A Casualidade do Pesadelo
Conversa #24
Berlin Syndrome (Cate Shortland, Austrália, 2017) - cin.
Para percorrer a antiga Alemanha Oriental, Clare (Teresa Palmer) uma jovem fotógrafa australiana, viajando como mochileira, chega a Berlim. Ela tem interesse por arquitetura e acaba envolvendo-se com Andi (Max Riemelt), um berlinense, professor de Inglês e Educação Física no secundário. Este mora em uma área erma, no leste da cidade. Mas quando Clare adentra o apartamento de Andi mal sabe que será mantida prisioneira por semanas.
Andi age com se tudo estivesse normal. No trato com Clare, simula que ela esteja ali por vontade própria, comentando sobre o dia a dia, contando ao pai que está envolvido com uma garota, e agindo como namorado dedicado, que leva flores, mimos, guloseimas e lingerie para Clare. Andi havia tatuado nas costas de Clare, quando esta estava inconsciete, a palavra 'minha'. A partir daí muita coisa acontece.
Filmes em torno de rapazes perturbados que aprisionam e eventualmente matam garotas que neles confiaram, em boa fé, são uma constante desde que a psicanálise entrou no cinema e sentou na fila da frente. Ou seja, desde Psycho (1960). Conformam uma espécie de sub-gênero do thriller psicológico: o filme de refém --- geralmente uma mulher jovem, como em The Collector (William Wyler, 1965) e The Silence of the Lambs (Jonathan Demme, 1991). Grosso modo, o pano de fundo desses distúrbios é uma homossexualidade não assumida. No caso de Berlin Syndrome, a indicação mais aguda nesse sentido vai por Andi pintar as unhas do cadáver do pai.
Além de sua vexaminosa condição de refém, o que contribui ainda mais para o pavor de Clare é perceber que provavelmente houve uma vítima antes dela, ao descobrir chumaços de cabelo loiro na banheira. Também um álbum de fotos, com registro dessa garota anterior. Como manda o figurino, Andi possui uma espécie de nicho secreto, no qual dá vazão às suas fantasias --- e fantasias são sempre eróticas, embora nem sempre sexuais --- sentado numa poltrona articulada.
Em certo momento, vemos Clare lendo um livro de Ted Hughes. Escolha polêmica como leitura para se expor numa situação de refém. Hughes, como se sabe, foi marido de Sylvia Plath. E muitas feministas, de modo um tanto brusco, o acusaram pelo suicídio desta. Hughes, apesar de ter sido um poeta de ampla ressonância, virou durante algum tempo sinônimo de misoginia, até que sua reputação fosse aos poucos restabelecida para além da histeria inicial. (O caso chegou a render um filme: Sylvia (Christine Jeffs, 2003)). Que esse poeta tenha sido estigmatizado pelos eventos em torno de seu casamento com Plath soa hoje bastante sórdido. Incluir Hughes na biblioteca de um lunático que aprisiona e abusa de uma garota parece, portanto, um tanto gratuito. Mesmo que a garota mostre-se entretida com a leitura. Mas isso é apenas um detalhe que ainda não dá a traduzir quem mora nos detalhes.
De outro modo, é notável o quanto esse thriller psicológico reparte com outra realização recente: Hounds of Love (Ben Young, 2016 - resenhada aqui). Ambos são thrillers sobre mulheres jovens feitas reféns e abusadas. Ambos se passam predominantemente no cativeiro. Em ambos os criminosos são gente comum, quase acima da suspeita: um casal de meia-idade e um professor de inglês. Ambos são australianos. Ambos se passam durante o ciclo natalino --- embora em locais distintos. Em ambos os sequestradores sofrem de desordens psíquicas gravíssimas, embora "funcionem" como pessoas normais. Em ambos a área de escape externa é uma floresta de coníferas. Em ambos se dá o emprego da câmera lenta e do desfoque como recursos eloquentes. Mas também de certos experimentos com o som --- especialmente neste segundo.
Há um senso de realismo que salpica sobre os dois filmes, como lama de debaixo de pneus num dia encharcado. A diferença vai por um maior senso de realismo na reação da protagonista de Hounds of Love. E, em contraponto, uma solução mais realística para a trama neste Syndrome of Berlin. Os filmes se equivalem. Talvez a força dos personagens seja mais intensa no primeiro, e a integridade geral da trama --- inclusive seu desfecho --- ressalte mais neste segundo. Mas, de algum modo, eles são duplos, como se tivessem partido de um argumento comum do qual são variantes. Ou de uma mesma proposta de expressivade e premissas criativas.
Há muitos jovens e diversidade na capital da Alemanha. Certa sordidez ambiente nos bairros da ex-Berlim-Oriental e a abertura da cidade são dois aspectos presentes neste thriller. E é preciso lembrar, aqui, o modo bastante análogo com que Berlim é proposta no Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2014): também como a cidade prometida, local de encontros, a utopia espacial, a cidade da diversidade, da convivialidade, do cosmopolitismo.
Mas também a presença do local (um verão quente em Perth e um inverno gélido em Berlim, durante o ciclo natalino), como bons panos de fundo para o desenrolar das respectivas tramas; são características comuns a ambos os filmes. Isso nos leva a pensar na hipótese de algo mais coletivo nessa onda de thrillers australianos de orçamento relativamente modesto e bons indícios de realização.
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