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De novo a moldura está posta















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Conversa#113 -Ano 4- Relances do Já e do Agora [27]

Nomadland (Chloé Zhao, Estados Unidos, 2020) - cin. Joshua James Richards



Comboios de carga serpeando nos trilhos diante de montanhas com neves eternas. A vastidão do deserto e suas cactáceas e samambaias. Cidades fantasmas abandonadas pelo caminho: o ouro, as ferrovias, o petróleo e outras corridas. Estranhas formações rochosas a meio caminho entre pedra, barro e areia: badlands. As andorinhas constróem ninhos entre elas, em parte do ano. Motéis e postos de gasolina à beira via. Humanos que se deslocam por essa geografia esplendorosa, cercada por tédios e chuvas. O tanto que utensílios têm de ser regulados e mínimos. Banhar-se em pelo em piscinas naturais rente a cachoeiras. O improviso de refeições à base de macarrão instantâneo e um fogareiro de uma só boca. A efemeridade das despedidas. O tanto que vestígios de memória - fotos, cartas, suvenires - assomam mais prezados quando se segue só. O poder de evocação que mesmo a memória dos outros detém. E logo passam a ser nossas também. Pela pujança do testemunho.


Como ode à solidão, Nomadland dimensiona e reafirma uma noção importante, um tanto perturbadora: somos aquilo de que somos capazes de lembrar. (Sim, há um labirinto aqui, um mise en abyme). Memória. É o que mais nos acompanha na idade madura. Mais até que a presença de outros. Daí o pavor que doenças degenerativas têm: elas aniquilam a memória. Uma noção que a pandemia tem sublinhado. Aguçado. E que vai de encontro às conclusões da protagonista de Nomadland. Aqui há também uma sorte de moralidade pessoal, porque alguns fazem de tudo para distorcer e conformar as lembranças de modo a torná-las leves e convenientes. Ajustadas à necessidade de transformar-se a si mesmo no herói de uma existência. Ou de justificar algumas escolhas. Nem sempre as mais justas ou belas.


Daí talvez o apelo melancólico, um pouco estóico desse road movie. Em mais de uma cena, as personagens traçam um inventário de suas vidas por tatuagens. Mas também por relatos, canções, poemas, dicas de saúde, fotos, receitas. Essas notas biográficas talvez sejam mais belas na superfície da imagem que propriamente na pele. Mas este é um filme bastante epidérmico. Preocupado com a aparência real do mundo ao redor. O que não deixa de ser um aspecto comovente, e que iria angariar o aplauso de críticos como Bazin e Kracauer. Ou qualquer apologista do realismo. No cinema. E principalmente fora dele.


O primeiro dos trunfos de Nomadland passa pelo substrato documental. Alguns atores são, de fato, pessoas vivendo "em situação de estrada". Nômades. Por necessidade ou opção. E o nomadismo é ao mesmo tempo um requinte e uma condenação que poucos entendem. Algumas das cenas mais belas de Nomadland concentram-se após a partida de David (David Strathairn) para cuidar do filho, da nora e do futuro neto. Mais que nunca, essas cenas documentam solidão.


A solidão da protagonista, Fern (Frances McDormand). Uma viúva já velhusca e sem fundos de pensão. Obrigada a correr de um para outro trabalho sazonal. Limpando privadas num clube de golfe. Triando e empacotando encomendas para a Amazon, em uma distribuidora. Preparando e servindo sanduíches e snacks. Colhendo beterrabas. Esse documentar a solidão está no centro de Nomadland. E hoje não é fácil fazer um filme comercial tão barato, versando sobre gente desimportante, chegar tão longe. Mesmo que tenha havido uma pandemia inimaginada. E que essa pandemia tenha, ironicamente, criado as melhores condições para o acolhimento das reflexões propostas por Chloé Zhao.


Seria uma superprodução no Brasil. Barato, entenda-se melhor, para padrões estadunidenses: o que são seis milhões de dólares contrapostos, p. ex., aos mais de cem milhões gastos ano passado com Ad Astra? É evidente que se tem de ser mais autoral e criar boas soluções de continuidade quando o orçamento é módico. E tal parcimônia aproxima tramas de realidades, na melhor receita italiana do pós-guerra. A do documentário ficcionalizado. Ou da ficção documentária. Uma esteira que deixou seus rastros em muitas geografias. Filmografias. Autorais. Grupais. Nacionais. (E, neste ponto, sempre é bom relembrar que o mais ressonante homem de cinema brasileiro, Alberto Cavalcanti, certa feita sugeriu a John Grierson: aquele tipo de filme que estavam ajudando a consolidar, bem como tentando definir, devia ser nomeado por: neo-realismo. Isso, no início dos anos 1930, quando os italianos sequer sonhavam em lançar mão do termo. Mas Grierson, como o bom burocrata que também foi, entendeu que 'documentário' soava mais "sério" na nomeação de filmes que buscavam atestar um fenômeno real. E mais, eram financiados por agências e organizações que precisavam justificar o gasto com eles). O certo é que com orçamentos limitados fica mais difícil recriar a realidade em mirabolantes cenários construídos com meticulosa e dispendiosa obsessão. Daí, então, as obsessões tendem a voltar-se mais para a observação da realidade. Nem tanto para sua mera reprodução em laboratório, digamos assim.


Visualmente há dois trunfos em Nomadland: 1. a paisagem do Oeste americano - em especial, a das Badlands - e 2. o semblante de Frances McDormand. E ambos são suplementares: 1. as Badlands já estavam presente no longa de estreia de Zhao, The Rider (2017) e 2. a solidão, insignificância e derrota de Fern (McDorman) - a loser, a vencida, o último, mais indigno dos estágios humanos ao olhar americano - apenas refratam e aprofundam a de Brady Blackburn (Brady Jandreau), o jovem e desiludido peão de rodeios de The Rider. Outros aspectos - como a crueza e inospitalidade do trabalho físico, a efemeridade dos laços e encontros, a transferência da memória para arquivos fora do corpo, p. ex. - são temas secundários, embora nada descartáveis, como amparo às linhas mestras. A solidão de Fern é o centro. E entra em consórcio com o desolamento, a vastidão e a beleza da paisagem do Oeste. Além da poesia do deslocamento por esse desolamento.


Frequentemente, fica-se com a impressão de que, mais que os encontros e despedidas da estrada, a vida on the road tem mais a ver com um desejo: o de possibilitar estar-se a sós com as próprias reminiscências. Para uma viúva que jamais superou completamente a morte do marido - e nem deseja isso - faz sentido que opte por tal vida. Pelo nomadismo. Noite após noite, antes de dormir, ela pode despir-se, e estar a sós com seu passado. Acomodada em seu beliche, na semi-obscuridade do furgão, pode passear com as lembranças do marido, sem ser interrompida, importunada. Ou mesmo sem ser 'curada' por uma dessas terapias que prometem 'uma nova vida' a quem as faz - frequentemente ao custo de certo apagamento de memória. Fern não parece nada interessada em ter uma 'nova vida' às custas da sua, de viúva, da que pessoalmente optou por ter - e isto encontra-se no centro do filme. Mas, do contrário, em ocasionalmente rever velhas fotos de família, que assomam ainda mais eloquentes, quando manuseadas num beliche acanhado, no meio do nada, sob um frio de rachar. Sem maiores apelos ou distrações. A vizinhança e a paisagem mudam, dia após dia. Mas a rua, o bairro, a pertença, são as mesmas: Reminiscenseville, Memorytown, Saudade City, Vila Exilium. As âncoras.


Fern em inglês é, aliás, samambaia. Uma das plantas ornamentais mais queridas em países de língua inglesa é a maidenhair fern (algo como 'samambaia cabelo-de-moça'). Mas é preciso recordar que a samambaia é, além de "ornamental", uma plantinha resistente. (Vou me furtar, aqui, de lançar mão da palavra que hoje todos usam para falar das coisas resistentes, rijas, firmes. Mas só porque todos usam. Vinte anos atrás, praticamente só eu usava. Então, me agradava usar. Não me agrada o vulgar). Mal comparando, a samambaia é uma espécie de barata das plantas ornamentais. Um pouco regada e adubada, vai medrar em quase qualquer jardim. Em quase qualquer vaso, estação ou latitude. E não vai exigir muito do jardineiro. (Embora alguns cuidados exija).


Além disso, Zhao vem trabalhando próximo do registro do Western. Nesse rumo, há uma crueza em seus filmes que não se pode surpreender, p. ex., nos de Kelly Reichardt, sua companheira de viagem geracional, gênero, e em certa obsessão pelo Western. Mas guardemos esse aspecto, da analogia entre ambas, para um outro momento. Pois certa feição luminosa adicional, ao se assistir este segundo longa de Zhao, é o de constatar: é mais filme que o primeiro. E isto anda cada vez mais raro hoje em dia, entre realizadores. Alguém que dirige uma boa estreia só vai recuperar-se disso lá pelo quarto filme. [É o que espero, p. ex., de Kléber Mendonça Filho, depois de um segundo filme só razoável, e um terceiro constrangedor].


Pequenos sinais de inconformidade com o reinante mundo do politicamente correto fazem-se sentir. De encontro aos excessos desse domínio. A seu autoritarismo. Débeis ainda, esses faróis. Como usam ser. A protagonista é fumante, cis-gênero, um tanto convencional em suas escolhas. Heroínas que começam a desafiar, desde de dentro, algumas das muralhas de tolice que se ergueram em torno das narrativas no último quarto de século.


Desde Fargo, McDormand não encarnava personagem tão determinante. Fern possui simultaneamente aquele ar de maria-ninguém, característico de McDormand, e um heroísmo que se confunde com o do frontiersman do velho Oeste. O desbravador. O que vive no limes, no limite, no limiar, na fronteira, na interseção com o novo. Com o inóspito. Fern possui a nostalgia dos caminhos tão peculiar aos vagabundos. Ela é resistente como samambaias e cactus - sugeridos em quadro. E pode ser áspera como eles também. Mas é também frágil e solitária. Como quando despede-se dos conhecidos na estrada. Ou divaga pelas lembranças - amparadas por fotos impressas ou convocadas no visor do iPhone - no beliche improvisado à traseira do furgão.


Os encontros e despedidas na estrada parecem menos trágicos quando não se possui um endereço fixo. Todos giram em um eixo sazonal de encontros e adeuses, regulados por corporações que fogem ao mais escasso controle dos nômades. Estes, perdem-se entre si. E logo acham-se de novo, mais adiante. Sob nova circunstância, direção e trabalho temporário. São massa de manobra de uma rede de corporações que sequer os reconhece ou diferencia. Uma rotina dura. Mas desafiadora, estimulante. Vivida em meio a precariedades e limites. Algum desconforto. E um comovente decoro - da parte da diretora. Tudo sugerido com grande propriedade na imagem. E, em especial, através de uma pequena coleção de closes. Uma coleção tão precisa quanto uma de selos raros. Ou o conjunto de pratos que Fern ganhou do pai à conclusão do secundário, e guarda consigo como um pequeno tesouro.


Há certa simplicidade. Uma simplicidade um tanto desconcertante. Algo que nada tem de sofisticado. Sofisticado, no pior sentido. No sentido da citação acadêmica. No sentido de Tarantino. Do contrário, este é um filme debruçado sobre a realidade. Sobre as limitadas possibilidades de tê-la conosco. Em seu estimulante prosaísmo. Uma tentativa de reportagem espiritual. Mais próxima do anti-herói, do anticlímax. Da fugacidade de rotinas e roteiros. Da paisagem. Do transcurso de horas extraordinárias por mais ordinárias e tediosas que sejam.


De acordo com as revistas especializadas, a fotografia deve ser indicada na noite do Oscar. Não há motivos, no entanto. A fotografia, assim como a trilha sonora original, não destoa da proposta. Mas também não possui nada de destacável. Uma vez mais confunde-se a excelência do filme, a plasticidade em si de seu tema com a de sua cinematografia. Da mesma forma, os temas para piano solo, compostos por Ludovico Einaudi, são discretos e adequados, embora não possuam nada de excepcional, senão uma boa pontuação auditiva que conspira no sublinho do lirismo e da solidão de fern


E, claro, há também equívocos. Certa inabilidade de casting reflete-se, entre outros, no personagem de David. Há um excesso de 'velhaco' inscrito no semblante de David Strathairn para ele dar conta de um estradeiro quase beatífico. (O anti-heroísmo das personagens não deve emascular ou atacar a lógica interna do filme, como no caso). Outro equívoco: levar demasiado a sério o ramerrão semirreligioso de Bob (Bob Wells), o líder dos estradeiros. O mar, aliás, parece ser o maior desses equívocos. Mas seria extemporâneo versar sobre isso. Todos sabem da incompatibilidade entre o mar e o Oeste. O mar não surge bem no contexto deste filme sobre nomadismo e Oeste.


Nenhum vínculo mais profundo para o cinema americano que o das imagens e sons conjugando-se à monumental paisagem do Oeste. Tão esplendorosa e épica que há um Monument Valley, assim nomeado, e tornado emblema e selo nas imagens do diretor que consolidou o gênero. Fez desse gênero um monumento na imagem. E esse gênero é das poucas contribuições genuinamente americanas à humanidade. Junto com o Jazz. Daí que nesse filme, Zhao possa abrir espaço a um soneto de Shakespeare sem perder um grama de vigor. Sem empalidecer. Mas eles, lá no Norte, são mais felizes. E têm sorte: vivem citando o bardo de Warwickshire em continuidade. Aqui, quem lembraria de um soneto camoniano?


De novo a moldura está posta. E o caubói abandona o pórtico.

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