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A 'cinematicidade' subestimada


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Conversa# 102 -Ano 3- Relances do Já e do Agora[18] Joker (Todd Phillips, Estados Unidos, 2019)

Depois de se assistir Joker entende-se melhor a irritação de Scorsese com filmes de super herói. A mesma que "causou". A que suscitou um debate ferrenho nas redes. Com todos à flor da pele, excitadíssimos. E não poucos caindo de pau em cima do veterano cineasta. Quase com a mesma determinação, facciosismo (e esterilidade) de mínions e petistas. Mas essa comoção só é compreensível pelo fato de Joker ser tributário de filmes da época em que o próprio Scorsese fazia os seus melhores. No caso, falamos de Taxi Driver (1976) e King of Comedy (1982). (Neste último, aliás, há algo raro: um outro ator lograr pôr De Niro à sombra, em segundo plano: Jerry Lewis). E deve irritar a Scorsese perceber que há quase três décadas nada do que fez passa ao menos perto desses dois filmes. Ou de Mean Streets (1973). Ou de Who's That Knocking at My Door (1967). Ou de The Last Waltz (1978). E, logo, a irritação de Scorsese nada tem a ver com Joker em si. Ou com filmes de super herói. Porém com o fato de Joker lembrá-lo: ele já fez melhor atrás das câmeras. Ou seja, desnudar ainda mais a soporífera irrelevância de sua produção recente, se comparada à urgência coerente daqueles filmes. Algo que The Irishman (2019) apenas vem a confirmar enfaticamente.

Dito isso, é necessário reconhecer os méritos de Joker, que não são poucos. Desde um roteiro que soube driblar certos lugares-comuns de uma ética contemporânea e equivocada, até a originalidade com que tece a genealogia inicial do Coringa, interpondo pitadas de Édipo, do Caliban, do Heathcliff de Wuthering Heights (vivido no cinema clássico por Sir Lawrence Olivier, é bom lembrar), do Travis Bickle de Taxi Driver, e do Rupert Pupkin de The King of Comedy. Recrutar De Niro como um dos principais coadjuvantes era, pois, quase imposição. Talvez só Christopher Walken pudesse rendê-lo em paridade. E, aqui, exatamente por remeter ao duplo inescapável de Travis Bickle, o Nick Chevotarevich do Deer Hunter (1978). Um estudo da mesma personagem. Por igual, levado às últimas consequências. E, logo, tão homenageado nas sequências mais violentas de Joker quanto seu sucedâneo scorsesiano.

Assim que, comentar os ancestrais do Coringa e não incluir Chevotarevich, será defeito grave. Pois, nesse ponto, a visão de Cimino suplementa a de Scorsese. E até tem crescido mais que a do diretor de Taxi Driver. E dá plenos sinais de melhor posteridade. Pode-se destacar também a esplêndida fotografia de Coringa. O modo como se adequa à medida, para traduzir um mundo sombrio e molhado, cercado por mofo, lixo, ratazanas gigantes, e um permanente senso de subúrbio pobre, de cidade-dormitório em quadro. Ou por perto, como um bafo visual. A fotografia é de Lawrence Sher, que de longa data colabora com Phillips. Talvez a única capaz de ombrear com o prodígio que é a cinematografia de The Lighthouse. Ainda que o trunfo central da película seja mesmo a performance de Joaquin Phoenix. O filme não seria o mesmo sem ele. E este ano, qualquer atribuição de melhor ator que não passe por Phoenix será injusta.

Poucos atores podem extrair um filme inteiro do próprio corpo quanto Phoenix. Ele faz lembrar o Michel Simon de Boudu sauvé des eaux (1932) ou de L'Atalante (1934). Mas Simon, ao contrário de Phoenix, é um gigante. Uma personagem rabelaisiana. Pantagruélica. Que faz todos baterem no máximo à altura de seus ombros. (Como Saul no relato bíblico). E não só em termos físicos. Uma personagem que ameaça roubar o protagonismo no primeiro plano em que surge. Simon é a perfeita encarnação do 'dâimon' no cinema. Nesse sentido, é um tanto estranho que Phoenix, com seu corpo mirrado, seja a continuação espacial (e espiritual) de Simon. Ou, quem sabe, alguém no meio termo entre Simon e o camundongo Mickey. Mas é também fato que, na melhor tradição americana, Phoenix perdeu 24 quilos para fazer o Coringa.

Há que se pensar também em algumas contradições. No geral, tendemos a achar que os gordos são mais espirituosos e bem-humorados. Assim reza o clichê. A lenda. O pré-conceito. E é completamente impossível pensar sem conceitos prévios. Logo, é bom não confundi-los com preconceitos, tal como utilizamos o termo na seara identitária...Historicamente se tem associado aos gordos algo da ordem do riso. Há a tradição do Rei Momo, etc. Mas, desde O Gordo e o Magro, o mais engraçado é o magro. Oliver Hardy funcionando mais como um escada - e que escada - para Stan Laurel. Além disso, o vagabundo de Chaplin, homenageado no Coringa, passa longe dos muitos quilos. Assim, é quase orgânico que o filme brote das costelas aparentes de Phoenix. De seus espasmos e contorções. De seu irremissível anti-heroísmo. De seu narcisismo improvável conjugado à infinita tristeza e consciência de o quanto a vida, para ele, não tem remissão. Nesse sentido, Arthur Fleck é Gregor Samsa. É da ordem do absurdo. No outro, no de extrair o filme do corpo, ele é como o camundongo Mickey, e faz todo um mundo saltar de dentro de si. De sua esqualidez. Como de fato o faz literalmente, em truques baratos de prestidigitação. E, em certo sentido, sua genealogia é bem mais sumarenta que a de Bruce Wayne. Por mais dionisíaca.

Há também muito e bom cinema no Coringa, além da performance memorável e de muita esquizofrenia no protagonista. Dependendo quando e como se olha para esse anti-herói, pode-se encontrar nele tanto Liza Minnelli quanto Michael Jackson. Para não falar de Chaplin, Barbra Streisand, Woody Allen e Bruce Springsteen. Além, evidente, de toda uma linhagem de freaks, sociopatas e desajustados, extremamente solitários e violentos. Capazes de massacres terríveis, com um rifle ou escopeta à mão. Um estudo desses tipos se dá de modo involuntário em outro filme da safra: Richard Jewell (Clint Eastwood, 2019). Então, parece pouco produtivo que se deprecie os méritos de filmes em torno de super heróis.

Super heróis, em termos de ficção, não constituem instâncias menores de indicar realidades. Ou o fato de derivar tanto dos filmes de Christopher Nolan obrigatoriamente faz do Coringa um refém, uma cópia. E, nesse ponto, é possível discordar de Scorsese. Respeitosamente. Gotham City é Nova York. Cerradamente. E uma trama passada nas slums da Big Apple, durante os 1970 tardios, surge bastante sombria na imagem, com seus excessos de grafitos, gangues, maus serviços, violência, lixo e porcarias por toda parte. Uma cidade conspurcada, sórdida. Assaltada por uma subcultura classe C. A qualquer momento se tem a impressão de que se vai ouvir Anitta. Ou Linn da Quebrada. Ou Pablo Vittar. Ou Jojo Toddynho. Ou uma ninharia qualquer do tipo. Uma cidade violentada pelo medo, os desníveis sociais, a pobreza endêmica da era Reagan. A Gotham City de Joker conta mais da Nova York nos anos 1970 e início dos 1980 que muitos documentários.

O filme é também perspicaz o suficiente para quebrar com certa condescendência ética um tanto obtusa. Nele, um trabalhador branco e pobre é violentamente agredido por uma gangue de jovens negros. Um tanto fortuitamente. Agridem para se divertir. Por esporte. Não é algo tão comum de se ver em filmes hoje em dia. Nestes, os negros são invariavelmente vítimas. São bons desde o berço. Tendem a heróis. Ou mesmo super heróis. Quase não existe fealdade em torno ou produzida por eles. E não há quase nenhuma contradição quando são referidos. Ou mesmo nos filmes em que se autoreportam. E, se há essa fealdade, ela é produto de brancos. Da tirania dos brancos sobre os negros. Geralmente, os afro-americanos têm surgido na tela, nos últimos tempos, como dândis. Como gente mais, digamos, sofisticada, endinheirada. Ou ao menos mais sofisticados que os latinos. [Ainda não chegou a vez dos latinos serem dândis. Talvez daqui a três décadas].

Como o pianista do Green Book, p. ex. Logo, tanto essa violência dos negros quanto a própria pobreza e indigência cultural "classe C" deles - assim como dos caipiras recém-chegados e dos brancos pobres - numa Nova York de crimes e violência recorde, surge como um dado realista até corajoso. Pois reafirma uma realidade tal qual era. E não tal qual gostaríamos que tivesse sido, como acontece nos filmes a-históricos de Tarantino ou de Sofia Coppola. (Isso que é levado ao delírio por Jojo Rabbit). E é como se o Coringa dissesse: "as coisas eram assim, não assado". Um dado, aliás, que não será reparado historicamente jamais. Tal pobreza. Tal condição subalterna, cultura guetificada, à margem; tal passado indigno, de escravo; ou de uma cidadania de segunda classe. São fatores para os quais, a rigor, não tem reparação histórica. Que não têm sido reparados nem mesmo pela melhoria sensível das condições materiais dos afro-americanos e de seus guetos, ao longo das últimas décadas. Pois eles prosseguem tão segregados quanto no passado. Apenas mais prósperos.

É algo similar aos irlandeses em meados do séc. XIX, p. ex. Metade da população da Irlanda, ainda sob o domínio inglês, morreu de fome então. Hoje em dia, ingleses e irlandeses convivem bem. (E a renda per capita da Irlanda é até maior que a do Reino Unido). Mas essas melhorias não fazem com que metade da população da Irlanda não tenha morrido de fome, cento e setenta anos atrás, quando o país era praticamente uma colônia inglesa...E, nesse caso, ao contrário da situação dos negros, as tensões étnicas são obviamente bem menores. Mas, bem entendido, nenhuma política de revisão ou reparação histórica jamais trará de volta os que morreram de fome.

Então em relação à história há filmes coerentes e incoerentes. Em épocas vocacionadamente justicialistas diante de Clio, como a nossa, isso é importante. Críticos ignorantes do conceito mais básico de história, atiram-se a lê-la com um tremendo ímpeto de reparação social. E terminam na lacração. Sem argumentos. Logo, é de se temer e de se olhar com desconfianças e suspeitas tais épocas - a nossa entre elas. Nelas há grandes expurgos e caças às bruxas. As pessoas desejam realizar no presente uma espécie de vingança definitiva dos crimes e injustiças acumulados historicamente. Como nos anos 50, em nome da direita. Ou como a nossa época, em nome da esquerda e das minorias, das mulheres, dos negros, dos imigrantes, dos gordos, dos que sofrem bullying. Como fosse possível viver numa sociedade em que houvesse humor à prova de bullying...

Dois filmes do Oscar tratam diretamente da questão da paternidade. Dos traumas irreparáveis que derivam dela. Ou de suas anomalias de origem. Suas cicatrizes. Esse par de filmes põe em foco a relação Pai/Filho (em ambos os casos, filho homem): Joker e Ad Astra. Mas essa tensão está melhor conduzida em Joker. Apesar de seguir inicialmente melhor proposta no filme de Gray.

Hollywood seria mais feliz, se todos os blockbusters portassem a cinematicidade de Joker.

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