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Quem nasce em Bacurau é o quê?

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Conversa#112 -Ano 3- Relances do Já e do Agora [27]

Bacurau (Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, Brasil, 2019) - cin. Pedro Sotero

Quem nasce em Bacurau é o quê?

-Bacurau explicado às criancinhas

Parece que um dos escritores que melhor versam sobre a questão da arte engajada é George Orwell. E o que propõe? Separação visceral entre ativista e artista. O ativista, devotado a uma ideia, uma convicção política. E, logo, preso a certa hierarquia, obediências à causa. Ao partido. Ao sindicato. Às teses, etc. O artista, livre o bastante para inclusive atacar os aspectos menos lisonjeiros, mais autoritários, mais automáticos da própria causa que defende. Ou dessas paralisantes obediências. Ou das agremiações que integra. Ou do substrato proselitista que toda causa suscita: dos Alcoólicos Anônimos às Testemunhas de Jeová.

Orwell tomou para si, de forma coerente essa empreita, essa dualidade. Enquanto ativista, era Eric Blair (seu verdadeiro nome), sob o qual foi vinculado à ala independente do Partido Trabalhista. Mas por igual a certa visão trotskista, vista de soslaio pelo Partido Comunista Britânico, com o qual também trocou algumas figurinhas e farpas. Como escritor, no entanto, sob o pseudônimo de George Orwell, redigiu livros que são críticas frontais às tendências totalitárias presentes não só no fascismo, mas também no comunismo e em movimentos e ativismos de esquerda, grosso modo.

Observações lúcidas o bastante para serem válidas hoje. Não por acaso, Orwell também criou uma expressão que dá nome e embasa o conceito de vigilância onipresente --- reguladora, voyeur, panóptica --- por trás do formato de reality show de maior sucesso hoje em dia: Big Brother. Fez isso em sua permanente crítica às tendências totalitárias presentes até mesmo na sua opção política pessoal: o socialismo democrático. Por igual, versou acerca de o quanto o aporte de novas tecnologias têm reforçado o controle do estado, independente de seu espectro ideológico. Orwell já havia lutado ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola quando escreveu sobre o tema da arte engajada. Além de substrato livresco, tinha vivência pessoal prática de seu assunto. E a isenção com que relata o extermínio de anarquistas pelas forças stalinistas em Homage to Catalonia (1938) é tocante

Pode-se de imediato evocar Orwell quando se pensa na questão de Bacurau como argumento. Ao mesmo tempo como obra de arte e como fábula política. Algo nos moldes de Animal Farm (1945). Pois tudo indica que Bacurau, enquanto projeto, antedata um tanto a chegada de Bolsonaro ao poder. E também que o projeto inicialmente voltava-se mais para um exercício de gênero [cinematográfico] com expresso comentário social. Um comentário social, de resto, presente, desde os curtas de formação, em filmes anteriores de Kleber Mendonça Filho.

No rumo de uma vontade de engajamento análoga, Cannes tem construído controversa relação com o cinema brasileiro. Essa relação é baseada em notáveis equívocos. O maior desses equívocos foi, sem dúvida, O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962). E também o mais apreciável deles. (Muito mais, aliás, que o prêmio concedido a Bacurau). Embora ganhar prêmios não faça mal ao cinema brasileiro. Mesmo que esses prêmios concedam mais ao momento político e a certa vontade de arte engajada que propriamente à excelência dos filmes. E, contudo, não resta equívoco na constatação de que O Pagador de Promessas é muito mais filme que Bacurau.

No caso, esse Bacurau em projeto, ainda não "vexado" por Bolsonaro, abarcava o motivo do western --- fornecido um tanto em espontaneidade pelas locações, pelo vilarejo no Seridó adusto, durante uma seca verde, mas fazendo as vezes do Oeste de Pernambuco --- mixado a certo clima de terror e farsa presente na atmosfera histérica e desfaçata dos filmes de John Carpenter, uma das referências prezadas por um dos co-autores de Bacurau. E, então, a escalada de Bolsonaro ao poder acirrou bastante a razão de combate do filme. Tornou-a mais urgente. E havia motivos de sobra para tal urgência.

Mas talvez, ao tentar agregar ao filme um viés mais engajado, de combate, os co-autores tenham tornado ainda mais confusa uma premissa inicial que era já compósita, um tanto errática. E nesse movimento, descuidaram-se. Não atentaram para o fato de que muitas vezes a própria militância política em si --- seja qual for o espectro --- porta consigo (e indissociavelmente) uma tendência autoritária, que a franqueia ao sofisma. Um sofisma que se traduz num mar de clichês. E a cada desses clichês corresponde um desvio de liberdade concernente à tarefa do artista: uma tarefa não menos formal.

Clichês traduzem concessões do artista à causa. Pois nem todo artista tem de ir aonde o povo está. Ou cumprir com essa fórmula. No fundo, uma fórmula demagógica. Populista. Ou, em outras palavras, nem todo artista possui a clarividência e autocrítica de Orwell para praticar tão escrupulosa sorte de esquizofrenia. (Afinal, as esquerdas brasileiras fazem uma tremenda ginástica para fintar autocrítica ao não reconhecer que foi esse mesmo povo, contíguo ao artista, presente no espaço mesmo aonde o artista "teve de ir" --- engajado, interagindo com --- que elegeu Bolsonaro). E, sendo assim, investiguemos algumas das questões presentes em Bacurau. Em especial, a ligação do filme com o delicado momento político brasileiro em que foi finalizado e lançado. E o quanto esse afã de engajamento termina por atingir em cheio a integridade do longa.

A questão aqui vai mais por uma distância. Há uma realidade tal qual existe: deformada, injusta, machista, racista, preconceituosa, desigual. Historicamente sedimentada numa imensa vala entre classes, preconceitos, etnias, poderes de compra, mais valias. E há uma realidade tal qual a esquerda gostaria que existisse, corrigindo parte dessas distorções. Onde a porca torce o rabo é no momento em que se confundem essas distâncias, entre o conserto da realidade e a realidade mesma, ao se versar sobre elas. Ao representá-las num romance, peça ou filme.


Há, aqui, uma barafunda. Porque mesmo numa obra de ficção, ao se propor uma realidade social, esta deve assemelhar-se minimamente à "vida real" --- mesmo na forma do delírio. Do Pays de Cocagne ou da distopia. E, no entanto, cá pelo Brasil hoje, essas realidades ficcionadas acabam, via de regra --- e como num exercício colegial, naquela clássica redação "Minhas Férias" --- mais próxima de certa fórmula utópica de esquerda. Bastante previsível. Um tanto retórica. E onde pululam razões de combate. Nesse rumo, quase religiosas, essas razões. Quer dizer, perfeitamente sectárias em seu extremismo. E invariavelmente destilando um senso ingênuo de transgressão. Ou de confrontamento. Além de um mar de boas intenções. Ou de boutades. Em geral, traduzidas por lugares comuns sem ter mais fim. O inferno, no entanto, vem por achar certas soluções pontuais para defeitos societários mais crônicos. Soluções que se mostram tão ou mais cruéis do que a velha ordem, a que acabaram de destituir.

Por mais distópicas que sejam as ameaças que a rondam, ao repeli-las, não se consegue propor modelos sociais maduros, mesmo na superfície. Na casca. Quer dizer, mesmo num filme superficial como Bacurau. E, assim, aqui pelos trópicos, toda a trama de um romance, conto ou filme segue impregnada de clichês comportamentais ou de conflitos de classe caros à esquerda. A não ser que seja escrita pelo gênio de um Machado, de um Graciliano, de um Rosa. Em geral, nao vai além de uma coleção de transgressões que soam um tanto pueris. E as próprias personagens não têm muitas chances de florescer na água da história. Tornam-se planas, previsíveis, robotizadas. Zumbis de esquerda. Proto-modelos de como as pessoas deveriam reagir, na "vida real" diante de tanta "caretice". Ou de tanta "alienação", "opressão". Porque prestam-se apenas a serem ilustrações de como supostamente o mundo seria melhor. Ainda que frequentemente constate-se que esse "melhor" --- quando excessivamente racional ou bárbaro --- é monstruoso. Empata com a distopia que veio render. Ou, se não tomado em re-flexão, pode constituir-se apenas numa re-distopia.

Toda essa tendência populista de esquerda verga-se ao número. Se não pode convencer com argumentos, há que agir de duas formas: 1. propondo uma série de ambiguidades e impasses que instalem algum senso de metáfora, de meia-palavra, de insinuação; e 2. reforçando um argumento raquítico pelo número. Pelo excesso. O que, aliás, vai muito bem com tendências gerais do país, desde colônia. Algo que preza a falta de reflexão, a falta de concisão. O barroco. A frase longa. Bem adornada. Populista. Carismática.

No segundo caso, em Bacurau, o excesso de personagens nos impede de acompanhá-los. E sobretudo de surpreender neles um mundo interno. Íntimo. Mais ou menos ordenado. Que refrate os ásperos rigor e beleza da paisagem. E é como se tais personagens vivessem o tempo todo performando atos públicos: velório, enterro, esconder-se do prefeito, partilha de gêneros alimentícios, organização da defesa, deglutição coletiva de psicotrópico, etc. Por outro lado, há algo intrigante: se não participamos da intimidade das personagens, fica implícito que elas só tem vida pública, não privada. Embora uma dimensão da vida privada que intersecciona com a pública esteja ausente: a ocupação de cada um. Quais são os heróis de Bacurau, e o que fazem?

Não sabemos muito acerca do caráter e da ocupação da maioria das personagens. Isso, porque não as vemos trabalhando. Pouco nos é dado saber da recém-falecida matriarca (Lia de Itamaracá). Senão que detinha grande ascendência sobre a população. Não temos, contudo, uma pista de como ela se ocupava. Ou de como conquistou tal liderança --- orgânica, consensual.

Podemos concordar que esse herói não pode ser a médica alcoólica e resmungona (Sônia Braga). O que ela acrescenta à trama: abnegação? Altruísmo? Algum mínimo senso de autodisciplina num meio em que ninguém a tem? Certo auto-sacrifício em prol da comunidade? Alguma transgressão por ser lésbica? Será que ela pode ser proposta como modelo? Improvável. Essa heroína não pode também ser a paciente que usa o SUS para inteirar-se de sua própria ressaca. Aqui há apenas ignorância. Indolência. Ou um humor um tanto questionável.

Devagar com o andor, esse herói, não pode ser o travesti que mostra os documentos sob a chita, ao andar na calçada de um vilarejo coalhado de crianças --- a ponto de uma cena ser protagonizada por essa meninada: um folguedo noturno que finda em tragédia. Não pode ser o sujeito que vem tirar uma soneca nos leitos vagos do ambulatório: há certo tom de farsa, de faz de conta, nesse cotidiano de Bacurau --- embora não o bastante para mangar do chavão através do qual o Nordeste é representado nas telenovelas.

Não pode ser o DJ, que opera um paredão de som, e faz as vezes do mestre de cerimônias. Não pode ser o assassino, cujos crimes são celebrados num vídeo-antologia, por constituir-se numa espécie de "celebridade" local. (Reparem como o próprio modelo de personalidade local é repelente: um sujeito que é um filho famoso da terra, porque pratica latrocínios). Não pode ser um segundo travesti, que age como o Che Guevara do Agreste. Como a reencarnação de Lampião e Maria Bonita em simultâneo. E cortando cabeças, numa truculência sumária e miliciana, condenável por qualquer Convenção de Genebra. Numa sede de sangue e vendeta que lembra mais Moreira César que Antônio Conselheiro.

Prosseguindo, não pode ser o repentista, que celebra o fato de São Paulo ser "um paiol". De um jeito que faz relembrar vivamente o "quanto pior, melhor", de certa facção guerrilheira, anos 1970. Não pode ser o casal de meia-idade, que cuida de plantas na estufa rústica. E costuma passear nus seus corpos disformes. Isso numa região em que a pudicícia com o corpo é obsessão histórica. Esse casal faz uso de bacamartes como ninguém.

Em curso, o herói não pode ser o homem desse casal, que vive a distribuir psicotrópicos de graça. Uma droga que ninguém sabe bem de onde veio, quem a fabrica, quem a financia, se causa dependência, quais seus efeitos colaterais. Ou ainda que poderes paralelos são fortalecidos mediante seu tráfico. Ou muito menos quem convenceu toda população a tomar semelhante treco.

Noves fora, se há alguém com algum mínimo sentido civilizatório nessa fábula mal ajambrada, é o professor. É pouco em meio a uma comunidade numerosa. E faz lembrar a passagem do Gênesis em que Abraão barganha com o Senhor pela não destruição de uma cidade, se nela houver certa quantidade mínima de justos. É provável que Bacurau saísse reprovada.Como saíram Sodoma e Gomorra. Praticamente, não vemos ninguém trabalhando no vilarejo. A Dra. Domingas, ela própria de ressaca, atende pacientes igualmente ressaqueados. Não há muito a fazer, além de festas sazonais. Parece que no passado, ela empreendeu alguns partos. Mas, em geral, gasta mais suas energias em rusgas insignificantes. Supérfluas. Por exemplo, em medir-se com a Matriarca recém-falecida, e julgar-se importante ou desimportante a partir desse acareamento. Além disso, assoma deslocada a cena em que convida Michael (Udo Kier) para uma refeição.

Pacote é um bandido. Não está acostumado ao trabalho regular. O mesmo se pode dizer de Lunga (Silvero Pereira) e Bidê (Uirá dos Reis), que por sinal abrigam-se à distância do povoado, numa espécie de guarita colada à barragem de um açude seco. E ali afiam sua guerrilha --- ação indissociável de pilhagem. Uma espécie de neo-cangaço de aspecto visual não distante de um Mad Max Fury Road estilo Cinema Novo. Não se sabe qual a ocupação real de Maciel ou de Raolino. Num dado momento, tangem os cavalos de volta para uma fazenda, embora não ponham muito empenho nisso. Até as prostitutas parecem trabalhar pouco em Bacurau. Por igual, os exterminadores gringos não surgem muito vinculados a uma profissão anterior. Seja ela qual for --- se ligada à indústria bélica, ao mercenarismo ou ao agenciamento de segurança. (Será que vivem como matam: de brisa?). Numa espécie de gratuidade, de matar por matar, que faz lembrar a arte pela arte?

Ao menos, ficamos sabendo --- num contraste único e insólito --- que o motoqueiro de trilha (Antônio Sabóia), era assessor de um desembargador. O tipo do cargo decorativo no Brasil. Ocupado por parente ou aderente. Uma sinecura, associada a nepotismo. Uma função, na prática, vinculada a não se fazer muita coisa. Não sabemos quase nada de sua companheira de motos e trilhas (Karine Teles), além do que ela revela num diálogo meio criptográfico com o cantador (Rodger Rogério): é do Rio de Janeiro. (Quase todas as réplicas no filme são assim, erráticas. Truncadas. Sovinas. Subentendidas. Meio improvisadas. Não guardam uma linha de coerência. Não seguem um plano. Há um excesso de personagens. E elas não se suplementam. Não nos é dado conhecer muito mais sobre eles a partir do desdobramento da trama. O fio da trama não nos conduz à intimidade deles. À humanidade deles. Às suas fraquezas, "freakesas" e contradições. E justamente porque eles possuem apenas uma persona pública).

O certo é que ter um ofício, ocupar-se, adestrar-se para uma carreira, não parece ser algo relevante dentro da perspectiva coletiva de Bacurau. Ao que tudo indica, Teresa (Barbara Colen) retorna ao vilarejo muito mais para o funeral da avó do que por qualquer circunstância vinculada a trabalho. Mas estica essa estadia à reboque dos acontecimentos e de certo affair com Acácio (Thomas Aquino). Ainda que não a vejamos ocupando-se com muita coisa no cotidiano, após o enterro da avó. Todos em Bacurau seguem um tanto nessa toada. Não há muita gente ocupada: padeiro, barbeiro, padre, vaqueiro, merceeiro, farmacêutico, dono de funerária, pastor, lavrador, etc. Uma indicação profissional relevante. Como em qualquer povoado que se preza. Os únicos que surgem de fato trabalhando, são a médica, o professor, a dona de uma venda, o motorista do caminhão pipa e, por incrível que pareça, Toni Jr., o contestado prefeito.

Logo, quando o garoto responde ao forasteiro:

---Quem nasce em Bacurau é gente --- talvez não diga exatamente uma verdade. Pois as personagens em Bacurau são por demais prototípicas e clichês para parecem humanas, complexas, contraditórias. Além de haver muita personagem para pouca história corrente, coerente.

Como alegoria de uma comunidade sertaneja, Bacurau é um malogro. Até porque na "vida real" trabalha-se pesado no Sertão. Mas como fábula política, o longa também é algo inconsistente. E se é isso que a esquerda tem a propor como alternativa a Bolsonaro, estamos mal pagos. Bacurau não malogra tão-só como fábula, mas como filme. E como modelo alternativo de comunidade. Como proposta de resistência. E como panfleto.

Talvez porque, com a exceção do professor, falta a Bacurau, entre outras, uma elite pensante. A Doutora Domingas, por exemplo, passa longe de deixar uma contribuição razoável nesse sentido. Não é a única. A própria noção que Teresa, Pacote, Lunga, Carranca e os demais têm de vida coletiva é um tanto tosca.

Senão, vejamos. Um dos aspectos mais lamentáveis da plataforma de Bolsonaro é a apologia das armas. Obviamente há toda uma relação erótica, perfeitamente pueril, investida nessa apologia ao uso de armas. Desde mímicas com arminhas até o presidente praticando tiro num stand das forças armadas. A quantidade de patentes ressaltadas em candidaturas dá também testemunho desse impulso, digamos, bélico. E, no entanto, o museu de Bacurau, o local onde se preserva a memória coletiva mais preciosa à comunidade não é muito mais que... um depósito de armas. Um arsenal. Grave contradição.

Logo, pelo exposto acima, o herói não pode ser o coletivo. Porque apenas uma personagem se redime --- o professor --- em meio a um vilarejo indigente, no meio do nada, onde ninguém bate um prego, e poeira acoita os dias. E, então, que a barbárie, o desmazelo e a violência sejam a saída para a população do vilarejo não traduz algo auspicioso. Pois a defesa da comunidade dá vazão a um banho de sangue. A um banho semelhante ao de O Som ao Redor, apenas revertendo o fluxo da queda d'água. Ao invés de despencar sobre os ombros dos carrascos, esse fluxo agora fertiliza igualmente a todos: opressores e oprimidos. Não há a mínima busca de consenso em Bacurau. De solução continuada, conversada, civil. Há sangue. Revanche. Vendeta. É uma fita que refrata a raiva que perpassa a sociedade brasileira. Inclusive em sua preguiça de forjar consensos válidos. Consensos suficientemente sábios a ponto de evitar que um populista de quinta categoria chega ao poder pelo voto democrático.

Do mesmo modo que a situação de trabalho dos moradores surge um tanto improvável, não parecem muito factíveis na trama as razões dos forasteiros para atacar a comunidade. Mesmo que a esse zelo se interponha algumas alegorias cinemanovistas ou glauberianas. Do porte de Antônio das Mortes. Seria Michael (Udo Kier) uma regressão para o reacionário desse mítico matador dentro da mixórdia de Bacurau? Improvável. O certo é que todos --- inclusive os gringos --- vivem de brisa, nessa fábula.

Até porque nos filmes anteriores de Kleber Mendonça Filho, as pessoas trabalham. Ou encontram-se aposentadas. E isso é algo determinante para as respectivas tramas. Um ofício é algo central na vida delas. Há uma busca de certo ethos de realização pessoal. Certo sentido civilizante, de doação ao coletivo. Ou simplesmente de se auferir alguma renda, ganha pão. Subsistência. Necessidade de pagar boletos. Contas. Ainda quando a personagem em questão bandeia-se para fora da lei. Caso do garotão de classe média, que desanda a puxar carros para pagar seu traficante de estimação. E, logo, nesses filmes anteriores, há algo calcado na realidade prática, não apenas supostos distanciamentos brechtianos um tanto mal compendiados. Ou uma mera antologia de cifras e alegorias de esquerda. Ou escusas referências a John Carpenter, Sergio Corbucci e Sergio Leone.

Ao contrário desse vale-tudo que é Bacurau, há em O Som ao Redor e em Aquarius certa tentativa, certa busca da compreensão histórica de todo um contexto. E esse contexto, em ambos, surge muito melhor conjurado que em Bacurau. No tempo, no espaço. Um modelo coletivo refratado em vivências pessoais. Algo mais orgânico, amplo, estruturado, que empresta dignidade às personagens respectivas desses dois filmes. E um vívido pano de fundo para a ação delas. Há o casal, que se conhece justamente porque o sujeito é corretor de imóveis, e a garota deseja alugar um. E então o casal busca uma aventura a dois em meio a apartação social tão peculiar ao bairro. E, nesse movimento, nos desvela uma cidade, um modo de vida.

Mas essa dignidade também estende-se à mulher madura, já aposentada, que luta com todas as forças por seu espaço de memória. Um espaço que, por sua vez, é duramente atacado pelas artimanhas dos funcionários da construtora, num selvagem vale tudo. Através dessas personagens, filtra-se um projeto de cidade. De poder. De país.

Em tempo, essa premissa inicial de trama é um tanto mais enfática, melhor tricotada, em O Som ao Redor que em Aquarius. Mas também diz presente em Aquarius, embora isso sejam outros quinhentos. Como são outros quinhentos, que no Som ao Redor, a lógica rural do engenho ainda se faça tão presente na organização da vida urbana, quase quinhentos anos depois. E que esse pressentimento na imagem pareça tão orgânico, tão bem decalcado da obra de Gilberto Freyre. E também exposto em esforços anteriores do próprio Kleber Mendonça Filho. Caso de Recife Frio.

Esse vetor civilizatório, esse sentido de nexo coletivo, em contrapartida, vê-se completamente estilhaçado em Bacurau. Pois se há algo que define Bacurau: uma certa vontade de leitura política da realidade que nunca efetiva-se. Uma sorte de insinuar algo, que não se dá bem a ver o que é. (Mas se colar, colou). Algo que não engancha sua tese em outras. Não tem elo, continuidade. Está mais ao modo de um armador para uma rede imaginária de devaneios, impressões, hipóteses. Fartos discursos de resistência. Feito um varal onde se estendem boas intenções políticas, um tanto avulsas. Disparatadas. Sem liga. Uma antologia puída e formulaica de discursos contestatórios. Embora nenhuma dessas proposições, desses 'innuendos' pareça remotamente bem tramado o bastante para propulsionar o enredo do filme. Conduzir sua história. Ou mesmo traçar o perfil das personagens. Dessas personagens mais numerosas que densas. Já que essas figuras não assomam complexas ou dignas. (A exceção é o professor). E isso tudo, a despeito de a causa ser louvável: tentar contrapor-se, enquanto alegoria, ao proto-fascismo recém-empossado no Brasil.

Talvez a maior tragédia de Bacurau, uma tragédia ainda maior que o gratuito ataque dos gringos, seja o de que não há bolsonaristas em Bacurau. Não há dissenso. Todos lutam unanimemente pela "libertação" do vilarejo. E, logo ninguém questiona o modo como se está a efetivar esse levante. Não é precisamente assim que se constituem os totalitarismos? Por ausência de espaço para contestação? Quando muito há desertores. Como o comerciante que foge de carro no breu da noite, com a esposa. Mas ambos acabam sendo mortos pelos invasores.

Nesse rumo, pode-se afirmar, com toda certeza, que tramas de telenovela dos anos 1980 eram mais elaboradas. Orgânicas. "Pensamenteadas", como diria Manuel Bandeira. Plenas de logopeia, como Ezra Pound caracteriza aquilo que se devota à dança das ideias. À artimanha das boas relações de causa e efeito. E, nesse ponto, Bacurau carece de certa valsa. De certa dança de ideias quando é posto em paralelo com os filmes anteriores de Kleber Mendonça Filho.

Noutra analogia, compare-se O Bem Amado ou Roque Santeiro com Bacurau, e se tem a medida da regressão imaginativa de todo um país. Em O Bem Amado e Roque Santeiro há muito mais imaginação desdobrando-se em camadas de cotidiano. Personagens contraditórios. Muito mais boa sátira social condensada em magmas expressivos de som e imagem. Muitas mais nuances. Complexidades pouco redutíveis à "arte engajada". Embora, evidente, Roque Santeiro tanto possuía seu explosivo quinhão de engajamento, que foi sumariamente proibida quando se tentou produzir essa telenovela pela primeira vez, em 1975, auge da Ditadura. E só dez anos depois, já em plena distensão pós-Anistia, ela pôde chegar aos lares e bares brasileiros.

Como fábula política, o primarismo de Bacurau é tão devastador que chega a ameaçar a produção anterior de Kleber Mendonça Filho. Pô-la entre parêntese. Depor contra ela. Filmes como Roma (2018) ou mesmo distopias mais genéricas e vendáveis, como Snowpiercer (2013) --- uma produção cara e elaborada, depois convertida em série --- assomam bem mais coerentes. Mas, por igual, melhor confeccionadas. Mais cinemáticas, consequentes, sutis, orgânicas, bem humoradas. Filmes melhor contados, cortados, prontos no som e na imagem. Mais plenos de contradições, sim, mas também de forma. E, por tudo isso, também melhores filmes políticos. A tecer a crônica de uma sociedade histórica específica. Real ou imaginária. Fiéis a seu tempo. À necessidade de fábula que esse tempo demanda. À ilustração de permanências sedimentadas historicamente. À necessidade de se contrapor algo inteligente à obtusidade destrutiva, excludente do totalitarismo. Ou da ameaça dele.

Por outro lado, não se pode fingir que um filme seja melhor do que é apenas porque se contrapõe a Bolsonaro. Há muitas formas de se contrapor a Bolsonaro. Algumas dessas formas, no entanto, situam-se perigosamente próximas do tosco populismo de Bolsonaro. E, ao que tudo indica, há muito desses momentos populistas em Bacurau. Há muito de Bolsonaro em Bacurau. A incivilidade, a reação bárbara, irracional e violenta da população, é a mesma do gado bolsonarista. É cega. Há muito de, no antídoto, portar-se o veneno que se tenta inocular, em doses maiores do que recomenda alguma bem vinda autocrítica antiofídica ou farmacológica. Ou, em outras palavras, uma autocrítica política. Capaz de, entre outras, reconhecer e dimensionar os equívocos de Lula da Silva e do PT. Pois em Bacurau, como na postura da esquerda, há muito de jogar o bebê fora junto com a água suja. Algo próximo da ação suicida das esquerdas na eleição de 2018.

Talvez porque a compreensão que Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles têm do Sertão seja um tanto superficial diante da destreza que demonstraram ao tratar do Recife. Até porque ao falar do Recife conseguem transcender uma série de clichês toscos e um tanto naïfs, que cercam permanentemente o Nordeste. Ou meramente o modo como o Nordeste é representado. Em especial, nas folhas do Sul Maravilha. Na mídia da região que não só vê o Nordeste como seu 'outro', como pretende difundir seus interesses regionais --- que chocam-se como os do Nordeste --- confundindo-os propositalmente com os "nacionais". Justamente para melhor colonizar esse "outro". E, portanto, escolhendo o Nordeste como sua antítese. E, talvez, o dado novo nesses filmes anteriores seja exatamente a presença de uma classe média urbana numerosa e ativa no Nordeste. Uma classe média que, em qualquer parte do mundo, é sinônimo de modernidade. De certa justiça social, se compõe a maioria significativa.

Mas curiosamente, esses velhos clichês --- exorcizados em O Som ao Redor e Aquarius --- retornam para assombrar Bacurau. E, assim, o sol, as cactáceas, o calor, a precariedade, o primitivismo, a feira, o coronel, o cordel, o jagunço, o cantador, a água escassa, a seca verde, o vaqueiro, os políticos corruptos, o sotaque, a religiosidade exacerbada e certa fealdade dos tipos humanos contrastando com uma natureza exuberante; alçam-se a um primeiro plano. Tudo que é exotizado pelo Sudeste retorna. Retorna em seu potencial de exotizável. Se repararmos bem, não há o menor vestígio de classe média. Em Bacurau, todos são pobres --- não obstante alguns índices incipientes de modernidade.

Mas também não existem gradações, porque não se vê gente miserável --- ou ao menos mais pobre que outros --- como se encontra em qualquer buraco deste país. O certo é que, como pobres, os bacurauenses são vistos por essas premissas ingênuas, da esquerda brasileira. Como merecedores, mais ou menos automáticos, do Reino dos Céus. Ou como se sua cultura resultasse em algo "sagrado". Como se isso "definisse" o Sertão. E tal pobreza, em si, fosse apenas um patrimônio comum. Um patrimônio cultural da humanidade. E não também uma maldição comum. Tal estagnação. Tal primitivismo imobilista, e sem peias. Um tanto renitente à modernidade e seus signos. Em dessincronia com seu tempo. Ainda associado ao mando de caudilhos. E redimido por re-caudilhos violentíssimos (Lunga, Pacote). Uma modalidade de cafundó do Judas onde perdura uma sorte de comunismo primitivo, reforçado pela cena em que há uma distribuição de gêneros à frente da igreja. Nela, todos são exortados a não pegar mais do que necessitam. Ou a não compartilhar certos itens doados pelo prefeito.

Chega a ser patética a tentativa de retirar dignidade de onde é impossível obtê-la. Como essa ingênua saída: a de uma população redimida por uma poderosa droga coletiva. Uma droga que, curiosamente, afina o pensamento coletivo. Ou, melhor dizendo, interfere até na sua inconsciência. E as deixam --- consciência e inconsciência coletivas --- mais ou menos alinhadas. E como que as direcionam no mesmo sentido. Como um impulso subterrâneo e gramsciano. Cujo vetor prático é uma espécie de Big Brother químico. Um psicotrópico capaz de conduzir todo um anseio coletivo no rumo do antifascismo. Chega a ser patético. Agora todos estão equalizados inconscientemente. E nessa sintonia inconsciente, a serviço da 'revolução'.

Ocorre que, nesse ponto, é exatamente o contrário: o fascismo é que se constitui, ele mesmo, numa poderosa droga coletiva. Como aliás ocorreu e prevaleceu nas eleições de 2018. Uma droga que propicia uma viagem no rumo de certa padronização radical, intransigente e inebriante de ideias. (Uma padronização cultural infelizmente também almejada, como um selo, por certos coletivos de esquerda. Só que sob outros signos, escamoteados por um discurso de ocupar espaços estratégicos, à Gramsci. Nesse sentido, através de uma meticulosa ocupação de espaços nas redes e aplicativos sociais, a direita adotou Gramsci. A seu modo. E para eleger Bolsonaro. Nesse mister, compreendeu melhor a natureza dessas redes. E foi bem mais eficiente no seu uso eleitoreiro do que a esquerda).

Nisso, sim, ambas as vertentes políticas assemelham-se ao escapismo utópico dos paraísos artificiais. E, logo, a distância entre o fascismo e as ideias que comandam a reação coletiva da população de Bacurau é um unha de mindinho. Um esmalte de unha. Um delírio tão forte, ao ponto de transfigurar as (inicialmente) vítimas em carrascos sanguinários e inamovíveis. Não há qualquer vestígio de humanismo entre esses líderes bacurauenses, da estirpe de Lunga ou Pacote. E os crimes que praticam não são mais leves tão só por seus autores serem "excluídos" sociais. Pois, ao final do combate e do filme, eles exterminam seus inimigos da mesma forma sanguinária e irracional como vinham sendo por eles trucidados. Sem processos, julgamentos ou tribunais. (Nesse aspecto, aliás e dentro da lógica do filme, surge um tanto leve e, algo, pueril o castigo dado ao prefeito. Até porque este era aliado dos forasteiros).

Não raro, os valores de uma comunidade de oprimidos se dão a ver, entre outras, por contraposição aos valores de seus opressores. De seus opressores menos abstratos. De seus vilões mais imediatos, circunstanciais. Não exatamente aqueles vilões genéricos. O capitalismo. Ou a Rede Globo. Ou o Centrão. Ou o fascismo. Mas Toni Júnior. Ou os gringos. E, no entanto, quando se compara Toni Júnior a Sinhozinho Malta, p. ex., se têm a real dimensão da complexidade do segundo em relação ao primeiro. E não só em termos de atores que representam uma e outra personagem.

Odorico Paraguaçu e Sinhozinho Malta constituem, como se não bastasse, também a nata de sua comunidade sob vários aspectos: perspicazes, bem humorados, charmosos, carismáticos. Vilões, de algum modo, capazes de cativar as pessoas. Mais ou menos como na política. Na vida real, Sarney chegou a cativar Glauber. Vender-se a ele como o dado novo. Ao menos ao ponto de este tomá-lo como assunto. Ou suposto ponto de inflexão. (Para só, então, o feitiço virar duplamente contra o feiticeiro: não só em Maranhão 66 (1966), mas sobretudo em Terra em Transe (1968)).

E, ainda assim, um populista é um figura compósita. Seja de direita (Bolsonaro), seja de esquerda (Lula). Pois é nesse espaço verboso, retórico, nesse pântano das interlocuções e marqueterias políticas que medram as astúcias do populismo. A capacidade de apresentar-se como intermediário entre a miséria e sua solução. Ou paliativo. De converter as pessoas em eleitoras, partidárias, "clientes", "fregueses" desque tomando-as como "afilhadas". "Clientes", no sentido sociológico do termo. E não só pelo mando, ou pela compra. Mas igualmente pela persuasão, pelo carisma, pela presença de espírito, pela argúcia. Desfaçatez. Por dizer o que as pessoas querem ouvir. No sentido mais rasteiro. Mais tosco. Por desreprimir certos interditos. E por essa descompressão ser torpe e 'irrazoável'.

Na melhor escola do populismo latino-americano, de Perón a Vargas, desaguando em Lula e Bolsonaro; Odorico Paraguaçu e Sinhozinho Malta se fizeram. São trunfos do populismo. Testemunhos fiéis de uma longa linhagem sebastianista, caudilha. De esquerda e de direita. Algo com uma organicidade histórica. Capaz de fascinar mentes brilhantes, como a de Fernando Pessoa. Logo, há também nessas criações de Dias Gomes a truculência e o caudilhismo que àquela altura se podia divisar em um político da estirpe de Antônio Carlos Magalhães. Ou de Paulo Maluf. Ou de Leonel Brizola, do outro lado do espectro.

Paraguaçu e Sinhozinho Malta não deixam de possuir, no entanto, muitas das melhores qualidades da própria comunidade à qual pertencem --- apenas empregando-as para fins espúrios. É tanto assim, que suas artimanhas de manipuladores políticos são uma atração à parte, nas respectivas telenovelas. Sinhozinho termina por angariar mais simpatia até do que o próprio mocinho: Roque Santeiro. O que explica, ao final, haver conquistado o coração da Viúva Porcina. Mas também o dos telespectadores. E, logo, nos dá ver um tanto de como esses telespectadores de fato pensam. Ou como, na sua "candura", são capazes de eleger alguém como Bolsonaro. Ainda que, em larga medida, apenas como rejeição acrítica de um projeto frustrado e reconhecidamente corrupto (e, depois, inepto) à esquerda.

Não é assim com Toni Jr. Porque Bacurau não nos dá a conhecer melhor a personagem do prefeito. Ela é tão plana, unilateral e previsível quanto as demais personagens. Ela aparece apenas para ser recusada. Ou "já" para ser recusada. Aquele típico prefeito que vem pedir votos num distrito esquecido, só lembrado às vésperas da eleição. Em Bacurau, parte-se já do princípio --- um tanto questionável --- que o prefeito é hostilizado em bloco por toda a população do vilarejo, sem exceções. Pois, quando de sua visita, não sai um só puxa-saco a recebê-lo.

Na realidade, é difícil uma unanimidade assim. E um prefeito elege-se justamente por ser capaz de fissurar tal consenso. De aliciar algumas lideranças em meio à própria comunidade. Comprá-las. Mas também de, através delas, ganhar outros votos por convencimento. Por ser capaz de lançar um grupo contra o outro ao sabor de interesses, lealdades, circunstâncias. E, então, rachar, dividir essa comunidade, entre tantas outras, no município, para poder se eleger. E melhor manipulá-las. Em analogia, é como o mercado faz hoje com as minorias. Preferível que essas minorias briguem entre si, atomizadas, sideradas pelos próprios interesses, pelo narcisismo de cada, do que tenham uma plataforma comum. Pois agindo assim, elas até inauguram novos nichos de consumo, e o mercado agradece.

Ao propor uma reação unânime da população do vilarejo contra o prefeito, o longa apenas reforça mais um de seus insidiosos clichês. A líder maior do povoado não é um patriarca. Mas uma matriarca. E ela não é branca, senão negra. Algo, convenhamos, raro no Sertão, uma das regiões mais endemicamente violentas, machistas, imobilistas e racistas do país. (Por séculos, e ainda hoje). Latifundiários, os que detêm o mando, são, em geral, homens, brancos e conformam uma elite. São os pais ou avós dos doutores. De gente com anel no dedo, a exemplo da Dra. Domingas. Ou eles próprios estão de anéis: bacharéis, advogados, engenheiros, médicos, agrônomos, donos de cartório, padres à antiga. São os que detém o monopólio do saber formal, da educação formal, numa região onde o acesso à educação formal tem sido historicamente escasso ou negligenciado. Geralmente são do sexo masculino. Como Sinhozinho Malta. Mas há exceções. Embora só aqui, já vão para quatro exceções-clichês: o patriarca é matriarca. Essa matriarca, por seu turno não é branca, sequer mestiça, é negra. O médico é mulher. Essa mulher, lésbica (e alcoólatra). Já o bandido mais temido em Bacurau é um travesti --- quando, via de regra, travestis são muito mais vítimas que perpetradores de violência. (Boa parte de sua força moral, aliás, vêm dessa circunstância: de serem vítimas).

Porém, se há o desejo de fazer travestis assomarem menos passivos, talvez Lunga não seja exatamente o modelo mais comendável a propor. Há também algo cronicamente da esquerda tupiniquim nessa tara por endeusar bandidos. Uma modalidade de guerrilha que, no fim das contas, está a um passo da milícia fascista. Ou se confunde com ela, nessa pretensão a um subtexto social para certas bandidagens --- como no caso de Pacote --- onde não há nenhum.

Pacote, alguém que mata friamente os outros em assaltos à mão armada, torpes latrocínios, é visto como um herói em Bacurau. Alguém quase tão temido e respeitado quanto Lunga. Ninguém questiona a fundo a violência cega que comanda a ação de ambos os facínoras, Pacote e Lunga. E, logo, eles são aceitos como defensores legítimos da comunidade. Mais que isso, como ídolos. Talvez ninguém questione isso, porque a própria ameaça à comunidade é posta em termos perfeitamente débeis, inconsistentes: o que move os gringos no abate dos bacurauenses?

Talvez não houvesse problema se um ou outro desses aspectos --- a matriarca negra, o bandido travesti, o assaltante reivindicado como protetor e herói, a médica beberrã, lésbica e excêntrica, a liderança de um professor negro --- ocorresse, como elemento surpresa. (Mas em singularidade. Avulsamente). Não todos esses elementos ao mesmo tempo. E desafinasse o coro mais comezinho da realidade. Porém, o busílis é que tal exceção é a regra no vilarejo. O que obviamente compromete a coerência, a consistência da narrativa

Bacurau bem podia ter uma matriarca ao invés de um patriarca. E, indo um pouco mais longe, essa matriarca podia ser negra. Ponto. Ou ao invés disso, Bacurau podia ter uma médica --- a quem todos confiam seu bem estar --- alcoólatra e um pouco descompensada. (Aparentemente mais colonizada pelos bacurauenses do que o contrário. Embora talvez seja uma das poucas a ter passado por uma universidade no vilarejo. Uma das poucas autoridades reais, a partir do específico de sua formação). Ou ainda, a principal liderança prática pudesses ser um professor negro, após a morte da matriarca, sua mãe. Ou, quem sabe, ao invés disso, Bacurau pudesse ter um sanguinário bandido gay, vocacionado a liderar a resistência. Ou, no lugar deste, um assassino, oriundo do local, temido, admirado, detendo alguma bizarra ascendência, em termos de liderança.

Mas talvez o vilarejo só comporte uma ou duas dessas exceções à regra. À norma padrão da vida real. Tudo isso junto ao mesmo tempo, somado à reação unânime de toda a população --- agindo sem dissensões, sem titubear ou trair a causa do povoado --- inviabilizam um bocado de coisas. A primeira circunstância mais grave é a de matar a unicidade de cada personagem, reduzindo todas as personagens a um grande coro.

Ora, vozes corais são unânimes. Extinguem a particularidade, os traços mais marcantes e específicos de cada personagem. E, agindo assim, lhes retiram boa parte da força dramática. E as personagens de Bacurau estão por demais carregadas de estereótipos para serem factíveis. No caso, de estereótipos de esquerda. E, antes de um lugar em transformação, Bacurau surge como o próprio local já transformado. Transmutado numa comuna. Numa ilha de esquerdismo guerrilheiro e resistência cultural encravada no Oeste de Pernambuco. Movida por um estranho e misterioso psicotrópico. Bravamente. Uma ressurreição das Ligas Camponesas de Francisco Julião. Uma espécie de Canudos secularizada, porém guardando o mesmo sentido do quiliasma: o da utopia primitiva. E, contudo, nem Canudos em sua grandeza era assim unânime.

E tal unanimidade, quando existir, existirá por razões muito próximas às (des-)razões que foram bastantes e suficientes para eleger Bolsonaro.

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A fotografia de Pedro Sotero não chama muita atenção para si. E nisso é coerente. Sai-se melhor enquadrando mais a mítica paisagem do Sertão que as personagens que passam por ela, em atropelo e pouca consequência. E pode-se pressentir que essa paisagem --- muita mais bela e forte que seus habitantes --- é a verdadeira personagem de Bacurau. E talvez devesse ter sido ainda mais privilegiada do que o foi. Não há sequências particularmente engenhosas, memoráveis, que demarquem um emprego destro de linguagem cinemática ou ousados movimentos de câmera. Mesmo que algumas passagens se firmem nesse panorama árido, nessa geografia bem tramada na imagem. É o caso do súbito tropel da manada de cavalos pelo vilarejo, e o que isso sugere: um tom de mistério. Algo fantasmático. Um mau agouro. Em geral, assomam coerentes algumas tomadas em que a figura humana surge menos ao centro do quadro. Deslocada para a periferia. Para as margens da imagem. Como a testemunhar a precedência da terra.

É como, aliás, está no livro de Euclides da Cunha. Nem todos têm a capacidade de ler a Terra. Nas entrelinhas.

[Fortaleza, 11.06.2020]

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