A Partir de Parasita
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Conversa#111 -Ano 3- Relances do Já e do Agora[26]
Parasite, Bong Joon-ho, Coreia do Sul, 2019) - cin. Hong Kyung-pyo
A Partir de Parasita
-uma reflexão sobre a cultura de esquerda no Brasil (e suas tendências assistencialistas e autoritárias)
Sob óculos brasileiros, não deixa de haver um paradoxo nesse filme. Parece que na Coreia do Sul, a distância entre ricos e pobres não impede que vivam numa mesma continuidade cultural. Apesar dos contrastes, num mesmo estado mental. Mesma mentalidade. Deslizando pelos mares sob chuva, sim, mas dentro da mesma arca de Noé. Pensando o mundo a partir de paradigmas comuns, apesar de tudo. Há uma espécie de pragmática que os une. Sob um lençol de ideias e mundividências. Dentro da mesma redoma de referências culturais. Referências estas que (ainda) implicam certa hierarquização da arte. Um consenso. Uma rede de adesões e colaborações como não há mais no Brasil. Certa predisposição para construir um país a despeito de dissensos ideológicos.
Sim, há uma arte de elite. Uma cultura de elite. Algo que é divisado tanto pela família rica quanto pela pobre. Assim como também reconhece-se: para alcançar a excelência inimputável dessa arte aristocrática é necessário cultivo. Paciência. Tempos longos. No filme, há ambientes onde até o design das coisas é prezado, para além do novo-riquismo. Embora o novo-riquismo também diga presente. Em boa parte na figura dos patrões. Como quando o executivo, refestelado no banco de trás do sedã, deleita-se que o motorista faça a curva sem tumultuar sua xícara de café. Ou os preciosismos de madame ao analisar as "obras de arte" do caçula. E até destinar-lhe uma arte-terapeuta, a quem madame venera, e vê quase como sacerdotisa. E, no entanto, ambos, marido e esposa, têm alergia ao odor do sabonete barato, ao cheiro de povo dos serviçais. Um odor que identificam quase automaticamente, e com inexcedível pesar.
Impressiona também o grau de cosmopolitismo da trama de Parasita. O apelo que vem tendo em qualquer parte do mundo. E isso surpreende. Pois Parasita vem da Coreia do Sul, um país em ascensão não é de hoje, mas cuja cultura ainda não detém o soft power e o impacto da cultura chinesa ou da japonesa. Mas uma cultura que, por igual, apoia-se na escrita ideogramática. Em sua inata capacidade de evocar imagens; e cujo esquema mental dista tanto do Ocidente. Poetas, semiólogos e sinólogos tentaram compreender o impacto do ideograma no Ocidente. Ou o quanto ele implica uma nova forma de pensar e comunicar. Uma forma de pensar e expressar, aliás, bem mais rente à imagem. E inequivocamente, o ideograma figurou entre as estéticas buscadas à época dos '-ismos', início do século passado. É assim que a partir das anotações de Ernest Fenollosa, Ezra Pound concebe o ideograma. Já de partida, algo muito mais afim à pintura --- e, logo ao cinema --- que a nossa notação alfabética. Aqui, mal comparando, seria como se o ideograma em si estivesse num estágio intermediário entre o roteiro e a imagem. Enquanto no Oriente, a forma da escrita mesma já propõe algum resíduo de imagem em sua estrutura. E, logo, constitui algo diverso do divórcio que há entre escrita e imagem no Ocidente.
O Brasil, embora tenha explorado muito pouco esse veio, detém um quê que facilita a expressão, a extensão de sua cultura a outras culturas.Talvez porque, não é de hoje, o país vive numa encruzilhada. Num limiar. Num acampamento marcado pela indecisão. Num meio termo entre o que se convencionou chamar de país rico, pós-industrial, pós-histórico, Ocidental, de um lado; e, do outro, o que se chama de país subdesenvolvido, emergente, em ascensão, Terceiro Mundo, etc. Então há essa vocação para universalidade. Para ser as duas coisas ao mesmo tempo. Uma abertura, um apelo maior a todos os outros países com suas respectivas castas e classes. Mas também --- e isso importa --- com seus diversos graus de desenvolvimento. Mesmo que esse apelo, por diversas razões, esteja mais num passado recente. Exatamente no período em que o país ousou propor soluções profundamente complexas e criativas para si. Num intervalo que vai de 1930 a 1980. E por isso mesmo, essa proposição utópica ao mundo tenha sido feito à boca pequena, ainda sem internet. Foi essa a repercussão - um tanto de câmara, um tanto limitada - da utopia brasileira.
Em boa parte, essa vocação brasileira para o universal passa pela miscigenação e pelo idioma. Porque o português é muito rico em sons. E foi também o primeiro idioma europeu a se globalizar, e tomar de outros algumas expressões e conceitos. E a outros legar outras tantas. Que a fórmula de agradecimento em japonês derive de nosso "obrigado" diz muito desse pioneirismo. Há que conqueteste essa etimologia. Mas mesmo esses contestadores desconhecem que há vários outros termor em japonês que derivam do português: anjo, biddoro (vidro), birodo (veludo), boro (bolo), kandeya (candeia), kappa (capa), manto, Oranda (Holanda); e por aí vamos. Assim como a palavra "negro", que migrou intacta ao inglês. Mas também como é a última língua vulgar a derivar do Latim, parece portar certa universalidade legada por este. Ou certa urbanidade de pronúncia no português brasileiro, que mais e mais contradiz os atos e posturas de seus falantes atuais na América do Sul. Logo. O latim vulgar na antiga Lusitânia e na Galícia deu surgimento a um idioma muito mais flexível, vocálico, maleável, plástico, rico em sons que o espanhol.
Por exemplo, quando na cerimônia do Oscar, Bong Joon ho, que fala inglês mal e porcamente, pronuncia o nome de Scorsese, soa espontaneamente como alguém de língua portuguesa que não sabe falar inglês. Quase que se ouve "Martinho Scorsese". (E originalmente, em italiano, a pronúncia deve ser com esse primeiro "e" --- o "e" tônico --- fechado, o que deixa Scorsese ainda mais parecido com Escocês, em Português, e revela a origem do nome: Martinho Escocês. Ou Martim Escocês. Martim, como era no séc. XVI, também em Portugal e aqui. (Daí o "herói" da colonização do Ceará, Martim Soares Moreno. Um herói, aliás, um tanto forjado por Alencar. Pois não deixou nada de duradouro por aqui. Sequer a fundação de Fortaleza, uma vez que a paliçada que ergueu na Barra do Ceará foi totalmente destruída pelos índios. Depois, a partir de uma fortificação, erguida pelos holandeses, trepada num cômoro, que nada tem a ver com o primitivo Fortim de São Sebastião, na Barra, surgiu o embrião da cidade).
Parece-me que um dos problemas com cultura, por cá, foi se ter levado a sério demais e de modo um tanto equivocado o paradigma pós-moderno (de cultura). Um paradigma formado em latitudes que possuem fortíssimo senso de alta cultura, como antídoto. Logo, ainda que esse paradigma pugne por equiparar alta e baixa cultura; todo professor numa universidade inglesa sabe que Bach é um tanto mais sofisticado que Bieber. Mesmo que nos seminários defenda ou louve essa des-hierarquização da arte, uma ideia que se tem disseminado pelos quatro cantos de maneira tão tosca quanto a visão que os Bolsonaro têm de cultura. E, então, aqui no Brasil encontrou boa guarida. Sua casa. Pois se tem sancionado toda sorte de lixo que sai das comunidades pobres, como algo redentor: caso do funk, do axé, do sertanejo, do neo-forró, do hip-hop local e outras manifestações análogas: grafiteiros, quilombolas, comunidades indígenas, favelas, periferias, etc.
Porque supostamente criticá-las e analisá-las sob o prisma da musicologia ou de certa redução harmônica e melódica, ou ainda de certa puerilidade do texto ou do traço seria...preconceito. E, assim, entende-se que tais manifestações têm o mesmo mérito, por exemplo, da época de ouro da música pop global, que vai de meados dos 1960 a fins dos 1970. Ou, ainda antes disso, dos sambas de Ismael Silva e Cartola. Isso é fartamente cômico. E Bong Joon ho chega a brincar com essas referências. Isto é, com essa correlação. [Obviamente não citando a música brasileira pré-Bossa Nova, mas a Americana, a Italiana].
Não é o único.
Não sou ingênuo de pensar que na Coréia do Sul não deva existir algo similar à degradação que é a indústria fonográfica brasileira atual. Fundamentalmente voltada para a Classe C. Isso existe no mundo inteiro. Mas morando aqui pelo São João do Tauape, em Fortaleza, forçosamente aumentei meu conhecimento dessas manifestações. E, no entanto, duvido que na Coreia isso seja analisado, na universidade ou visto pela população leiga (mais culta), do modo populista, naïf e condescendente com que se faz isso cá no Brasil. E talvez um bom sistema educacional, servindo a diferentes classes (alguém do cortiço pode ensinar inglês à garotinha burguesa, à herdeira), explique isso. Explique algo importante: um maior território comum intra-classes sociais e lastrado em certos fundamentos. Valores regidos por uma mesma mundividência. Um paradigma de cultura, a despeito de toda recente modernização do país. E a despeito também, claro, da desumanização letal promovida pelo capitalismo liberal, de economia aberta. Ou seja, uma degradação à reboque desse desenvolvimento mesmo. Fenômeno que tem ocorrido em alguns países: Chile, Portugal, Turquia, Sérvia...
Mas será que poderia ter sido diferente? Que Hong Kong, China, Coréia do Sul teriam logrado tanto êxito econômico sem a correspondente injustiça social? Sem certa desumanização promovida por esse "progresso"? Sem a supressão de alguns valores e costumes que pareciam mais sábios, em vários aspectos? Essa é uma questão muito complexa. Por enquanto fiquemos apenas com a noção de que possivelmente o sistema educacional na Coréia do Sul pareça ser melhor que na América Latina. Ou menos injusto, a despeito de tudo.
É bem diferente no Brasil. Aqui, o abismo entre classes ainda é tão vasto, que até mesmo o golpe arquitetado em Parasita surge sofisticado demais para malandros do subúrbio porem em prática. Falsificar certificados de grandes universidades de língua inglesa - com suas marcas de água, carimbos e selos - para obter o posto de tutor de uma garota rica, parece situar-se além dos limites cognitivos, das artimanhas operativas dos charlatães daqui. Dos falsários e golpistas tupiniquins. Dos parasitas locais. Até porque, certificados de lado --- forjar diplomas falsos seria a parte mais fácil --- o impostor teria que dar boas aulas de inglês, demonstrar proficiência no assunto, certa cultura geral, o que eliminaria a possibilidade de um golpe análogo cá pelos trópicos.
Aqui, a coisa é mais crua, tosca, na lata. É básica. Invade-se uma casa como a de Parasita para roubar. E, se necessário, mata-se o proprietário. Para levar alguns dólares guardados no colchão, roupas de grife e um televisor LED. Lá, há mais projeto. Até os trambiqueiros dão testemunha dessa mentalidade projetiva: são mais espertos. Visam já o longo prazo. A intenção inicial não é a de matar a galinha dos ovos de ouro. Porém criar condições para tirar o máximo de proveito dela, da situação, parasitando-a. O valor da vida humana, em tais casos de roubo ou extorsão, é uma ninharia por cá.
Certa feita, um conhecido estava acabando uma pequena reforma em casa, e conversando com um pintor de paredes. Foi na década de 2000, em Fortaleza. O mote versava sobre dívidas. Dívidas a receber. E esse conhecido - curiosamente de descendência judaica, para reforçar certo estereótipo gasto, mas não de todo equívoco - mencionou ao pintor que um sujeito lhe ficara devendo certa importância. Alguns meses de aluguel. Como às vezes ocorria entre inquilinos de seus imóveis - uma de suas fontes de renda. Talvez a principal. Mas no caso, o sujeito não só recusou-se a pagar, como mostrou-se afrontoso, desaforado quando cobrado. E cobrado com renovada fleuma. Característica do senhorio. E era isso que ele estava comentando: a desfaçatez do inquilino. Daí, do nada, o pintor vira-se, e diz que se for do agrado do senhorio, ele podia acabar com o inquilino. O preço era um salário que, à época, ia por menos de 700 reais…
Lembrei disso, porque li duas diferentes reportagens. Uma n'O Povo, outra no Diário. Dois idosos foram mortos em Fortaleza recentemente. Dois casos estúpidos de latrocínio. Um era um canadense octogenário. Vivia sozinho, um tanto isolado, numa chácara pros lados do Eusébio. Possuía alguns imóveis nas vizinhanças. Vivia de rendas. E provavelmente escapava por aqui dos rigores hibernais de seu país. No outro caso, uma senhora de seus setenta e poucos, cearense, com boa aposentadoria num desses tribunais da vida, habitava um pequeno sítio urbano, no Mondubim, e foi assassinada pelos próprios caseiros do sítio. Tanto ela quanto o canadense, mortos a pauladas. Uma barbárie.
Então há uma diferença. Aqui, pelo abismo entre as classes há muito mais discrepância, ignorância. E também muito mais violência. Truculência. A apartação social também assume ares de apartação cultural. Pois esse abismo acende, por igual, certas condescendências pueris. Como a noção de que se deve valorizar e priorizar quase irrestritamente as manifestações e os esforços de quem vem de uma família pobre. Mesmo que esse esforço não dê em algo palpável, de fato eficiente ou belo. Ou, no mínimo louvável. Sim, claro que se deve valorizar algo nesse sentido. Especialmente, na sociedade desigual em que vivemos. Diria que numa condição de empate entre dois funcionários, a precedência deve ser dada ao que veio de baixo.
Mas, aqui, há algo mais que isso. Há uma lógica consolidada que inverte coisas, sem nos darmos conta. E essa lógica pode ser bem perversa e populista, por trás de sua aparente "compaixão". Criou-se um mito. Uma mentalidade geral tão assistencialista, calcada nas disparidades sociais, e devidamente legalizada pelas esquerdas e pela Teologia da Libertação, que muitas vezes se age apenas pensando em "melhorar" a situação material das pessoas, e fechando questão nisso. Isto é, fechando completamente os olhos para a real competência delas, independente da classe a que pertencem.
Num país onde o processo de educação é mais ou menos universal, consolidado, para todos - como nos países pós-industriais - não há esses dramas de consciência que redundam em tais posturas populistas e assistencialistas. Mães de paternalismos. É o caso do Reino Unido, p. ex. Dificilmente alguém vai rastrear a classe social de quem está contratando. O contratador segue muito mais interessado na capacidade, no potencial do contratado. Na sua eficácia geral. No seu comportamento, honestidade, propensão a ser útil: obedecer, observar, liderar, ser criativo, saber sugerir. E também saber discordar, sem quebrar hierarquias.
Outro dia conversando com duas amigas; me dei conta disso. Até porque concentram algo quase caricatural: uma é freira católica, ligada à Teologia da Libertação; a outra, assistente social. De como no Brasil há toda uma lógica em que o mérito maior vem a ser de a "fulana" ou de o "sicrano" virem de famílias pobres, e ainda assim serem tão talentosos, esforçados, coitados... Num país com um bom sistema educacional público isso funciona só até certo ponto. E esse coitadismo tem menos chance de prevalecer. Com a maior impessoalidade deles, e a falta dessa nossa "cordialidade" populista, dificilmente o gestor ou supervisor numa empresa vai contratar alguém em definitivo porque ela ou ele vem de família pobre, e supostamente teve uma vida mais sofrida que o outro candidato. Algo que, ao nosso olhar compensador, precisa ser reparado, porque não reparamos que não é nossa ajuda assistencialista que fará isso o tempo todo, mas uma mudança estrutural, societária: uma melhor educação universalizada. Uma burocracia que efetivamente sepulte esse "jeitinho". Esse sentido meio mórbido de compensação.
No Reino Unido, por exemplo, quem contrata vai olhar em primeiro plano a competência real do candidato. Vai aferir seu desempenho no período de estágio, etc. Talvez porque haja um bom sistema educacional já universalizado. Isso os inocula contra dramas de consciência ou o reino do coitadismo. Bem entendido, esse acesso à educação não está isento de distorções. Mas é já muito mais disseminado que aqui. E sem grandes contrastes regionais ou dramas de classe. Embora o Norte da Inglaterra e Gales sejam ligeiramente mais pobres. Quem frequenta as "public schools" na Inglaterra, que curiosamente são privadas - internatos caríssimos para a elite - têm muito mais chances de sucesso profissional. Mas no geral, mesmo uma pessoa de origem pobre tem amplas chances de se educar bem. E, por isso, ninguém se sente culpado de preterir alguém que vem de uma classe mais pobre. Exatamente porque essa pessoa teve condições educacionais não muito díspares em relação ao candidato mais, digamos, classe média alta. E, logo, pode competir com este em certa paridade de condições.
Assim, os trambiqueiros coreanos de Parasita - ao contrário do que fariam salafrários na mesma posição, cá no Brasil - desfrutam do ambiente, fruem além da conta os encantos da casa burguesa. Não menos sua arquitetura, decoração, jardins, os requintes que contém, as bebidas e comidas finas. A prodigalidade no refrigerador, na adega, no closet. Mas também obras de arte. E até se ouve música pop italiana dos anos 1960, estilo 'cantautori', na linha Rita Pavone. Quer dizer, demonstram uma cultura geral um tanto mais ampla que os pobres no Brasil. Talvez haja um exagero em Parasita. E parte disso não passe de maneirismos. Floreios do roteiro. Haja um tanto de delírio de Bong Joon ho e de seu có-roteirista. E a coisa diste da realidade coreana (como no caso do glamour de Hollywood de um lado; e, do outro, a atmosfera bem mais esparsa, grosseira que se vê em documentários, como o próprio American Factory, quando se pensa nos Estados Unidos). Porém, grosso modo, esse dia-a-dia coreano parece ser um cotidiano menos marcado pelas necessidades básicas: alimentar-se, vestir-se, morar, namorar, divertir-se, transportar-se, educar-se.
Por isso que entendo os protestos de 2013 como os primeiros pós-industriais no Brasil. Ou seja, pós-básicos. Mas eles rapidamente perderam vitalidade. Perderam impulso. Urgência. Como soa ser nesses casos de revolta. Como aconteceu com a Primavera Árabe, por exemplo. Ou com as jornadas do Chile, mais recentemente. E no caso dos protestos de 2013 --- talvez porque o governo em curso fosse de esquerda --- as esquerdas nada fizeram para compreendê-los melhor. Para ressoná-los. Ouvir de fato o que estava sendo dito nas ruas. E derivar algo de positivo das agendas propostas por gente jovem nessas jornadas de protesto por reivindicações urgentes, concretas. Como a melhoria do transporte público nas grandes cidades. E baixas tarifas para os mesmos. Pode-se entendê-los como a gota d'água de vários rancores sociais que inquietavam jovens. E, entre eles, a falta de perspectiva de crescimento profissional no país. A estreiteza da vida para quem não nasceu na classe-média alta. Para a massa jovem de trabalhadores urbanos, sem uma perspectiva muito pródiga de consumo e acesso a serviços de alguma qualidade.
Logo, quando penso em autocrítica de esquerda, refiro-me menos a atos de desculpa em público. Sim, esses pedidos, esses atos devem ser formulados também, em casos específicos. Por outras razões. Não é porque a direita não faz que se deve seguir essa prática hedionda, da direita. Afinal, a direita brasileira pratica uma série de contravenções, arbitrariedades, jogo sujo, que a esquerda precisa evitar, antagonizar, se quiser reter um maior apelo moral. Mas quase sempre a esquerda não logra isso. Não joga assim. Exatamente por confundir princípios com estratégia. E nisso o PT é useiro e vezeiro. Pode ser bem casuísta, bem caprichoso, de acordo com a situação. Pode lançar-se a alianças com o Centrão, abrir reservas para apadrinhados de si e do Centrão em cargos técnicos de estatais, e não pedir desculpas por isso.
No caso das milícias, por exemplo, há sérios indícios de que o PT lançou mão de algo rente a elas. Em episódios como o de Celso Daniel. Quem em 2002 assassinou Daniel, o prefeito em exercício de Campinas, foram milicianos ligados ao PT. De forma muito semelhante ao brutal extermínio de Marielle Franco. Ou de forma muito semelhante ao quanto esses assassinos de Marielle parecem deter ligações sórdidas com a família Bolsonaro. Da mesma forma, há sérios indícios que os milicianos envolvidos na morte de Daniel tinham bom trânsito nas altas esferas do petismo. Então, autocrítica não passa exatamente por dramáticas palinódias pela TV. Passa por reconhecer e não repetir o emprego de milicianos, entre outras coisas. Passa por algo um tanto mais amplo. Capaz de reler o passado, para poder reinventar-se. E inclusive reler essa mentalidade assistencialista: autoritária e populista.
Só que esse algo mais amplo irá redundar em fatores muito mais pragmáticos. Um gesto que tenha peso, incidência real sobre a eleição de 2022: uma revisão histórica capaz não só de entender melhor o passado, mas, a partir desse entendimento, dessa melhor compreensão, ser capaz de projetá-lo para o futuro, sob forma de esperança. Com muito mais apelo não só às classes populares: a todas as classes. A esperança, algo que só pode vir de certa autoestima cultural, está em profunda demanda no Brasil. E está em profunda demanda justamente porque ninguém se sente representado. Há uma verdadeira crise de representação. Essa é a verdadeira crise política. A chegada de Bolsonaro ao poder não é mais que um reflexo disso.
Mas quando se fala em representação, esse estar no lugar do outro passa longe de ser só na política institucional, partidária. A representação, p. ex., nos primeiros filmes dos alunos do Curso de Cinema da UFS (Universidade Federal de Sergipe, onde lecionei), era toda ela permeada pela superficialidade tola desses discursos identitários. Como se o mero apelo ao identitário fosse salvar a sociedade. E era assim, porque os roteiros seguiam inicialmente sugeridos por professores bastante doutrinados nas teses petistas. Como se a débil e mera consciência de fazer parte de uma minoria injustiçada fosse imunizar ou salvar seus alunos de muitas coisas ao meramente assuntar esses identitarismos. Fosse imunizá-los da concorrência e da seletividade visceral do mercado. Ou reservasse automaticamente para eles um papel especial, de revolucionários. De visionários. Daqueles que vão mudar o país, o mundo. E não adiantava interpor a esses roteiros, bastante ingênuos, argumentos históricos.
Os militantes afro não queriam ouvir dizer que talvez fosse ingênuo, perigoso e pouco imaginativo apenas copiar o modelo de ativismo étnico ianque. Ou que talvez fosse melhor ler Gilberto Freyre e os modernistas brasileiros, antes de condená-los em bloco sem nenhum conhecimento concreto. Ou que houve, apesar de muita violência envolvida no processo, bastante miscigenação já no Brasil Colônia. Ou que na década inicial do século passado, havia um presidente negro no Brasil: Nilo Peçanha. E que, sim, há aspectos positivos nessa miscigenação, ladeando um oceano de violências e sevícias. Logo, as possibilidades de forjar certa representabilidade e autoestima, quanto aos filmes dos alunos sergipanos, eram um tanto escassas. Pela falta de conhecimento e de argumentos históricos, sobretudo. E, quando esses argumentos históricos eram sugeridos, precisavam ser desautorizados, porque agrediam esse senso de justiça simplista, tosco, assistencial. Algo a-histórico, declaradamente revanchista, rancoroso, superficial, vitimizador. Esse senso de justiça autoritário, desagregador, propagado pelas esquerdas brasileiras.
Além disso, quanto à representatividade não há a possibilidade de os jovens estudantes se enxergarem nas instituições que estão aí: o congresso, o supremo, o sistema eleitoral, as próprias regras do jogo quanto à formação e financiamento de partidos, etc. Mas não só. Eles não encontram essa chispa de reflexo nos teatros, nos cinemas, nos estádios, nas associações comunitárias, nos sindicatos, na televisão, no rádio, na própria estrutura familiar. E isso é relativamente fácil de compreender: há um fosso tão grande entre classes sociais no Brasil, que as conquistas e êxitos do país em outros tempos não parecem hoje pertencer aos mais jovens de Classe C. O vínculo que eles portam com a utopia brasileira dos anos 1930-70 é tênue, quase inexistente. Ou, por vezes, essa utopia parece algo exógeno.
A prática de um outro povo, de uma outra classe. De uma outra civilização, à qual eles nem pertencem, porque não conhecem o próprio passado. Ou não tiveram acesso a esse passado. Como se a Bossa Nova, o Cinema Novo, O Cinema Marginal, a Poesia Concreta, o Tropicalismo, a MPB clássica não fosse deles. Não fosse com eles. Não fosse adiante, ao lado deles. Também a própria Igreja Católica. Ou a cultura católica --- não meramente algo restrito ao plano devocional. Daí o sucesso dos evangélicos, que entraram nesse vácuo institucional da representação, suprindo anomias: a falta de acesso à psicanálise, a falta de acesso a uma explicação de por que sofrem. A falta de acesso a uma representação cultural mais elaborada e lastrada historicamente. Logo, o que é ofertado por essa "religião de resultados", o neopentecostalismo, é certa solidariedade básica, apontando para resultados práticos e imediatos, de possibilidades mágicas, de escapismos, de milagre, etc. De acumulação de capital e uma rede endógena de negócios. E a emplacar sucessos "gospel". Tudo isso incide sobre a questão da representação. E quanto mais tosca for a formação cultural de alguém, mais facilmente será fisgado pela rede evangélica. Isso não incide só sobre educação formal. Conheço médicos bastante competentes em suas áreas, em suas especialidades, mas completamente trogloditas quanto à cultura. Quanto a ler um livro de ficção. A ir a um concerto. A assistir uma peça. A debater um filme. A compreender a profundidade da questão da tradução entre idiomas. Num caso particular, há toda uma rígida reprimenda à vera, se algum dos garotos - ainda pré-adolescentes - deixa escapar um simples palavrão durante a refeição.
Uma das poucas coisas que são vendidas como heroicas, como realmente representativas para esses universitários oriundos da Classe C: o PT. E o rosto do PT: Lula. Daí a necessidade de muitos agradecerem a Lula sua formação...Seu acesso à universidade, etc. E então esses estudantes declararam isso em ocasiões solenes. Como na formatura. Bem na trilha do coronelato. Do favor político. Do clientelismo. Do caudilho. Da freguesia política. Do Messias. Do indivíduo maior (e melhor) que o sistema, que o partido, que as instituições. Do populismo clássico. De algo análogo ao Peronismo. Ao Bolsonarismo de hoje. Seguindo a mesma lógica de pessoalização. De agradecimento ao padrinho político. Aquele que teve "compaixão" deles, que teve pena deles. E isso fica no lugar da burocracia, da impessoalidade do estado pós-industrial. Porque é inimaginável que um britânico vá agradecer a Tony Blair a sua formação.
Do contrário, já li em mais de um artigo que a prosperidade na Coreia do Sul não é só econômica. O país atravessa também uma espécie de florescimento cultural, do qual o cinema é apenas mais um ingrediente ou sintoma. Uma das pontas do iceberg. Como costuma ser em casos assim. Então, quando penso em autocrítica de esquerda, penso numa esquerda capaz de dimensionar que o que elegeu como política cultural - o acirrado identitarismo --- que hoje prevalece num ambiente universitário altamente guetificado, intramuros, bipolar e de complacência extrema em relação aos alunos --- necessita de revisão. E por quê? Justamente porque constituiu, em sua intransitividade, um componente decisivo para a eleição de Bolsonaro.
Nesse sentido, a eleição de Bolsonaro em 2018 não se deu tanto pela diferença real entre paradigmas clássicos de direita e de esquerda, tal qual existem, bem estruturados e bem compreendidos, nos países pós-industriais. Ou nos compêndios de Sociologia Política. Mas essa eleição foi fruto da rejeição de um complexo cultural de matriz esquerdista, baseado em postulados bastante rasos, que fomentam a cizânia, e a divisão de classes e de grupos. E até da família nuclear. Esse impulso identitário impede inclusive o acesso e o reconhecimento histórico de certos êxitos passados, algo que é vital para a questão da representabilidade e, logo, da auto-estima. E até da irradiação de uma cultura original, autóctone, segura de si, como já houve em momentos menos infelizes deste país. Além disso, essa postura identitarista da esquerda frequentemente corteja certa estética trash, certo mau gosto aliados, no caso da universidade, a um característico sobejo hippie. Como quando imaginamos o protótipo do ativista estudantil: roupas artesanais, sandálias, missangas, certo aspecto sórdido, o cigarrinho de maconha, as tatuagens, o piercing, a devoção às pichações, etc.
Fora da universidade, esse aspecto geral meio maltrapilho e malcheiroso dos militantes não tem contribuído muito para a imagem da causa junto ao grande público. E alie-se a isso a fama (até certo ponto justificada) de seu mau desempenho acadêmico. Atrele-se ao clichê, numa visão classe média mais rasa, o ressentimento pelo PT. E, aqui, nem tanto porque o PT roubou - já que roubar e política no Brasil são ideias quase consanguíneas. Mas fundamentalmente porque o PT roubou e, ainda assim, não resolveu a parada. E isso, levando em conta que inicialmente o PT era aquele partido diferenciado, que afirmava ser e fazer política de modo distinto. Sem tanto toma-lá-dá-cá. Sem tanta aliança com o Centrão. Sem tanto acabar em pizza. E até a primeira eleição de Lula, essa distinção era vendida para a classe média como a grande "vantagem" do partido. Seu diferencial.
Então, para esse mesmo contingente que elegeu Lula duas vezes, antes de se voltar contra ele, com tamanha ênfase, e eleger Bolsonaro, o que pesou mesmo foi a economia começar a fazer água. Especialmente depois de haver crescido tanto nos últimos anos da década de 2000, à reboque do apetite chinês por commodities. Pois se o país tivesse continuado a escalar índices galopantes de crescimento econômico, até a ladroagem e o descalabro administrativo dos petistas teriam sido varridos pra debaixo do tapete. Como a classe média varreu a truculência do governo Médici. Ou como o mundo inteiro faz hoje vistas grossas para os desrespeitos frontais aos direitos humanos na China - em seu próprio território e no Tibete (uma região ocupada). Querem mais negociar com essa potência. Sem questões diplomáticas de empecilho. Fechando os olhos para arbitrariedades. A mesma Merkel que age assim, vedando os olhos para a China, faz questão de receber Greta Thunberg, a ambientalista sueca. E, a partir da conversa que tiveram, ameaçar a não ratificação de um trato comercial com o Mercosul. O Mercosul não tem a força e a pujança da China. E, portanto, pode ser ridicularizado em público, a propósito de uma adolescente.
Logo, ao invés de fascismo, vejo muito mais ignorância, pura e simples, na grande maioria dos que votaram em Bolsonaro. (Isso, sem embargo, não explica o voto de gente esclarecida. Mas esse é já outro caso). Essa pulsão anti-PT é extremamente reativa diante de certas posturas. Reage, entre outras, à necessidade contemporânea de regular demais a sexualidade e a vida dos outros. Algo característico do discurso identitário, do modo como é sancionado pelo PT e o PSOL. Ou seja, da necessidade de regular padrões de comportamento e sexualidade a partir de novas normas e valores que não são necessariamente mais justos, senão apenas diversos. Normas diferentes das anteriores. Ou de adotar posturas de vigilância das expressões, gírias, comportamentos. Esse último aspecto, o de vigiar demais as expressões espontâneas, causa um melindre particular entre gente menos educada e/ou mais velha. De um e de outro lado da bipolaridade. Mesmo que em certos casos, nos mais grosseiros, tal postura vigilante, atenta, do politicamente correto, acerte.
O problema é mais certa histeria judicativa. Certo ar de polícia. Certa postura de fiscal do quarteirão, que assume-se como palmatória do mundo. Certo ar presumido, de superioridade moral. E presume de sua razão, dedo em riste E reivindica comportamentos e posturas que até mesmo muitos dos ativistas que os apregoam dificilmente os seguem como prática, na própria vida privada... No correr do cotidiano.
A maioria dos brasileiros que votou na direita não é educada o suficiente sequer para perceber a diferença real do espectro político: o que é direita, o que é esquerda, o que é centro. Quando há composição. O que significa maioria no parlamento, e o que isso implica, etc. Qual a distinção entre parlamentarismo e presidencialismo. Ou qual o perigo que há em votar em alguém que elogia a ditadura. Alguém que faz planos de golpe em voz alta. E ameaça fechar o Supremo. Ou coagir o legislativo. Ou ainda indica simpatizantes nazis a pastas ministeriais. E, ironicamente, até a pastas que requerem trânsito, composição, alguma disposição para conversa, como a Cultura. Ou a Educação.
E, no entanto, tem muito mais gente exasperada com os excessos identitários do que com os excessos proto-fascistas. Porque tais excessos de direita parecem a eles precipuamente como o antídoto contra a aparente "falta de valores". E. logo, algo que os representa. Assim como muitos se veem representados pela lógica social em torno das igrejas neopentecostais. Ou ainda algo que, na visão deles, vai de encontro à debilidade dos valores da nova-esquerda. Valores que lhes parecem equívocos. Justamente porque voltam-se para proteger minorias às quais eles não pertencem. E, assim, sentem-se discriminados e excluídos de uma universalidade da qual sempre se sentiram parte. Ou, quando não excluídos, diminuídos em seu molde de cidadãos. Apenas por serem héteros. Ou cisgêneros. Ou brancos (mas pobres). Ou homens. Ou urbanos, e não índios aldeados. Ou de classe-média, e não vivendo em quilombos, favelas, ocupações ou reservas.
Não é de espantar que boa parte desse lúmpen, que também elegeu Lula se sinta desorientado, sub-representado e um tanto traído e abandonado pelas esquerdas. Suas expectativas foram minadas, amesquinhadas. Eles, que são maioria. Sentem-se, assim, desconfortáveis com o que há de reincidente na lacração. Em certo tom revanchista, ressentido, com que se milita pelas minorias nas redes sociais. Sentem-se excluídos. Muito mais perturbados por isso do que pelo delírio neo-fascista do entorno de Bolsonaro. Estão mais fartos dessa onda de vigilância sobre a vida e os atos íntimos do que das ameaças de se fechar o Supremo e decretar uma ditadura. Mas investido nisso não vai uma instância pós-histórica. Vai, sim, muita ignorância do que seja esquerda e direita. Ou de como se deu a história do país.
Além disso, a própria esquerda não se ajuda muito. Ao, p. ex., disseminar histericamente no exterior que há censura no Brasil em 2020, quando sabemos que não há. Ou insiste em difundir internamente todas essas receitas de como ser "civilizado", "cosmopolita", "moderno", presentes no jornalismo de serviços, e disseminadas histericamente pelos grandes portais. Isso, de fato, enche medidas. E afasta muito mais do que traz gente para a causa das esquerdas. E inclusive para as causas identitárias, grosso modo, que possuem grande apelo. Pois em outros países, essas mesmas causas trabalhadas de modo menos antipático, passam longe de serem monopólios de esquerda. Encontram-se muito mais diluídas por todo o espectro político. Pela sociedade como um todo. Como no caso dos direitos Lgbt.
Mas essas causas também precisaram convencer para triunfar, e não impor-(se) goela abaixo. Ou pensar que vão ganhar mentes e corações no grito, na marra, através de insultos e lacrações. Ainda que em muitas situações estejam com a razão. Talvez na maioria delas. Perdem, no entanto, essa razão no instante em que abdicam de apoiar-se, lastrar-se em argumentos. Inclusive argumentos históricos. Perdem legitimidade ao não ter disposição para conversar. E também ao não demonstras a mínima disposição para convencer, para conceder, e não só conquistar. Para tratar de convencer. Conciliar. Compor. Fazer concessões. Porque é assim que se faz política. Em qualquer parte. Sem intransigências.
Mas aqui, soa também interessante constatar como a instância política - da política partidária, institucional - vem convertendo-se progressivamente numa espécie de instância da totalidade. Uma panaceia para todos os males. Uma sorte de nova religião. De religião laica. Para alguns: a instância última. A esfera única. Aquela à qual se deve a lealdade mais cerrada. A obediência mais cega. Como a noção de Partido na União Soviética ou no Leste Europeu ao tempo da Cortina de Ferro. Ou do Partido Nacional Socialista, na Alemanha dos anos 1933-45. E não apenas mais uma das esferas, das dimensões da vida, entre outras. Como deve ser.
Há a vida privada, o cônjuge, os amigos, a família, o hobby, as férias, as viagens, o trabalho, os livros, os filmes, a música, a praia, o futebol, as interações nas redes e grupos virtuais, a espiritualidade, etc. Ainda assim, de momento, a política (institucional) virou uma espécie de legitimador total. De aval do que se faz. Por exemplo, já li coisas interessantes, observações bem perspicazes sobre filmes vindas de Richard Brody, o crítico judeu-nova-iorquino da New Yorker. Mas quando se revisa sua análise da noite do Oscar deste ano, 2020, percebe-se que sua visão é totalmente dirigida para algo: houve ou não política - isto é, atos políticos - na noite do Oscar?
Quanto mais houve, melhor. (Seguindo a lógica de Brody).
Quando se vê a distância o que isso sugere? Sugere que Brody esqueceu a verdadeira razão de ser do Oscar: a valoração de filmes - independente de esses filmes serem mais ou menos políticos, no sentido convencional, partidário, da política. De expressarem pontos de vista liberais ou conservadores. De serem mais de esquerda ou de direita. Até porque nem o mais empedernido crítico de esquerda vai negar o potencial humanista de filmes feitos por diretores com claras inclinações à direita. Tome-se, por ilustração, os filmes de Elia Kazan. São menos brilhantes só porque não defendem teses de esquerda? Ou conseguem ser mais complexos e profundos que essa noção um tanto questionável de "filme engajado"? A mesmíssima coisa se pode aplicar a Rohmer. Quantos cineastas abordam a realidade com a a complexidade e a sofisticação de Rohmer?
Ora, esse "quanto mais atos políticos, melhor", defendido por Brody, soa um tanto pueril. Entre outras, porque quando Obama estava no poder, não havia essa urgência toda por motivos engajados e políticos em cerimônias públicas. Mesmo nos pressupostos críticos de alguém altamente politizado, como Brody. Não havia, portanto, tal necessidade histérica de analisar tudo sob esse prisma político. Ou tal pulsão por fazer política partidária a cada segundo e por todos os poros. Ou seguir posicionando-se a partir dos aspectos mais prosaicos do cotidiano. E, então, fazer política a toda hora, incessantemente: na cama, em casa, na fazenda. Ou tal necessidade de encarecer atos convencionalmente políticos a todo custo. Mas ocorre que o momento não é "normal", não é de Obama; é de Trump. Ou seja, o momento não é de centro-esquerda, mas de direita. (Não só nos Estados Unidos, mas em vários países, como aqui). E, então, parece que fica mais fácil resumir toda a vida - inclusive a vida dos filmes - à instância política. À oposição ao regime. A certo tom de resistência, em que todos se vestem à La Résistance française na Segunda Guerra. Muitas vezes desconhecendo que um dos esteios básicos do sistema democrático é justamente alternância de poder.
Mas tal noção de resistência, de política, no caso do pequeno artigo de Brody, é no fim bastante passiva, retórica, governada por teses proselitistas, ressentidas, sectárias. Como depois de filmes maravilhosos, sopros de modernidade, cheios de vida e acaso - como À Bout de souffle (1960) ou Le Mépris (1963), um cineasta com boas ideias e uma mente aberta; irá se converter num chato de galochas (e é o ídolo de Brody): Godard. E vai se converter justamente à reboque de sua conversão política a uma esquerda mais troglodita, mais institucional. Daí em diante, os filmes de Godard parecem apenas tentar ilustrar algumas teses políticas precedentes. Estar a serviço das teses maoístas. E, logo, é como se todos, a todo instante, tivessem como mandamento, como obrigação primeira e excelsa, estar performando atos políticos relevantes. (Como se viver numa comunidade não fosse, por si, ato político. Como se trabalhar de determinada forma já não fosse uma indicação política).
Ora, política é importante. Importantíssimo. Imprescindível. Mas não se esgota em posições partidárias convencionadas na Revolução Francesa. Ou classificadas em compêndios de economia política. E também passa longe de esgotar a experiência humana na Terra. A chama da vida. Das interações humanas.
Há outras dimensões de vida que precisam ser cultivadas. Valorizadas. E são implicitamente políticas, embora quase sempre não partidárias. Da ordem da arte, da espiritualidade, das interações mais micro, da convivialidade, etc. Mesmos nos períodos em que a política nos demanda uma maior atenção, pela precariedade da situação, existem ainda outras instâncias de vida a cultivar. E disso alimenta-se o humanismo. O que merece estar sob a rubrica de humanismo. Paradoxalmente, só vejo boas saídas políticas vindo de gente que sabe nutrir-se bem dessas outras instâncias. Desses outros nichos de vida, de criação, de cotidiano, de interação e conversa, que passam muito ao largo da política convencional. Da política partidária. Do sindicato. Da associação de moradores. Da reunião de condôminos. Do ativismo de carteirinha. Do agit-prop. Pois, muito obviamente, a melhor porção da vida encontra-se fora dessas esferas.
Essas outras dimensões, portanto, seguem bastante amesquinhadas no presente. Parece um pouco torpe que, ao modo de Brody, se fique regulando o discurso das pessoas. Como ele o faz na nota, em relação a Joaquin Phoenix. Ou cobrar do ator um "outro tipo" de pronunciamento. Algo mais voltado ao campo convencionadamente político, ao invés de declarações vagas, "veganas". Não nutro grandes simpatias pelos veganos ou por qualquer movimento mais ou menos esotérico - New Age, Hare Krishna, yoga, budismo, tai-chi, capoeira, drogas medicinais amazônicas (ayahuasca), meditação transcendental, etc. - mas há nessa abordagem de Brody um imenso impulso de regular a vida do outro, de interferir nela, de alguma forma. De amesquinhar essas outras instâncias. Essas outras experiências. E, sobretudo, de ditar normas de ação para a vida. E isso, quando exagerado, pode converter-se facilmente em algo da ordem do fascismo.
Só que agora sob uma rubrica de esquerda.
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