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Mais glória que dor


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Conversa#104 -Ano 3- Relances do Já e do Agora[20]

Dolor y Gloria (Pedro Almodóvar, Espanha, 2019), cin. José Luis Alcaine

Em toda sua idiotia, "por que gostamos de assistir à vida dos outros no cinema?" é uma pergunta que se encontra no portal Uol esta semana. Assistir ao vídeo que responde à indagação não vai nos tornar mais sábios. Mas, o que impressiona aqui é a conclusão de que todos gostam de cine-biografias. E isso não é verdade. A cine-biografia tem-se constituído num gênero mais e mais problemático. E não à toa produzido alguns dos mais lamentáveis filmes dos últimos anos. Caso de Bohemian Rhapsody e Rocketman. Tais filmes quase invibilizam o maior trunfo que ostentam: a recorrência das canções. Mas ao menos neles, nas cine-biografias de músicos ou pintores há os temas e as telas.

Numa das cenas mais hilárias de Dor e Glória, Salvador Mallo (Antonio Banderas), um reputado e veterano cineasta, entra num colóquio com a Cinemateca de Madrid por celular. E, mais, travando simultaneamente acerba discussão com o ator que protagonizou um de seus filmes trinta anos atrás. Justamente o filme que acabou de ser projetado na cinemateca, e ao final do qual o aguardavam presencialmente, para debate. E, então, suas falas ao aparelho são postas diante de um microfone que busca dar conta de um sala de exibição lotada. E até de perguntas vindas da audiência. A solução encontrada pelo curador parece visivelmente cair nas graças de Mallo. A anedota é tão boa que parece baseada em um fato real.

Mas no geral, o filme nos revela uma personagem bem mais contida e sóbria do que essa cena expõe. Ou sua filmografia faz supor. Ou ainda certa fama, um tanto exagerada em tabloides e revistas de gossip. Especialmente quando, após anos de franquismo e coisas represadas, a cena madrilenha, tendo Almodóvar à testa, notabilizou-se como uma das mais animadas da Europa à altura dos anos 1980. E tomem excessos.

Sim, há matéria de bom riso neste suposto filme autobiográfico. Mas o gênero em si surge tão suspeito quanto o recém-gênero que o Youtube transformou em coqueluche: o vídeo de reação. Ora, qualquer filme autobiográfico corre um sério risco: o de tornar-se apenas um vídeo de reação. Ou seja, uma peça onde há doses excessivas tanto de narcisismo quanto de certa auto-condescendência. Além claro de todo o artifício que ocorre no vídeo de reação: o de saber-se registrado em som e imagem naquele preciso instante em que se auto-assiste. E, em boa medida, é o que ocorre com esse filme de Almodóvar. A começar por ele ser representado por...Banderas. Covenhamos. E, sobretudo, porque quase nunca ele assume uma postura irônica, presente na cena da cinemateca. E, no entanto, quase em nenhum outro ponto topamos com certo distanciamento paródico de si. Digamos que o objetivo do filme seja então o de interpor-se como um um auto-retrato zeloso, sincero. Isso num tempo em que essa possibilidade é nula. Nenhuma. Nesse rumo, o filme autobiográfico tem de se mostrar muito perspicaz para evitar reproduzir os males da biografia autorizada. E é precisamente o que esse filme termina por ser: uma biografia autorizada. Quem sabe, demasiado autorizada.

Como retrato geral de seu autor, Dolor y gloria surge um tanto concessivo. Ou mesmo arrumadinho, diante dos filmes pregressos, da fama que precede a personagem. E talvez haja nele uma preocupação em reforçar o lado humanista do realizador espanhol. Ele era leitor voraz. Desde cedo interessou-se por belas artes, música, literatura. Veio de família pobre. Deve sua formação a um seminário católico. Nutriu relação intensa e controversa com a mãe. E, na infância, habitou um porão que mais se assemelha a uma catacumba.

Há alguma exposição. Quando se revela um hipocondríaco compulsivo. E, mais ainda, ao se propor como junkie. Um junkie moderado, e irremissivelmente tardio. Digamos, de um modo menos digno que William Borroughs. Mas também alguém cujo vício aparentemente lega menos problemas a quem está por perto que Borroughs. Alguém que costumava consumir álcool, cocaína e anfetaminas em quantidades industriais. Ou, pior, termina já na maturidade viciando-se em heroína. E de modo patético. E tendo de ir buscar a droga em pontos de venda suspeitíssimos de Madrid.

Ainda assim, esses excessos acabam limitados, de uma ou de outra forma, pela maturidade e uma série de mazelas físicas e psíquicas. Não há possibilidade de muitos heroísmos na velhice. E até a comicidade, rápido, perde seu vigor. E fica a sensação de que há algo de pudico quando a conversa gira em torno da cama. O grande tabu. Talvez porque na ficção haja mais liberdades para versar sobre o tema. E, logo, o reencontro com um velho amor do passado pareça um tanto insípido. Ou no mínimo bem regulado pelo manual de posturas. E, claro, pelo clichê.

Ainda assim, é um filme correto e divertido. Embora dificilmente figurando entre o melhor da extensa obra do diretor espanhol. Ou ainda a melhor cine-(auto)biografia dos últimos tempos. Ou sequer algo comparável a Mekas, a Marker. Ou mesmo a Moretti. Para recordar, na letra m, três cineastas que trabalharam com memória de modo mais vívido. Entre as memórias de Almodóvar surgem balanços e ajustes de conta. Muito pouco factíveis. Ou complexos. Os vínculos com a mãe, com a secretária pessoal, com um de seus atores do passado, e com esse amante de longa data, desaparecido nos desvãos do tempo; assomam na imagem inverossímeis, faltos de casos, concretudes, anedotas. Ou excessivamente aclichesados e simplificados. A anedota do início, concreta como soa ser, é exceção. E, ainda assim, é um Almodóvar. E possui aquela fragrância entre kitsch e perspicácia.

A fotografia é do veterano José Luis Alcaine, um dos pioneiros a iluminar com fluorescentes na Europa. Fotografou para Almodóvar Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988) e La Piel que habito (2011), entre outros. E num determinado momento ouve-se o protagonista e um amigo solfejando uma versão em castelhano de "A Noite de Meu Bem", o clássico de Dolores Duran.

É inevitável que as distâncias culturais sejam abreviadas quando um brasileiro assiste Almodóvar. O olho se instala com mais facilidade. Há uma maior familiaridade até na arquitetura. Ou no modelo dos táxis. Ou nas referências e citações. Já se está mais em casa. Há mais grades nas janelas. E casas de alvenaria ao invés de bangalôs de madeira. E é possível ver esse importante diretor como uma espécie de sucedâneo do tropicalismo, lá por Iberia. Não à toa o convite para a participação de Caetano em Hable con ella (2002).

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