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Do jeito que o Diabo e Hollywood gostam










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Conversa#114 -Ano 4- Relances do Já e do Agora [29]

Mank (David Fincher, Estados Unidos, 2020) - cin. Erik Messerschmidt




Mank possui a receita completa para uma boa noite de Oscars: 1. Trata de Hollywood. 2. trata de Hollywood com protagonista falando em acento britânico, volta e meia. 3. É nostálgico, anedótico, um pouco superficial ao historiar Hollywood, do jeito que o Diabo e Hollywood gostam. 4. está posto numa sedosa cinematografia em preto e branco [durante algum tempo, até meados dos 1960 havia prêmios separados: para melhor fotografia em cores, e para melhor fotografia em preto e branco]; 5. trata da classe de profissionais mais respeitada internamente, nos corredores dos estúdios: escritores. 6. Quase todos esses profissionais são judeus e de esquerda. Do jeito que Hollywood aprecia, quando se predispõe a versar sobre política: uma leve queda pró-socialismo.


A candidez com que Hollywood costuma tratar de si é comovente. Parece com a fórmula de Álvaro de Campos: "Nunca conheci quem tivesse levado porrada". Os heróis de Hollywood sempre estão do lado certo. Olímpicos até em seus excessos: concupiscência, pedofilia, venalidade, cupidez, drogas, jogo, topar tudo por dinheiro. Mesmo os casos de alcoolismo, como o de Mank, rendem invariavelmente cenas charmosas. Bêbados que caem na medida. Pois até a falta de equilíbrio desses heróis é prontamente atenuada por certo ballet mecânico que lembra o slapstick. É o que acontece quando Mank (Gary Oldman) desce de um conversível bêbado como um gambá. Vai despencar na calçada. Mas há providencialmente, à sua espera, um porta-malas e um carregador que acolhem seu corpo zonzo e o conduzem incólume ao quarto de hotel. Por toda parte há uma destreza em se desfazer de embaraços que lembra cenas de Keaton, Chaplin, Lloyd, Laurel e Hardy. Uma espécie de continuidade mecânica que preenche o universo como um selo de organização e americanidade.


Politicamente, os biografados enquanto bêbados também desembaraçam-se bem: estão do lado certo. São empedernidos anti-hitleristas com simpatias pela esquerda. Notem que não há cinebiografias do pessoal da direita. Mesmo que contem entre os maiores. Ou tenha sido um ator de direita, mais presente em filmes B, o único que logrou atingir o topo da hierarquia política fora de Hollywood: Ronald Reagan. Não se vê gente como Elia Kazan, Lee J. Cobb ou John Wayne nos filmes: consorciando-se com o Comitê de atividades anti-comunistas, delatando colegas, fomentando o ambiente de caça às bruxas, etc. Trabalhando do lado da situação, nos anos do macartismo. Porque não há uma cinebiografia sobre Kazan, p. ex. Isto, a despeito de suas memórias, numa autobiografia, serem das mais extraordinárias. Ou de ele ter sido uma figura exponencialmente mais ressonante que Mank.


Se isso acontece com gente mais exposta - atores, diretores: por que seria diferente com escritores? Logo, os dois filmes mais recentes sobre roteiristas - Trumbo (2014) e Mank - guardam notáveis semelhanças, para além do título: são sobre intelectuais vibrantes, judeus, de esquerda, frequentemente escrevendo sob pseudônimo para meramente sobreviver. E nesse afã, confrontando chefões inescrupulosos, magnatas torpes, donos ou executivos de estúdio despóticos e sociopatas. Ou atores demasiado ocupados consigo mesmo para se interessarem por política. Os próprios escritores portando uma presença de espírito e um carisma dignos de atores. Plenamente capazes de extrair informações de bastidores e transformá-las em insinuações picantes. Códigos suculentos, atravessados de subentendidos e alegorias, que desvelam hierarquias: o poder, o dinheiro, os segredos, a alcova. Como o subtexto do termo Rosebud em Citizen Kane. Como todos sabem, o termo responde pelo modo como, na alcova, Randolph Hearst referia-se ao clitóris de Marion Davies, sua amante, e uma das musas do cinema nos anos 1930.


Nesse rumo, poucos fizeram tão pouco desse mito dos roteiristas-heróis quanto os Irmãos Coen. Brincaram com algo que é tomado em piloto-automático: a tal lucidez política da esquerda. (E, notem, são judeus e de inclinação democrática). Certamente, tal liberdade de zombar de alguns estereótipos da esquerda deve ter custado algum respeito crítico à obra deles. A dupla de Minnesota vai na contramão da passada de pano. Em Barton Fink, vemos um roteirista menos glamoroso. Um idiota sitiado por seu idealismo estéril, decalcado de um socialismo de gabinete. Em Hail, Caesar! (2016) há uma guilda de escritores de esquerda que se reúne numa esplendorosa casa de veraneio. Assomam um tanto ridículos em seu mister de salvar o mundo. Essa equipe, entre outras, ocupa-se com reeducar, por meio de noções marxistas, passadas em seminários de veraneio, os galãs de Hollywood à altura da Era dos Grandes Estúdios. Há uma inabitual e deslavada pagação com estereótipos de esquerda, aqui.


Certa cena, a partida de um destes galãs a bordo de um submarino soviético, é emblemática. O corrosivo sarcasmo dos Coen ganha contornos hilários. Canta-se "A Internacional". A consternação do contato com os camaradas soviéticos eletriza o instante. E o instante é também solene. Há uma liturgia envolvendo-o. Um suposto sacrificar-se "pela causa certa". Algo nas franjas do religioso. Embora a verdade é que todos os roteiristas tenham um bom padrão de vida. Mesmo os postos na lista negra. Porém à subida da escada para a escotilha, esse ator hollywoodiano de musicais, destro dançarino, convicto camarada, protegido da guilda, é posto diante de um dilema: ou salva o dinheiro do resgate ou seu cãozinho. E, desolados, os roteiristas vêem a maleta com os dólares afundar no Pacífico. Desolados, sem dúvida. Mas aqui, não menos judeus no trato com dinheiros. Porém o libelo anti-hollywood dos Coen soa mais exceção a confirmar a tendência geral. Uma tendência geral que Mank passa longe de problematizar.


Como trunfo, além da fotografia e do apuro técnico e editivo, presentes em qualquer filme de David Fincher - mesmo no pior deles, que passa longe de ser este - há a soberba interpretação de Gary Oldman. Não é um primor de filme. Mas diverte, e não podia ser melhor, tecnicamente falando - algo raro nos diascorrentes. Digo, essa confluência entre bom roteiro e realização. O script, aliás, foi redigido pelo pai do diretor: Jack Fincher.


O verdadeiro Mankiewicz era um sujeito talentoso. Extremamente culto. Foi editor assistente do New York Times. O primeiro a escrever crítica de teatro na New Yorker. Corrigiu várias peças da época, antes de levadas ou publicadas - trabalho pelo qual praticamente não levou crédito. No centro de seu labor como roteirista está o script de Citizen Kane (1941). O tema é polêmico até hoje. Pauline Kael sustenta que o roteiro foi inteiramente escrito por Mankiewicz. Já outros, como Peter Bogdanovich, inclinam-se mais pela colaboração com Orson Welles. Mas tanto Kael quanto Bogdanovich são suspeitos no caso. E é mais provável que tenha se dado uma espécie de piano à quatro mãos, com redação final e mais decisiva de Mankiewicz. Certo é que não se deve subestimar o influxo de Mankiewicz na escritura do roteiro. Afinal, ele era amigo pessoal de Marion Davies e Randolph Hearst. Frenquentava-os. E é sabido que Hearst foi o modelo para Kane. Por outro lado, tudo indica que Welles tenha também contribuído de algum modo na confecção do script. Foi o único Oscar recebido pelo filme: Melhor Roteiro.


Mas no meio de um bom filme de orçamento intermediário [para padrões de Hollywood, seria uma mega-produção em qualquer outro país], 25 milhões de dólares, e uma fotografia quase imbatível, há aspectos desagradáveis. Como a intermissão desses intertítulos. O lettering, antecipando as sequências, é estilizado como tipos correndo numa máquina de escrever. O recurso é brega. [Brega é a última escala da coisa. Quando algo é ainda kitsch, talvez ainda se justifique. O brega só se justifica em raros contextos e parodias]. Apesar da soberba interpretação, e sem margem para trocadilho, Gary Oldman assoma um tanto idoso para o papel. Ainda que àquela época, as pessoas parecessem de fato mais velhas do que na mesma idade hoje. E, em especial, os intelectuais, que geralmente abusavam do álcool. E numa etapa em que centros de fisicultura e exames médicos regulares ainda não estavam na ordem do dia.


Algumas personagens - Randolph Hearst e, sobretudo, Louis B. Mayer - são tão caricatas que se tornam desprezíveis. Não humanas. Tipos. Personagens de quadrinho. Ou vilões de fitas de super-heróis. E depõem até contra os (bons) atores que as fazem - e não podem ir contra essas bobeadas de direção de atores, de estilo de atuação. Em alguns momentos, a edição picota tanto ao ponto de tornar-se vertiginosa, desagradável. Algo raro de ocorrer nos filmes de Fincher. Mas é o que vemos, p. ex., na sequência da apuração dos votos, no quartel general dos republicanos (GOP). E em dois momentos dessa sequência. Há certa inconsistência em toda essa cena da aposta. Como há também numa cena prévia, bastante análoga: a da discussão política em torno da figura de Hitler. E, não por acaso, Louis B. Mayer está presente em ambas. Como o vilão desprezível. São cenas que destoam da economia geral do filme. Mais para elisão que para ressalto. Não menos, pelo acintoso clichê que as salpica, sem nenhum perfume. Mas a época é tão elegante e magnífica que, após a aposta, na cena da apuração dos votos, há uma notável (e breve) cena de dança. Mais compassada, coerente.


Um dos trunfos, a sedosa fotografia em preto e branco, está a cargo de Erik Messerschmidt. Trata-se de um colaborador de longa data. Messerschmidt fotografou para Fincher, Gone Girl (2014), entre outros. E uma cena na casa de campo, à franja do Mojave, faz todos querermos invadir a tela. E viver naquele doce mundo de matizes cinzas, a que chamamos de branco e preto. Tal qual acontece, como quando vemos determinados filmes dessa época. Um pouco antes (The Petrified Forest), um pouco depois (Double Indemnity). Ou um pouco à época do Kane, feito Cat People. Nessa cena prosaica, campo/contracampo: uma conversa entre os irmãos Mankiewicz. Joseph - o irmão que tornar-se-ia diretor (The Barefoot Condessa) - tenta dissuadir Herman de levar adiante seu roteiro. Mas há tanto equilíbrio e sensatez técnica nessa cena. E parece tão prosaica. É dos momentos visuais mais conseguidos desse belo filme. Já a música, segue sob a batuta de Trent Reznor e Atticus Ross. Atmosférica. Discreta como um papel de parede. Ela apenas finge lançar mão do magnífico songbook do jazz. De seus standards. A canção americana em seu auge. Característica dos anos 1920-30-40. Mas na verdade há imitações do estilo dessas canções. E só uma única canção de época: "California, Here I Come". Uma canção, aliás, umbilicalmente ligada Hollywood. Pois composta em parte e interpretada in totto por Al Jolson, o emblemático ator de The Jazz Singer.

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