Negócio da China
.. Conversa#110 -Ano 3- Relances do Já e do Agora[25]
American Factory (Julia Reichert e Steven Bognar, Estados Unidos, 2019) - cin. vários (incluindo os diretores)
(E, por tabela:)
Democracia em Vertigem (Petra Costa, Brasil, 2019 - cin. João Atala - com predominância de imagens de arquivo)
Como mero filme, American Factory bate mais longe que Democracia em Vertigem. Há uma paridade bem conduzida em seus dispositivos. Eles cimentam certa unidade básica. São raras, breves, ilustrativas as imagens de arquivo. De outro modo, quase todas as imagens e sons foram captados para o documentário, e giram em torno dos operários de uma fábrica. Mesmo quando não estão no serviço, são operários em folga, uns na companhia de outros. A fábrica está muito presente. Mesmo quando não seguem em quadro. Vamos aos poucos nos familiarizando com esse espaço, seus ruídos, certa atmosfera esparsa. Galpões recém-construídos ou reformados, que aos poucos se vão povoando de vida e alguma funcionalidade. Com suas paredes despidas e ambiência áspera. Uma atmosfera pouco glamurosa, crua, que se estende ubiquamente às casas operárias e aos espaços públicos. Muito distante de como a realidade americana assoma nos filmes de Hollywood. A decisão de usar voice-over em depoimentos revela-se acertada. Esse voice-over é aplicado à imagem do "dono-da-voz" em outro contexto, geralmente na linha de produção da fábrica. Ou próxima dela. Sabemos a quem ela pertence por alguns planos introdutórios.
A consequência dessa obsequiosa observação é o surgimento de algumas personagens. Há o remanescente dos tempos da GM, e que é capaz de fazer analogias com uma época mais cômoda, em termos trabalhistas, para os peões da fábrica. Há a recém-empregada que até pouco vivia de favor, no porão da casa da irmã, e nem por isso se nega a envolver-se com ativismo sindical. Há o veterano vidraceiro americano, que convida os colegas chineses para um churrasco, e os ensina a atirar. Ou ainda o jovem operário chinês que aprecia fumar ao final do expediente, e tem saudades da família. E há até os gerentes americanos da fábrica em visita à matriz na China. Assim como o todo poderoso CEO chinês, que não se nega a emitir pontos de vista firmes contra a sindicalização de seus operários.
Há também uma declarada simpatia à causa do sindicato. Nem sempre essa simpatia nos faz ver a situação do modo mais coerente. Ou minimamente isento. Porém, por analogia, mesmo tal parcialidade é fichinha diante do engajamento "chapa-branca", quase sectário, do documentário de Petra Costa.
É também impossível não pensar em alguns documentários clássicos quando se vê American Factory. Porque há certa poesia nesses registros de mulheres e homens trabalhando numa indústria. Numa linha de montagem. Talvez porque esse tipo de trabalho mais e mais tende à extinção. É, aliás, como uma cartela adverte o espectador quase ao final do filme.
Um dos primeiros filmes que nos vêm a mente ao cismar sobre American Factory é Glas (Bert Haanstra), o curta documental holandês que foi distinguido com um Oscar em 1958, e capta certas similitudes entre gestos mecânicos e o cool jazz. E, claro, porque Glas se passa numa fábrica de vidros.
Porém a fábrica de vidros retratada em American Factory não é tão poética e evocativa como a pequena vidraçaria documentada no filme de Haanstra. Esta está mais para a oficina, para a artesanalidade que para a linha de montagem. Já em American Factory, a coisa é à vera, e em escala globalizada. A Fuyo é uma multinacional chinesa especializada em vidros para a indústria automotiva: fundamentalmente pára-brisas. Ela revitalizou galpões abandonados em Moraine, Ohio. Antes esses galpões eram ocupados por uma unidade da General Motors que se tornou inviável, e foi fechada no início dos 2000, abalando a economia local.
Muitos nas vizinhanças perderam os empregos. A revitalização da fábrica pelo grupo chinês, em meados dos 2010, trouxe algum alento para a região. Mas rapidamente algumas tensões surgiram. O regime de trabalho coordenado pelos chineses nessa cidadezinha do Ohio assoma muito mais exigente e inflexível que nos tempos da GM. A reclamação é generalizada. E, então, há um esforço para a criação de um sindicato. Os chineses, tanto os da cúpula quanto boa parte dos operários (que constituem uma minoria diante dos trabalhadores americanos) são frontalmente contra essa criação. E surge o impasse. Era previsível que surgisse.
Nesse meio termo, alguns ativistas pró-sindicato perdem seus empregos. Mas, a unidade fabril começa a dar lucro após um biênio de prejuízos. E, na esteira desses ganhos, se dá uma espécie de acomodação de diferentes interesses. E há também mais flexibilidade dos chineses em relação às demandas de operários americanos. Mas isso passa longe de ser via de mão única, como acontece com o filme de Petra Costa, onde o PT e as esquerdas são vistos como a opção taumaturga. E a direita em bloco - não só o bolsonarismo e a extrema-direita - como os judas a malhar.
Há alguns pontos altos nesse documentário marcadamente empático e observacional. A viagem de um grupo de funcionários americanos - executivos, supervisores, gerentes - à fábrica matriz na China, e o que testemunharam lá, é um desses píncaros. Como quando esses funcionários, seguindo uma coreografia à caráter, dublam "YMCA", do Village People, em cima dum palco, durante uma festança corporativa. Os chineses acham o máximo. Também soa de um humor tão deslavado quanto involuntário a passagem em que um executivo chinês trata da relação entre o comunismo estatal e a indústria de vidros. Esses momentos se estendem à própria convivência, no mesmo espaço de trabalho - e eventualmente lazer - de duas mentalidades tão diversas quanto a americana e a chinesa. Uma em decadência, outra em franca ascensão. As escaramuças que resultam na votação pela adoção ou não da sindicalização também surtem interessantes - embora nitidamente mais "conduzidas" pela trilha sonora e o registro geral das imagens. O filme parece querer equalizar essas mentalidades. Propô-las como suplementares, e não rivais. Um pouco naïf, pensar assim.
A condução de momentos climáticos pelos temas musicais é marcante. E uma das debilidades desse documentário. O momento mesmo em que há uma primeira manifestação pelo sindicato na linha de montagem, com um operário passando com um cartaz de apoio à sindicalização, é legendado musicalmente como uma sorte de clímax. Saudado heroicamente pela música. Faz parte do ideário defendido pelos autores e financiadores do doc.
E, no entanto, o pouco da dura poesia desse filme vem da expressão mesma dos operários. De seus semblantes, mais do que do representante da assembleia do Ohio, que pugna inicialmente pelo sindicato. Mas guarda no rosto, nas palavras, algo da obscenidade do político profissional. E algo nessa expressão dos operários parece indicar que constituem uma das últimas gerações a trabalharem em fábricas quetais, antes de serem totalmente rendidos pela automação. Além disso há um ingente anti-heroísmo inscrito nesses semblante de meia-idade. Logo, há mais concretude e problemas do que lados certos nesse filme. Ao contrário, por exemplo, da análise dos perigos à democracia no Brasil, no filme de Petra Costa, onde nitidamente há um lado do bem (a esquerda), e um lado do mal (a direita).
Há mais paradoxo nesse doc que em Democracia em Vertigem. E isso faz toda a diferença. E se faz perceber até no notável perfil que o filme traça do CEO chinês da Fuyo. Onde há muito pragmatismo, certa dureza nos negócios. Mas também um momento de reflexão até intrigante, inesperado, em que o alto executivo elabora uma sorte de 'mea culpa' ao lembrar dos tempos da juventude, numa China subdesenvolvida, pobre, pré-capitalista, mas da qual ele sente saudades. Relembrar o coaxar dos sapos, sentado à varanda. E mesmo ter dúvidas se tanta devastação do meio-ambiente, preço da rápida industrialização, paga o ingresso no clube dos países ricos. Nada como reconhecer algum mérito - mínimo - no inimigo. Ou na encarnação mais próxima deste, em uma narrativa qualquer. E numa narrativa documental em particular.
Há aqui também um dado paradoxal: a grande liberdade com que se tem acesso aos bastidores do lado, digamos, "vilão" da causa. American Factory não se limita a gravar apenas o ponto de vista dos operários. Registra com grande acuidade de detalhes as reuniões dos executivos da Fuyo, por igual. Impressiona o grau de liberdade que possui para fazer isso. E a única barreira que se interpõe, então, são as legendas em inglês, porque naturalmente todas as conversas são em chinês. E não se sabe até que ponto essas legendas estão sendo precisas. De qualquer modo, há mais empenho nisso. Em esclarecimento. Em precisão. Em paradoxo...Em ouvir o outro lado. Nessa questão básica do jornalismo: apuração dos fatos. E, sobretudo, disposição de ouvir os dois lados. Inclusive aquele lado menos "herói". Menos "simpático". E registrá-lo. Pois isso também humaniza esse lado menos "simpático" à narrativa do documentário, sem necessariamente portar nessa humanização um proselitismo ou loa a ele. E tudo isso empresta maior integridade à reportagem. Uma narrativa assim soa mais isenta. Minimamente factível.
Há, em analogia, que se notar: no filme de Petra Costa, quem parece mais refratário a deixar-se gravar nos bastidores não é nem Jair Bolsonaro, mas Aécio Neves. Pois Bolsonaro, com a tosquidão habitual, ainda permite alguma forma de intimidade. Como quando conduz a equipe de gravação a seu gabinete no Congresso, e aponta e tece comentários acerca dos presidentes militares, perfilados em quadros na parede, ao modo de relíquias. Ou ainda em cenas nas quais é visto sendo gravado, com zelosa obsessão, em segundo plano, pelo iPhone de Eduardo Bolsonaro. Do modo como um fã grava seu ídolo. De outro modo, de Aécio não temos sequer um registro menos formal. Algo que vá além da promessa de uma entrevista pessoal, selada, aliás, com um beijo em Petra Costa.
Todavia, não se sabe se houve insistência na consecução desse intento. Devido inclusive à extrema liberdade como que a documentarista e sua equipe transitam nos bastidores petistas. Isso permite que ela registre, entre outros, o momento em que Dilma segue de carro para o julgamento no Senado. E qual a sua disposição de humor. Não vemos, contudo, como o Presidente do Senado, Renan Calheiros, o relator Antonio Anastasia, ou o representante do Supremo, Ricardo Lewandowsky; seguiram para o mesmo rito. Ou qual a expectativa deles ante o depoimento de Dilma. Tampouco como Aécio Neves se encaminhou para esse mesmo julgamento. Ou Bolsonaro, se é que lá esteve. Quer dizer, quanto aos pontos de vista, Democracia em Vertigem é bem menos polifônico que Indústria Americana.
Para injetar ainda mais parcialidade no ponto de vista documental, a equipe de Petra Costa se faz presente no momento mesmo em que Lula saúda Dilma pela vitória, ao telefone, lá em 2010. E o que isso implica? Que o trânsito de Costa pelos bastidores do petismo era intenso e bem anterior ao julgamento de Dilma. E um tanto chapa branca. Logo, ela não poderia alcançar o mesmo resultado com o lado de lá da questão. Além de parecer não se empenhar muito nesse afã. E essa falta de empenho, compromete um tanto certo fair play do relato, nos termos mais básicos do jornalismo investigativo.
Como se não bastasse, algumas informações relevantes são omitidas no documentário brasileiro, uma vez que seu fito é o de reforçar a tese de um golpe de estado clássico. Tese que o documentário até pode abraçar. Mas devia fazê-lo com mais elementos consistentes. Pois uma das omissões mais graves, por exemplo, passa pelo fato de Dilma Rousseff, um ano após ser destituída, ter-se candidato e perdido as eleições para o senado em Minas, o que atesta sua extrema impopularidade, e, de certa forma, legitima nas urnas sua destituição, pois ela não logrou sequer abiscoitar uma das duas vagas ao senado. Em vez desse fato, que constitui grave omissão, há momentos menos tensos e mais irrelevantes no filme. Como o desajeitado encontro entre Dilma e a mãe da documentarista.
Pecado tão grave quanto esse é o modo como se lê 2013. Os protestos, no terceiro ano de mandato de Dilma, contam entre as mais salutares e verdadeiramente democráticas manifestações jamais ocorridas neste país. Um esboço de algo próximo a reivindicações pós-básicas (aquelas que vão além de alimentação, vestuário, sobrevivência, e que caracterizam já certo perfil pós-industrial numa população). De partida, 2013 era fundamentalmente de esquerda. Apartidário. Um tanto anarquista. Disseminado pelo país. Mas nem por isso menos de esquerda. Era reivindicatório e libertário. Era mais da ordem da revolta que da revolução, para lembrar Camus. Quer dizer, de início, era bem mais à esquerda que a máquina de governo do PT e aliados.
No entanto, as esquerdas brasileiras nunca compreenderam 2013 a contento. Porque nunca se esforçaram para tanto. Assim como universitários "lacradores" jamais se esforçam para conquistar a simpatia de quem vive além de seus guetos. Ou além dos muros do campus da universidade pública. Não havendo nesse discurso uma nesga de convencimento, de argumentação paciente. De arrazoado lógico. E essa libido da rebeldia, marcante em 2013, acabou em larga medida fagocitada pela direita, porque a própria miopia de esquerda abdicou dela. A deixou do lado de fora, na rua. A deixou na orfandade. A deixou fora do campus da universidade pública e cotista. Pela crônica dificuldade das esquerdas na elaboração de uma auto-crítica. Pela crônica dificuldade das esquerdas em compreender e legitimar todo aquele impulso contraditório e espontâneo. Criativo. E, sobretudo, algo que surge longe da tutela cartorial dos partidos de esquerda. De seu ingente desejo de controle sobre esses impulsos.
Logo, a debilidade de Democracia em Vertigem vem menos dos perigos para os quais nos alerta. Esses perigos são reais. Porém, desde dentro, endogenamente, o filme corrobora mais com a alergia das esquerdas brasileiras à auto-crítica e à renovação de lideranças. E com seu continuado autoritarismo. Isto é, sua dificuldade com um dos aspectos das democracias consolidadas: alternância de poder. Algo que tem agravado essas debilidades mais do que pensado, com certa serenidade e disposição de conversa, sobre elas; bem como sobre o próprio papel das esquerdas na eleição de Bolsonaro. E, assim, dificilmente pode-se dispor a questão apenas decidindo que há mocinhos (esquerda) e bandidos (direita). Antes fosse assim. Fosse só assim. Seria tão mais fácil. Mas, em verdade, no filme de nossas realidades, os mocinhos e bandidos parecem estar muito mais próximos, misturados, revezando-se - como, aliás, estão em American Factory - do que divisa a vã sabedoria de alguns de nossos documentaristas e cineastas. Eles próprios, como no caso de Costa, fomentando mais uma deplorável bipolaridade, do que despertando novos limiares democráticos, diante dos quais seja possível refletir. E, então, falar com cautela e algum senso de conciliação.
E, nesse rumo, o da busca de uma análise mais serena e minimamente histórica e imparcial, American Factory repassa a impressão de algo mais balanceado e credível. Algo abordado jornalisticamente. E, por tudo isso, deve faturar o Oscar. Bem como por ter, entre seus apoiadores, um lobby poderoso: o casal Obama, que até cogitou se fazer presente na noite da premiação, para depois refutar a possibilidade por uma questão de agenda. Os Obama são simplesmente os proprietários da Higher Ground Productions, a produtora da qual American Factory vem a ser o primeiro lançamento.
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