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O filme escondido


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Conversa# 103 -Ano 3- Relances do Já e do Agora[19] A Hidden Life (Terrence Malick, Estados Unidos, 2019) - cin. Jörg Widmer

Parte I - Sobre um Filme Escondível

O maior virtude de A Hidden Life constitui-se também em seu maior problema: o filme dista léguas de um épico histórico convencional. Para bem e mal. Mas mais para bem. Dentro de uma fotografia deslumbrante e grande-angulada, personagens se movem quase sempre em torno de tarefas banais, cotidianas e, até certo ponto, entediantes. Essa fotografia onde moram - em locações mais que em estúdio, como demanda o figurino de seu diretor - podia ter sido elaborada por Emmanuel Lubezki. Mas o cinematografista é um antigo colaborador de Malick: Jörg Widmer, ainda que, nessas colaborações passadas, não exatamente como fotógrafo.

Não causa espanto que esse esforço de boa cinematografia não seja sequer lembrado por Hollywood para premiação. Especialmente num ano em que os indicados a melhor fotografia - com a exceção de The Lighthouse e até certo ponto de Joker - nada trazem de ousado. Ou sendo mais correto, apenas refratam velhas fórmulas. O que inclui copiar e citar bastante. Mas arriscar pouco.

Por meio dessa fotografia, muita coisa é posta em xeque. Nesse modo como Malick dá a ver uma pequena comunidade do Tirol às vésperas e no transcurso da Segunda Guerra. A vida na montanha apaixona. O permanente contato com a terra, com a natureza, seus ciclos. Rodas d'água a mover moinhos de grãos e serrarias. Mundo pleno de utensílios mecânicos. Arado lanhando solos. Vacas mugindo. Mundo artesanal, feito de madeira e couro. De suor, estações, paciência. Contemplando altos picos com neves eternas. Mundo frugal. Austero. E florestas de coníferas nas vertentes. Procissões em dias santificados. E um belo campanário sobressaindo-se. Mas também um mundo próspero o bastante para sugerir certa auto-suficiência. Não há mendigos. Ou contrastes sociais dramáticos. Todos vivem da terra, e para ela. Nela trabalham até velhice. E nela são sepultados. A igreja do povoado segue ao centro da vida. Há uma sorte de derivação orgânica da cidadela medieval nesse vilarejo perdido no alto das montanhas.

De repente, esse idílio rural é abalado por complicações geopolíticas lá debaixo. Com o Anschluss, a Áustria é anexada à Alemanha. Os austríacos vêem-se então obrigados a servir e combater no exército alemão. E, mais que isso, prestar um voto de lealdade e obediência ao Führer.

Após alguma hesitação inicial, Franz Jägerstätter (August Diehl), um fazendeiro local, recusa-se a prestar esse voto de obediência ao ditador germânico. Algo que o teria beneficiado sobremaneira nos negócios e até na política do vilarejo, onde era visto como potencial candidato a prefeito. Os problemas começam a se avolumar a partir de então. Ainda que, aqui, mais dramática que a força dos mecanismos burocráticos e estatais seja mesmo o modo como a comunidade converte Jägerstätter numa espécie de pária, de bode expiatório. Isso respinga sobre sua família: a esposa, Franziska, apelidada Fani (Valerie Pachner), a cunhada que mora com eles, a mãe de Franz, além das três filhas do casal, ainda crianças.

O filme é baseado em fatos reais. Jägerstätter foi canonizado pela Igreja Católica em 2007. Por seu quase conterrâneo, o bávaro Bento XVI. É visto, assim, como mártir. Mas, o mais curioso, é que tal evento - a canonização, a condição de mártir - ao invés de suscitar admiração, certa reverência, desperta mais ceticismo que qualquer outra coisa. Talvez porque vivamos num tempo alérgico a santos e mártires. E isso equivale dizer: alérgico a seus sacrifícios, renúncias, martírios. Alérgico, enfim, a seres que não se negam exames profundos, dramas de consciência, abismos da alma. O ascetismo como exercício espiritual. Nada mais distante de nossa sensibilidade moderna do que essa perspectiva, do que mulheres e homens assim.

Por outro lado, nem sempre o tratamento cinemático empregado por Malick para figurar Jägerstätter, sua família e o entorno parece ser o mais coerente. Ou à altura do assunto. Enquanto mero filme, não se pode dizer que A Hidden Life supera os melhores esforços prévios do diretor. Supera Badlands (1973), por exemplo. Passa distante disso. Não possui a congruência cinemática de Badlands. Ou o empate entre duração e imagem que se vê nessa esplêndida estreia. O calibre de cada personagem adequando-se à disposição geral da trama regida por um casal em fuga, na balada, e deixando atrás de si um rastro de crimes. Sim, essa distinção, essa congruência do tempo diegético, esse equilíbrio tênue e bem logrado entre o narrado e o tempo de narração faltam a A Hidden Life. Uma maior afinação da medida, do instante oportuno, do corte na jugular. Nem sempre o voice-over segue tão bem aplicado quanto em Badlands. Ou mesmo em Days of Heaven (1978). Nem sempre essa voz onipresente guarda a coerência e a sabedoria de bem conduzir a narração dos fatos.

Talvez o defeito mais grave do filme seja mesmo certo descompasso entre a decisão de Jägerestätter, não prestar obediência a Hitler, e o seu cotidiano na fazenda e no vilarejo. Algo segue mal resolvido nessa equação. Em termos de fluxo e de tempo. Em termos do que nos é dado saber da vida desse fazendeiro escrupuloso. Há certa ausência geral de humor. E, no atacado, essa ausência de humor, geralmente trazida pelo caso concreto, pelo raio do imprevisto, pela anedota - nem sempre cômica - costuma aproximar demais uma narrativa da defesa de uma tese. Ao que parece, a resolução de contrapor-se aos nazis assume de imediato o protagonismo da vida. E não se vai infiltrando no cotidiano e o tornando insuportável, como costuma ser. Na vida real. Ou como deve ter sido na intenção do diretor.

Ainda assim, só uma série de fatores, por demais complexos, podem em parte explicar as razões de um filme tão distinto sequer ser indicado a algumas categorias na noite do Oscar (2020). Como as de melhor direção, melhor roteiro adaptado, ou melhor direção de fotografia. (Uma digressão mais específica sobre as razões de o filme não ser indicado a uma única categoria compõem a Parte II desta conversa).

Como destacado por alguns críticos, falta a esse filme de Malick certa tensão. Franz Jägerstätter assoma quase desde o princípio seguro demais das próprias convicções. E essas convicções prosseguem inabaláveis até o desfecho. E não há, portanto, reviravoltas dramáticas. Daquelas que costumam fazer a alegria dos roteiristas clássicos. E causar espécime e espasmos de surpresa e prazer na audiência. Uma audiência que, por vezes narcisisticamente, vê sua "inteligência" compensada ao acompanhar tão finas reviravoltas na trama. Como num filme de Hitchcock. Ainda que essas reviravoltas - factíveis dentro da ficção e do gênero desses filmes - quando examinadas melhor, pareçam mais rematados delírios. Em A Hidden Life faltam as momentâneas 'belief suspensions', tão caras a quem vê filmes. Sobretudo filmes de suspense. E, então, esse espectador, ao modo de cãozinho bem adestrado, sai correndo à cata do biscoito. E volta com ele, salivando de prazer, o rabo em acelerado limpa pára-brisas. O equivalente ao biscoito canino, aqui, são esses twists and turns da trama. Aquilo que exalta a perspicácia do espectador. Nesse sentido, sim, faltam alguns biscoitos caninos no pacote de A Hidden Life.

Como se não bastasse, a esposa do fazendeiro o apoia incondicionalmente. E as autoridades eclesiásticas, a despeito de cautelosas, não o desestimulam. Apenas hesitam quanto a postar-se como aliadas incondicionais. Como adversárias frontais do novo regime. Até por razões estratégicas. E, no entanto, não se pode condenar um filme por essa ausência de tensão. Tensão, aqui, vista como algo formulaico, protocolar cinematicamente. Algo da gramática de filmes. Algo que "todo filme deve ter". Como se o conceito de filme se reduzisse à forma hollywoodiana. Àquilo que de mais protocolar Hollywood e o cinema clássico deram a ver.

Ao contrário desse hollywoodismo, A Hidden Life é longo e apologético. "Lento" para padrões mais corriqueiros. Além disso, possui aquele distintivo selo de feitura à Malick: privilegiando recortes da natureza, que nos lembram uma sublimidade rente ao inexplicável. Ao numinoso. E que tenta mesmo conjurá-lo. Pela beleza. Nada mais distante de nossa sensibilidade atual. E há até uma cena em que o protagonista conversa sobre iconografia com um pintor de imagens sacras. Essa cena nos lembra nitidamente do Andrei Rublev (1969), de Tarkóvski.

Uma nota de louvor deve ir para a partitura original, escrita por James Newton Howard. Ela possui 40 minutos e reparte as quase três horas de filme junto com Bach, Handel, Dvorak e Gorecki

Os projetos de Malick costumam demorar bem mais tempo para serem gravados e pós-produzidos do que a média. Para se ter uma ideia, ano passado lamentou-se a morte de Bruno Ganz, o veterano ator suiço. E Ganz, que desapareceu das telas um pouco antes de morrer - no caso, anos antes - aparece em A Hidden Life, num papel secundário. Faz um oficial alemão que preside um tribunal militar. Visivelmente, parece velho demais para o papel. Quase um ancião sob o uniforme e os coturnos nazis. E, ainda assim, foi um de seus últimos papéis. Ganz morreu poucos dias antes do lançamento de A Hidden Life, que se deu no Festival de Cannes. E, antes, disso já havia desaparecido das telas.

Um tanto inadequada, como estratégia, é a reincidência de um clichê: os protagonistas falam inglês entre si, enquanto o restante da população do vilarejo vocifera em alemão contra eles. O inglês é a língua da civilidade, da concórdia. A língua da conversa em família e entre amigos. A língua da conversa. O arco que se interpõe ao muro. A ponte que emenda um lado ao outro. O alemão é o contrário disso.

Essa estratégia soa bem desgastada: o inglês como língua dos civilizados, o alemão - sempre usado em insultos, ao modo de latido articulado - como a língua da truculência, da "troglodícia", da barbárie. A língua dos carrascos. Ainda que no plano das ideias, mesmo os de língua inglesa retirem do alemão, até hoje, a fonte de muitas de suas melhores ideias... E, é bom que se diga, não só daqueles alemães que durante o período nazista, ao modo do austríaco Jägerstätter, se opuseram ao totalitarismo. Mas até de alguns - como Heidegger e Carl Schmitt - que simpatizaram abertamente com o regime de exceção...

Ou o cúmulo do cúmulo, no caso específico do filme: o protagonista, alguém que se interpunha à barbárie nazista de forma dramática, igualmente falava...alemão. O mesmo alemão dos insultos.

PARTE II - Contexto da Rejeição

Os problemas suscitados por A Hidden Life começam bem antes do filme. Pois há, de momento, uma indisposição geral diante de filmes que tratam da Segunda Guerra. Uma espécie de ressaca. O tema fica cada vez mais perspectivado, e, como foi muito assuntado no cinema, percebe-se agora que nem sempre de um modo razoável. E, em especial, aqueles que versam sobre nazistas. Títulos como Schindler's List (1993), La vita é bella (1997), Inglorious Basterds (2009) e o recente Jojo Rabbit (2019) não prestaram grande favor à história. Seja por edulcorarem maniqueisticamente realidades muito mais complexas; seja por ficcionalizar tais realidades de um modo pueril, absurdamente irresponsável. Ainda que o fim último fosse o gracejo, o riso.

Parece que há instâncias impermeáveis à comicidade. Ou ao menos a certo tipo de comicidade - com a ressalva: Chaplin lidou bem como o caso à época em que era o caso. Mas, no caso, se essa impermeabilidade não passa tanto pela hierarquia ou pela iconografia nazista, passa fortemente, no entanto, pela relação dessa hierarquia com suas vítimas. Nesse sentido, autores como Paul Celan e Primo Levi ainda não chegaram ao cinema. Mesmo que já tenha havido tentativas, débeis ainda, de adaptar roteiros a partir dos relatos de Levi. Do testemunho de Levi. E quando se vê disparates como Jojo Rabbit, pode-se lembrar de uma frase que parece escrita no subconsciente dos que viveram a Shoah: "ninguém pode testemunhar pela testemunha". Ou quem sabe, documentários como Nuit et brouillard (1956) e Shoah (1985) saíram-se melhor que a ficção no tratamento do tema.

Porém os nazistas fizeram vítimas entre muitos povos, etnias, condições humanas e posições políticas. E talvez se tenha dado excessiva ênfase ao caso dos judeus. Não que essa ênfase não fosse justificada inicialmente. E, no entanto, ela foi quase monopólica em termos de representação. Em termos de calar fundo na memória coletiva posterior. De criar um alerta, uma zona de luto, e uma perspectiva de reflexão. Um mais que bem-vindo espaço da autocrítica. E, todavia, entre as novas gerações, poucos sabem que morreram mais católicos poloneses e soldados soviéticos nas prisões e campos de extermínio do que judeus. Assim como entre as vítimas estavam ciganos, homossexuais, Testemunhas de Jeová, gente com deficiência física de alguma ordem, dissidentes políticos, sacerdotes católicos e ortodoxos… Por sua vez, a força da memória literária e audiovisual da Shoah deve-se à afluência dos judeus. Ao fato de pertencerem a uma elite econômica e cultural. E, em especial, ao poderio que detém na mídia americana - incluindo, além de Hollywood, jornais e grandes editoras.

Logo, filmes e livros que tratam de vítimas não-judias do nazismo deviam ser incentivados. (Assim como devem ser aplaudidas as tentativas de se conhecer mais sobre outros genocídios, da Armênia a Biafra, passando pelo Camboja e pelos Balcãs e, por que não, por Canudos). Porque essas representações não existem para vítimas não-judias na mesma proporção que as há para as judias, no caso estrito do nazismo. E, evidente, para não perder essas outras vítimas - menos assuntadas - de vista. De perspectiva. E lembrar: também existiram. E até em maior número. Precisam ter a humanidade de seus sofrimentos mais ressaltada. Sofreram a agrura de campos e prisões da mesma forma. Foram cruelmente executadas. Dentro da mesma lógica de extermínio em escala planificada, industrial. Ou no mínimo em massa.

Algumas dessas vítimas, de resto, como no caso do protagonista de A Hidden Life, vinham de grupos sociais bastante protegidos. E ainda assim puseram em risco essa proteção, uma vida de conforto, segurança, estabilidade, em nome de uma forte convicção moral. Todo esse contexto explica certo mal estar. A indisposição de alguns críticos diante do assunto de A Hidden Life. E os traços desse mal estar, dessa indisposição podem ser vistos em não poucas resenhas. Por seu turno, uma parte considerável dessas resenhas nos Estados Unidos foi escrita justamente por críticos e jornalistas... judeus.

Mas há outra questão melindrosa. O herói desse filme de Malick é um católico devoto e fervoroso. E, no tempo, passamos longe daquelas épocas em que um ateu convicto conseguia encontrar alguns méritos e virtudes em alguém mais ortodoxamente religioso. E vice-versa. E, então, buscava relatar o que houve com esse outro do modo mais escrupuloso e exato possível, quanto aos fatos. O mesmo vale para um investigador de esquerda ao perceber algum mérito reconhecível e estável num personagem de direita. E vice-versa. O mesmo vale para um autor judeu diante de um gentio. E vice-versa.

Havia uma beleza nessa atitude. Um traço singular de grandeza. De algo que seguia ao específico. Que não se dobrava ante a mentira da generalidade. Que fintava o abraço no sectário. Mas, o que realmente distingue essa atitude da nossa época é o fato de no passado ela não ser assim tão rara. Ela ser tomada quase de maneira automática. Como numa predisposição de consciência. De consciência coletiva mas que se refratava para as consciências individuais. Uma espécie de default moral. É como se as pessoas intuíssem que o conceito de verdade derivava de algo que seguia fora de suas consciências. Ou que as precedia. Ou ainda que era maior do que elas. Maior do que a limitada compreensão que elas tinham das coisas. Da verdade. De como a formulavam ou criam. Como na fórmula de Tomás de Aquino: Veritas sequitur esse rerum… [A verdade segue a existência das coisas…].

Entre outras, com isso, o Doutor da Igreja aponta para a conformidade entre a verdade e dados/ fatos/ ações/ circunstâncias anteriores a ela. Dados, fatos, ações, circunstâncias, especificidades que a sedimentam, pois são os alicerces mesmos da verdade. Logo, a história existe justamente para investigar a coerência e a plausibilidade desses dados e fatos "anteriores". Como num 'inquérito', algo que remete ao teor geral da palavra em grego: ἱστορία. E não para comprovar uma tese "anterior". Uma tese anterior, no caso, não constituiria mais que um veredicto antecipado. E, assim, fazer uma amoldagem desses dados e fatos à anterioridade da tese. É como se faz descaradamente hoje em dia, e com ampla sanção acadêmica: fazer dados e fatos caberem numa espécie de defesa cega dos gostos, confissões de fé ou convicções teóricas e/ou ideológicas do investigador em questão. Em outras palavras: uma visão sectária amparada em certo narcisismo identitário. Amoldar esses fatos a um socialismo, ou a um feminismo, ou a um fascismo, ou a uma xenofobia, ou a outras teses de minorias identitárias. Um tanto toscos nos seus argumentos. Esse tem sido o modo de ação por excelência dos ativismos identitários nos 'diascorrentes'. Ao menos dos mais exaltados deles.

Afinal, se por hipótese, num episódio isolado, num caso pequeno, de exceção, numa raspa de micro-história, um grupo de judeus tivesse trucidado covardemente um grupo de alemães que tinha se comprometido comprovadamente a defendê-lo; era assim que o episódio deveria ser relatado posteriormente. Ressaltando a ignomínia e a ingratidão dos judeus, desque comprovada a má fé em questão. Ainda que o investigador soubesse, a posteriori, quem de fato trucidou quem, quanto e como, para além do episódio, em termos de macro-história.

Daí que hoje em dia nutre-se uma profunda aversão e má-vontade diante de certos vetores sociais. E criou-se também uma vigorosa mentalidade transnacional que responde por um pujante discurso acadêmico. Algo que praticamente não abre espaço à contestação. Esse discurso auto-considera-se a vanguarda da consciência globalista de esquerda, laica e pró-minorias identitárias. E é bastante alerta quanto a policiar e silenciar quem dele diverge. Ou seja, mantém uma visada panóptica sobre qualquer dissidência. E trata de silenciar essa dissidência por qualquer meio que justifique seu fim. Então, o problema, aqui, é que essa vanguarda globalista costuma ser bastante inflexível diante de alguns vetores sociais. Diante de tudo aquilo que a põe em xeque. Que a põe em escrutínio e vertigem.

A religião é um desses vetores. Mas não qualquer religião. Algumas religiões exóticas - como o budismo, o sincretismo africano e mesmo o islamismo, a depender do contexto - surgem até bem-vindas pela onda globalista. Por exemplo, o islamismo do migrante parece ser encarado quase como algo diverso do islamismo daquele que habita um país governado teocraticamente. O islamismo do migrante, parece reter algo sagrado e defensável, ao contrário do outro, institucional, em que ainda se extirpa o clitóris de adolescentes ou se apedreja mulheres adúlteras, como no Iêmen ou no Sudão. E, no entanto, é a mesma doutrina. E um indivíduo que sai de um estado teocrático para morar numa democracia no Ocidente, nem sempre o faz por discordar da teocracia. Muito ao contrário: mesmo que discorde dela, seus valores éticos, seu esquema de pensamento estão profunda e indelevelmente marcados por ela.

Algo análogo ocorre com o budismo, ou as religiões indianas (Hare-Krishna), aceitos com muita celeridade e acriticidade histórica entre os esotéricos. O alvo central desse pensamento laico, pós-moderno, é mesmo o cristianismo. E, em específico, o catolicismo, sua forma mais ampla, universal e hierárquica. Pois o que essa nova onda de pensamento identitário de esquerda mais almeja é justamente apropriar-se dessa instância universal do Catolicismo. É propor-se não como alternativa universalizante, mas como única saída "justa" para uma concepção universalista. Ainda que a democracia, como a conhecemos hoje tenha medrado justamente nos países cristãos do Ocidente. (De onde foi exportada aos poucos países do Oriente onde vige de fato, como o Japão e a Coreia do Sul). E esse sentido de democracia surgiu do senso de autocrítica aflorado muitas vezes de dentro da própria instituição mais hierárquica e centralizadora: a Igreja Católica. Ou ainda que ao discorrer sobre a Inquisição, o argumentador omita ou desconheça os crimes vis praticados pelos protestantes, pelos islâmicos (no caso, até hoje em países como a Arábia Saudita ou o Iêmen), pelos budistas (em guerras intestinas na China e na Índia que mataram milhões), bem como pelo estado secular e moderno.

Ora, esse estado laico e moderno, só nos meses do Terror da Revolução Francesa, matou mais que a Igreja Católica em todos os séculos de Inquisição. Mas isso, claro, não é dito nos documentários, nos filmes de ficção, nos romances e poemas, nas escolas... Porque não interessa ao modo default como contemporaneamente encaramos a questão do estado. Ou a relação entre estado e religião (E isso passa longe de uma defesa do estado religioso. Porém colhe subsídios para a constatação de um modo padrão de pensar o Estado Laico moderno como a panaceia de todos os males. Mesmo que hoje em dia, estado seja grafado com maiúscula. Religião, não).

Mas a Revolução Francesa deu-se no final do século XVIII. Depois dela ainda viriam Napoleão, o instável século XIX, mortandades ao redor do globo, metade da população da Irlanda morrendo de fome... E tudo isso sob os auspícios do estado moderno e secular. Ainda que vozes tão lúcidas, como a de Simone Weil, tenham se insurgido contra essa adoração do estado - à direita, à esquerda. Contra a barbárie colonial. Contra o rei da Bélgica produzindo horrores no Congo, e por aí vamos. Até chegar a Stálin, Hitler, Franco, Mao, ditaduras de direita e de esquerda na América Latina, Sudeste Asiático, África, Leste Europeu...

Por uma outra via, filmes como o de Malick também incomodam. Pois há quase uma utopia no modo de representar essa fazenda nos arredores de uma pequena vila, no alto das montanhas tirolesas. Talvez haja demasiada simpatia nesse panorama. A paisagem é de uma beleza ímpar, pré-industrial. O modo de vida é idílico, saudável, acolhedor, bem mais razoável em termos de sustentabilidade que o nosso. Todos parecem integrar e nutrir um espírito colaborativo.

A sociedade é ainda de pré-consumo supérfluo. Há uma organicidade na vida comum. Certa uniformidade de valores: a igreja local é o centro de tudo. Todo um mundo artesanal, construído em madeira e couro diz presente. Mas, aos olhos de hoje há também um grave problema nessa comunidade: quase todos são loiros, de olhos azuis. Não há imigrantes à volta. O que há é uma impressionante homogeneidade étnica e religiosa. E essa homogeneidade aponta para um dos "vilões" de nossa época: o homem branco. E, ainda, pior no caso do filme de Malick: homem, e não mulher... E, portanto, um dos "defeitos" desse filme, de acordo com certa ética acadêmica contemporânea, seria apresentar um macho branco não tão vilão assim. Ora, hoje em dia isso é quase anátema em qualquer universidade que se preze. E ainda mais um macho, branco, hétero e, como se não bastasse, católico...

Talvez então haja alguma razão no ressentimento que certas populações de países europeus sentem ao ver que lutaram tanto por estabilidades e garantias como as que vemos no filme. Para a construção de um universo de jogo político que contém a possibilidade de uma dissidência pertinente e coerente. Pela construção dessas regras de jogo estáveis, relevantes, legítimas, bem assentadas. Democráticas. E, então, levas de imigrantes chegam de uma hora para outra, e desestabilizam tudo. Põem em xeque toda essa construção. Um tanto como a moral católica põe em xeque, em determinados aspectos - e muito especialmente em seus excessos guetificantes - os valores menos luminosos do identitarismo étnico, feminista, lgbt ou de outro tipo. Afinal, o apelo católico é muito mais universal, e se estende a cada uma e todas essas identidades reunindo-as sob o mesmo aprisco.

Isso implica que devemos abraçar teses xenófobas? Ou vociferar diante de feministas e ativistas lgbts? Não. Longe disso. Indica só que há um mérito nessa construção social dos países ditos pós-industriais. E que esse mérito deve ser levado em conta na hora de refletir sobre tais questões. E não encarar essas questões - o direito ao direito - tão só do ponto de vista de quem merece ser assistido, protegido: os forasteiros, os que estão chegando, os pobres, os refugiados, os indefesos. Sim, esses devem contar com nossa solidariedade. E até com a prioridade dela.


Mas a nossa solidariedade também não pode fechar os olhos para o outro lado. Pois nem sempre tal estabilidade, tal constructo histórico, onde existe o espaço para a contestação, deriva de exploração, colonialismo ou neocolonialismo. Isto é, há muitos méritos na construção dessa estabilidade. Um esforço coletivo legítimo, precípuo a determinados povos e nações. Há instantes de luta e coragem investidos nessa conquista por algumas garantias democráticas, ao longo da história. Algo que se estende por gerações. Que deriva de processos históricos longos, penosos. E seu fito é justamente o de manter alguma estabilidade no que diz respeito a modos de vida, liberdades de consciência e expressão, certa segurança, além da emissão ao futuro de alguns valores derivativos.

Afinal, foi justamente para preservar determinados valores sociais num momento de ameaça, num ponto de dilema, numa inflexão, que se combateram as grandes guerras. E, logo, parece hoje injusto que alguns países sintam-se como que invadidos por levas de imigrantes que não só não participaram dessa construção, ao longo de gerações, como também frequentemente não partilham dos mesmos valores do país para o qual migraram. Valores que procedem de uma longa convivência comum em que os recém-chegados estavam ausentes. Ou, indo além, esses recém-chegados por vezes até abraçam valores diametralmente opostos àqueles defendidos constitucionalmente nos países de chegada.

No fundo, o que se quer dizer: a solução passa mais por diálogo. Por conversa. Mais por ouvir partes, do que ,declarar-se unilateralmente por uma delas. E decretar que a outra é uma vilã. Ou que é a dominante. A elite capitalista, etc. E, assim, talvez o cidadão de um país estável passe longe do fascismo, ao temer um excesso de imigrantes... Ou ao temer que esse imigrante pense de forma muito diversa da sua. O que ele teme no fundo é a derrocada de uma estabilidade arduamente construída ao longo de séculos. Para a sua e para as gerações futuras.

Essas são algumas das questões que tornam problemática - ou mesmo antipática, refratária - a recepção de uma história como a contada em A Hidden Life. Contada com consequência e seriedade. Ela segue com um protagonista ambíguo aos olhos do "heroísmo identitário". Um protagonista cercado de valores que deixaram de ser atrativos, de estar em moda, para boa parte dos que defendem a globalização de modo intempestivo. Ou um tanto acrítico. Na academia ou fora dela. Sem ater-se, no entanto, ao outro lado da moeda. Ou seja, sem sopesar as evidentes perdas e percalços à reboque desse processo de mundialização da economia e da cultura.

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