, bem podia ser um filme de Woody Allen, que em vários momentos de seus longas propõe essa tensão geográfica exatamente nesses termos.
Mas falta um elemento essencial para tanto: o protagonista "apaixonar-se" pela cunhada. Ou pela baby-sitter. Pelo menos é um elemento mais factível, aparentado com vida real. Com suas casualidades. Torturantes e inesperadas especificidades. Surpresas. Ineditismos. Ciladas. As mesmas com as quais o destino costuma nos brindar com a velocidade dos cortes para flashback de diferentes tempos, como em naipes de baralho, que se pode encontrar em Little Women. Uma película, aliás, bem mais digna. E, ironicamente, dirigida pela esposa de Baumbach. E que curiosamente se passa no coração histórico do Leste: Massachusetts.
A personagem de Scarlett Johansson é de uma marcante idiotia. Algo que afronta seu permanente desleixo e atrativa androginia, ao flanar por aí tão mal vestida e bela. Tão disposta a dar carinho ao primeiro vagabundo que acena com algum conforto. Sem saber, o vagabundo, que recém-colheu na calçada o bilhete premiado, justo ao passar por ali. E é inevitável que mesmo o espectador mais sábio diga: "por que ele, e não eu?" Mas esse é o um dos melhores detalhes do filme, acessório como surge. E, sem embargo, a personagem também parece agregar algo da atriz. Algo de um ser humano que jamais conseguiu livrar-se dos imensos tédio, sono e acedia acumulados desde Lost in Translation, aguçados pelo volume de seu lábio superior. Pelo que há já de casual e irresistível quando ela então deambula bela e sem remissão pelas alamedas de Tóquio. Com os mesmos óculos escuros, ao que parece. Enfastiada também por um casamento em crise, coitada. Isso tudo a despeito da beleza. Parece haver atrizes a quem a mera ideia de casamento aborrece. Não estão de todo erradas. Seres como Scarlett Johansson não deviam casar jamais. Sequer passar perto de padre, pastor ou juiz de paz.
Já Laura Dern, que surge muito melhor dirigida pela esposa de Baumbach em Little Women, soa apenas de uma trivialidade sem peias ao resmungar contra a virgindade de Maria, entre outros lugares comuns de seu lamentável discurso. Um discurso supostamente lacrador e "feminista". Mesmo que clichês assim a tornem insuportável. Insustentável enquanto personagem não genérica. O que fecharia qualquer perspectiva de ela encarar um daqueles especificíssimos e complexos papéis que se vê em filmes de Cassavetes. Nos idiossincráticos filmes de Cassavetes, capazes de desmontar todo o mecanismo de um blockbuster como Marriage Story com a destreza e precisão de um relojoeiro. E ainda sobrariam, mãos, dedos e uma dose bem maior de engenho - que incluía canções compostas quase de improviso, para aplicar sobre imagens semi-documentais.
Mas o que pode haver de pior que essa sirigaita a distribuir receitas de como levar vantagem sobre um ex-cônjuge? A advogada de Dern é a lacração encarnada. E, nisso, claro vai um clichê colossal: bolinhas x luluzinhas. Evidente que, na sorte de monstruoso lugar comum que é a trama de Marriage Story, os demandantes e seus respectivos advogados pertencem ao mesmo gênero. É um detalhe irrisório. Passa quase despercebido. Ainda que pudesse ser um quadro do interminável programa de Sílvio Santos. Uma forma pueril de acirrar a guerrinha de sexos. E o fato de poucos botarem isso em escrutínio, apenas aponta para como quase todos encaram a vida em sociedade mais ou menos feito aqueles cavalos de tração, com semi-vendas sobre os olhos. Antolhos. Ou como aquelas Marias já acostumadas a com as outras ir. E, então, é como se o caráter dos envolvidos dependesse decisivamente dessa instância: gênero. Oh, céus. Desse modo, Dern jamais poderia ser a advogada de Driver. Do outro lado da questão, Ray Liotta não segue em melhores sapatos. O único advogado com algum resquício de dignidade é Alan Alda. Mas ele, com sua dicção aveludada e a tendência ao bom senso, passa em vapt-vupt pela trama. E, assim, a única personagem que evita o naufrágio definitivo desse melodrama insípido e bem comportado, de talhe elegante, é o de Adam Driver.
Não porque a personagem seja particularmente notável, atraente, perspicaz. Não porque fuja à planície. Não porque falte ao cortejo de personagens sem caráter, sem distinção, sem sabor, com que Hollywood nos vem brindando há anos. Mas porque Driver é tão bom ator que capaz de transformar o prosaico momento em que canta fortuitamente num nigthclub na melhor cena desse dramalhão. Porque canta também coberto de dilemas, cicatrizes e nostalgias. Atores em uma cena podem ameaçar o resgate de todo um mau filme.
No mais, é o melodrama certinho. Bem fotografado. Editado com correção. Trilhasonado exemplarmente, para ser visto e ouvido por toda a família. A vizinha. O papagaio. O tiozão também. Fatura-se mais com isso. Sem ser filme para maiores de 16 anos. Alguns temas musicais na medida. Um talhe editivo bem comportado. Um tanto adequado à sua mediocridade-ambiente. Um roteiro sem muita margem para dar o que pensar. É aquele tipo de dramalhão que todo mundo gosta. E logo esquece. E que dentro de dois anos deve passar na grade da Globo. Sem maior glória.
Tudo bem que uma boa novidade no filme é seguir um tanto ao largo da cama. Algo que teria sido impossível no Brasil. Seria pedir demais a um roteirista que cresceu assistindo o Canal Brasil: deixar de resumir na cama todos os problemas de um casal. Todos os dilemas menos aparentes ou mais prosaicos. Interpretar até o amarrar os cadarços do sapato do outro como uma alegoria erótica qualquer. E contraponteá-la com vigorosas cenas de nudez e sexo explícito. E, então, como podemos ler o amarrar de cadarços numa versão brasileira? Talvez a falta que faz o sexo oral, em determinadas estações do ano. Então, quem sabe para faturar melhor, congregando também a assistência dos filhos, já desde a adolescência, faz-se de conta que não há cama na vida de um...casal. Pois assim, não se mexe com a libido das crianças. E até, quem sabe, também não com a da baby-sitter. Nesse ponto, convenhamos, Woody Allen é menos hipócrita. E há sempre alguém apaixonando-se pela cunhada mais nova. Mas que termina casando com a mais velha.
Então, fazer de conta que a cama não existe por completo, talvez não seja a melhor opção. Especialmente quando o ex-marido afunda com o punho a parede de gesso do recém-apartamento de solteiro, numa conversa mais franca com a ex-esposa. E no meio há essa desnorteante civilidade a maior parte do tempo. Mediada por dois crápulas: os advogados especialistas em casos quetais. Uma civilidade cosmética. Arrumadinha. Uma em que os advogados é que assumem as melhores falas. As mais vexaminosas. As fatias mais humanas desse bolo fofo de confusões. Assumem os momentos de vexame. Aqueles em que as pessoas surgem mais perto de si mesmas, e mais divertidas, no dizer famoso de Deleuze. (Uma das poucas falas do mestre viralizadas. Talvez porque entendamos essa fala. Ou, quem sabe, porque seja tão banal quanto os leitores que a canonizaram. E, logo, seja mais dos deleuzianos que de Deleuze, essa parada). Embora haja evidências de que as pessoas costumam agir ainda pior que isso na vida real. E se de fato há alguma moral, algum tênue vestígio de moral nessa história simplória, um tanto auto-centrada, asséptica, "pubiclitariosa", da esfera do 'beautiful people', deve ser: numa separação gasta-se muito com advogados.
A fotografia, do irlandês Robbie Ryan, é correta e intranscendente. Pouco guarda do arrojo de Slow West (2015). Ou ainda da brincadeira com as grandes angulares, tão determinantes para a fatura final de The Favourite (2018). Ambas, experiências mais arejadas que esse casamento em dissolução. E bem mais filmes também, ao se levar em conta seus meros jogos cinemáticos, seus dispositivos. Nesse sentido, aliás, a fotografia é "coerente". Concerta-se bem com a mediocridade geral da trilha sonora. Será uma penúria por demais lamentável, se essa História de Casamento for destacada como o melhor filme de 2019. Um verdadeiro absurdo. Mas "coerente". Pois uma continuidade, posta na sequência de Green Book.
Que esse folhetim tenha seis indicações - inclusive a de melhor filme - passa o recibo da lambança que é o Oscar. Pois um dos melhores momentos desse melodrama mal dramado é quando se enxerga à parede o quadro de uma menina segurando um gato. Um belo felino. Um belo quadro, na sua singeleza e estranha paleta de cores. De verdes-guache, pálidos, aguados. Certa bisonhice. Um belo gato nos braços de uma garota, num instante em que gatos e garotas cumprem um papel determinante. Um belo quadro, quase primitivo. Quase de um aluno de belas-artes. Ou algo da época dos -ismos. E um quadro que a diretora de arte deve ter sonhado aplicar à parede do quarto do próprio filho. (Se tivesse um. Hoje, as diretoras de arte têm pets, não filhos. E, portanto, ela pôs esse quadro pensando mais no gato que no filho? Ou meio que já prevendo as coisas: o gato a assumir a vez do filho? Tss, hard to say). A tela se encontra no quarto do filho do casal. Um garoto bobinho, que, aliás, passa a maior parte do tempo fazendo beicinho pros pais. Caras e bocas. O tipo do sujeito bacana, que ainda vai sofrer bullying na escola.
Um filme desse também pode ser visto como bullying. Uma modalidade de. E, no entanto, deve ter sua freguesia cativa.
Talvez pela "coerência".
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